domingo, 28 de junho de 2020

Deixar para trás os mais fracos é uma loucura

Qual é a verdadeira catástrofe?
    A forma como o Brasil está passando pela pandemia é considerada um desastre pelos especialistas, incluindo aí a Organização Mundial da Saúde. Ninguém sabe ao certo quando isto vai terminar no mundo, muito menos aqui onde parece que a maioria não ainda sequer entendeu o que realmente está acontecendo, como se joga o jogo. Pelo menos as consequências estão ficando cada dia mais claras.

As ações do Governo Federal para minimizar o impacto da pandemia sobre a população mais necessitada tem sido erráticas, pouco funcionais, tardias e já se fala em parar o pouco que está sendo feito. O povão que se dane com seu resfriadinho, o Presidente está preocupado em cuidar dos filhos e ponto final. A preocupação macro agora é que o Governo consiga um mínimo de governabilidade, o que é ridículo, um absurdo completo, inaceitável. O que deixará mais brasileiros desamparados, a pandemia ou o Governo Federal? Eu não tenho dúvidas; você tem?

O que talvez nos salve é a reação da sociedade civil e de alguns governos estaduais e municipais. O que pode nos ajudar a sair desta é que a pandemia escancarou o Brasil que desde sempre doente, surrealista, psicótico. "Nos acostumamos com o ruim", e bota ruim nisto, triste verdade. São raros os pacientes que conseguem tomar consciência de sua loucura para tratar-se e voltar a uma vida minimamente normal. Terapia coletiva é quase uma fórmula mágica para a cura. Vale para um país.

Vamos deixar para trás os mais fracos?
    A taxa de informalidade no Brasil de 2019 girava em torno de 40%, o que já era muito alta e perigosa para a estabilidade econômica e social. Deve ficar muito mais alta depois de melhorada as condições de isolamento, o que é um fator de risco preocupante. A primeira pergunta que faço é como estão sendo encarados estes 40% pelos analistas e pensadores que olham o macro.
A reação de boa parte da sociedade civil com os mais necessitados tem sido até além do esperado. Resta saber se será suficiente para evitar uma explosão da panela de pressão social que já vinha fervendo há muito. Eu já vi uma panela de pressão explodir, a tampa grudar no teto e o feijão pintar toda a cozinha e sei que a reforma é trabalhosa, demorada e custa caro. Prefiro não ver uma explosão social.
O povão vai sobreviver como sempre sobreviveu, mas o ideal é que analistas e pensadores pensem, discutam e apresentem propostas e soluções que incluam esta imensa informalidade na reorganização da macro economia. Tenho acompanhado as notícias e não vi uma palavra ou linha que indique esta preocupação efetiva. E não se sabe se há organizações tocando fogo em nome de um tão usado "quanto pior melhor". 
Ter só uma visão superficial do que está acontecendo fora do topo da pirâmide social é muito mais que um perigo. Não sinalizar de maneira clara e inequívoca com uma mão estendida além de uma demonstração de egoísmo social pode ser o detonador final do "nós e eles" resultando numa desintegração social do país, um tiro no pé de todos.  

Os erros eternos deste Brasil são muitos, e bota muitos nisto. Fala se muito sobre eles, mas são poucas as ações práticas e efetivas dos indivíduos da sociedade civil para melhorar a situação. "Não dá para fazer nada"; "Eu como indivíduo não tenho poder para mudar..."; "Eles são responsáveis..." e outras frases lapidares costumam ser o fim do início de qualquer atitude. Nosso eterno "Brasil, país do futuro" natimorto.
Não ensinar a pescar é um erro brutal. Todo ser humano tem sua inteligência específica. Imaginar que não se possa passar uma cultura de qualidade e eficiência para os menos escolarizados é de uma inocência sem tamanho, ou má fé. Gilberto Freire provou para o mundo que o problema não é o conteúdo, mas a forma como se entrega o conteúdo. Chamar o outro de burro ou ignorante é a coisa mais fácil e banal. Tirar do outro seu melhor põe a prova quem você realmente é.  

Muita antes da pandemia a saída países mais ricos e com melhor IDH entenderam que o futuro está em "Think globally, act locally", ou pense globalmente, aja localmente. Uma saída é "comer o mingau pelas bordas". O mingau chamado Brasil está fervendo, queimando e vaporizando. Tocar a colher pelo meio não dá mais. Ou saímos pela periferia e os mais pobres ou temos uma grande chance de nos queimar feio.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

mulheres

"Se pegar minha bicicleta eu mato você" falou a irmã para o caçula. Ameaça inútil de uma menina carinhosa com aquele capeta bem mais novo. "Pega a sua (bicicleta) e vamos dar uma volta na calçada". Rua parada, não passava ninguém ela desceu para o asfalto seguida pelo irmãozinho. Parou, desceu da bicicleta, olhou com cara de fera para ele e perguntou "O que você está fazendo no meio da rua. Não sabe que é proibido? Desce da bicicleta e coloca ela na calçada. Está de castigo!" Sem entender nada ele obedeceu. Rindo ela o chamou docemente "Vem cá", e ele veio. Ela segurava a bicicleta uma mão no guidão outra no selim. "Sobe que te ajudo. (A minha bicicleta) é grande e na garagem você não ia conseguir. Aqui vai, tem espaço". Ele quase deu um grito de alegria silenciado por dedo na boca. "Fica quieto, se souberem os dois vão pro castigo".

O tio se foi. A tia viúva foi cuidada pelos filhos que como primeira providência a fizeram sair da velha e charmosa casa e ir para um apartamento. Sempre foram um casal que se amou, isto ficava claro não em atitudes falsamente adocicados para o público social, mas nos cuidados que principalmente ele tinha com ela. Não foi uma perda pesada, mas situação que cada dia era mais clara; ele iria antes. Rapidamente adaptada a nova vida confortável do apartamento achou estranho que a luz não funcionasse, que o rádio e a televisão não ligassem. Telefonou para um dos filhos e pediu socorro. Prontamente foi até lá. Abriu a caixa de luz, tudo certo. Foi até o térreo conversar com o zelador e descobriu que a energia tinha sido cortada por falta de pagamento. Subiu e foi ter com a mãe. Ela ouviu atenta, como sempre, mas com uma expressão de pasmo. "Conta de luz, que conta de luz? O que é isto, tem que pagar para ter luz?" Assustado com o tom da resposta da mãe o filho entendeu a extensão do amor de seus pais. "Então me faz um cheque que eu pago". Mais perplexa ainda e já furiosa perguntou "O que é um cheque?"

A irmã, mulher de vida social intensa e convívio com homens proeminentes, não pensou duas vezes em cortar os cabelos muito curtos, colocar uma cinta muito apertada nos seios, e vestir um uniforme de campanha militar que comprou a peso de ouro de um soldado magro que alegou terem roubado sua farda. Inteligente, determinada, culta, de boa conversa, bom humor e gargalhada solta, depois de pronta e rir para o espelho foi atrás e conseguiu uma carona até o fronte. Com uns trocados na mão o caminhoneiro seguiu pela noite por caminhos livres de barreiras e quase ao amanhecer chegaram lá, ele, motorista, mais exausto do falatório da soldado do que das horas seguidas dirigindo sem parar. Com ela ninguém perde o sono. Errou o local, era um fronte, mas não o fronte. Ela desceu e agradeceu, ele também de ela finalmente ter descido. Passou pelo vigia num bom dia sem parar e foi ter com o comandante. Não enganou sua com voz falseada e pouco masculina, confessou as intenções, convenceu até quem não devia e para voltarem ao silêncio foi levada ao marido, um deles, que estava descansando da batalha distante. Acordou num susto ao sentir o toque único dos dedos dela nos ombros, um dedilhar de sonata de Debussy que sempre lhe acalmava nos momentos mais tensos. Tentou virar-se irritado da brincadeira de algum soldado dos que conheciam o casal há muito. "Senta" disse ela com sua voz definitiva, solta e sensual. Ele sentou-se sem olhar para trás, toco uma das mãos finas de pele fina e quente e retomou o seu trabalho. Estava exausto, atordoado, havia apagado por uns minutos, talvez horas, já havia escurecido e o barulho longínquo de tiros e bombas silenciara. "Que importa", esfregou os olhos, limpou as lentes dos óculos, ordenou os papeis sobre a mesa, e quando sentiu ela retirando as mãos dos ombros fez um movimento rápido para tê-los mais uns instantes. Quando sentiu o acalmado puxou uma cadeira e sentou-se ao seu lado. Ele pôs se a trabalhar. Amanhecia e entrou o comandante, chamou-lhe pela patente e nome, e os dois se levantaram, viraram se e bateram continência. "Quem é?" perguntou preocupado; sem dar chance ao marido responder ela em sua voz natural, firme, e decisiva respondeu "Soldado Lígia, senhor". 

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Tempos de aventuras

The bicycle & The West - 
Este site é genial. De uma certa forma esta foto me faz lembrar minha infância. Não que tenha vivido em 1896, mas sou de um Brasil que ainda era muito atrasado, ainda com cenas e personagens próximos a desta foto.

Provavelmente minha primeira vivência no campo foi no sítio de tia Irene em Atibaia. Cruzávamos uma ponte de madeira e entrávamos num caminho cercado de eucaliptos até a porteira, que depois de aberta mais uma centena de metros até uma casa simples com frente de varanda cercada de árvores. O fogão que nos oferecia uma divina comida era a lenha e a serpentina que corria por dentro dele aquecia nossos banhos, que tinham que ser curtos para ter água quente para todos. Num canto da sala um gramofone que para tocar os pesados discos que soavam pela corneta era preciso dar corda numa manivela lateral. O telefone também funcionava a base de uma manivela, que depois de acionada permitia que se falasse com a telefonista que completava a ligação para o número ou o nome da pessoa com que queria se falar. 
Eu era muito pequeno e era uma aventura caminhar pela curta trilha da mata ao lado da casa. Havia uma pequena lagoa que nos era proibida e por isto mesmo era para lá que minha irmã e primas, um pouco mais velhas que eu, iam. Um bote de madeira ficava na margem, provavelmente pronto para tio Pedro pescar. E as primas nele se aventuravam sozinhas me deixando as margens porque era muito pequeno para aqueles perigos. De certa feita tirei o bujão do bote, deixei-as subir e dei um empurrão para chegarem ao meio do lado. Sem remo naufragaram sob minhas gargalhadas gritavam que iriam me matar. Fugi de lá e não me lembro bem quem me matou, minha mãe, minha tia ou quem, elas não foram. No dia seguinte tomei café da manha em pé. 
Vizinho ao sítio de tia Irene tinha um outro com a casa no topo do morro e uma piscina uns 50 metros abaixo. Ligando os dois tinham dois trilhos e uma espécie de carrinho de rolimãs no qual os mais velhos se sentavam, desembestavam ladeira abaixo, e um pouco antes da piscina eram jogados para o alto para mergulhar na água. "Quando crescer vai poder brincar", maldita frase. Eu os via com uma inveja de matar.
Paralelo ao rio Atibaia corria a ferrovia. Ouvia o trem chegando longe e parava tudo que estava fazendo. Perto do sítio havia uma estação. Era possível ouvir o bufar do vapor e o apito forte avisando que "Vai partir!". Certa vez Conceição me levou para ver o trem passar bem perto, a bem da verdade passar sob nossas cabeças. Que emoção! "Não pode contar para ninguém" e pela possibilidade de outras aventuras nunca contei. 
Sei que foi aí que pedalei pela primeira vez na terra. A suave descida entre a casa e a porteira era minha predileta. Até hoje me lembro das pequenas erosões na terra batida. Próximo a porteira tinha uma roda d'água que já não trabalhava mais. Parei minha bicicleta, entrei no canal da roda d'água, tive a curiosidade de olhar a comporta e a roda d'água se moveu prendendo minha cabeça entre a roda e a parede. Demorei um bom tempo para me desvencilhar e o fiz sem dar um pio temendo a bronca ou o castigo. A noite minhas tentativas de explicar as orelhas raladas e inchadas foram inúteis. A família ficou apavorada com minhas explorações. Minha rédea ficou curta.

A época de Atibaia se foi e agora era Guarujá onde juntei forças com Renata e Roberto, e vez ou outra com Ricardo, um pouco mais novo. Aprontávamos algumas, mas nada demais: quase morremos afogados algumas vezes, Ricardo partiu a cabeça no asfalto descendo o morro numa bicicleta sem freios, éramos praticamente sócios do Pronto Socorro... Roberto lia Júlio Verne, que tentei ler algumas vezes e achei muito chato. Ainda era época de aventuras, descobertas, de coisas estranhas que nunca tínhamos visto. Os dicionários ilustrados eram uma aventura, mais até que as enciclopédias. E a aventura de todos passou a ser a social, mudanças de comportamento que vinham uma após a outra e chocavam os mais velhos. Músicas, músicas, Beatles, o filme Easy Rider que vimos no cinema mesmo sendo menores de idade. E 2001, Uma Odisseia no Espaço, um choque de realidade visual, sonho e pesadelo de quem só imaginava o que estaria por vir. Lembro claramente da expressão de pavor de minha mãe quando entrou em casa depois que de ter assistido Clockwork Orange numa sessão fechada. O filme foi proibido de ser exibido no Brasil. Ah! a aventura dos costumes, tão emocionante como explorar novos mundos. E seriam novos mundos, como são.

Em 1969 o homem colocou os pés na lua com transmissão pela TV. Nos reunimos em casa numa festa alegre e ansiosa, e assim foi por todas as localidades e casas do planeta. Tudo era novidade, a chegada do homem à lua, a transmissão internacional pela TV que era quase um feito tão impressionante para a humanidade quanto o primeiro "pequeno passo de um homem (na lua)". A hora que começaram a transmissão foi uma gritaria e todos correram e se amontoaram olhos arregalados e profundo silêncio frente a pequena TV branco e preto. Olhávamos aquelas imagens pouco nítidas com um espanto profundamente respeitoso. Mas não fazíamos ideia do que aquele "passo gigante" significaria para a humanidade.

Pegamos a Estrada dos Trabalhadores, hoje Ayrton Senna, e seguimos rumo a Visconde de Mauá pedalando. A bem da verdade olhando o que aconteceu quem tinha mais experiência, no caso eu, não fazia a mais remota ideia de quanto tempo iríamos demorar para chegar lá. Com certeza não seria tão rápido quanto nossas inocentes imaginações sequer faziam crer. Eu já tinha viajado pedalando, o que no entusiasmo juvenil não quis dizer nada. Mesmo antes de chegarmos ao começo da estrada já ouvia reclamações sobre cansaço e dores nas bundas. Calaram quando passou por nós toda uma família, pai pedalando, mãe na garupa com uma criança de colo, e a irmã sentada no tubo entre as pernas do pai, tudo numa única bicicleta. Uns quilômetros mais à frente desceu o chico de Cristina, ou não desceu, nuca saberei, mas a verdade / mentira foi providencial para os exaustos. E apareceu um santo caminhoneiro que levou os três e suas bicicletas até um pouco além de Queluz, onde pegamos um hotelzinho simples e dormimos exaustos. No dia seguinte bem cedo continuamos a pedalada até o trevo de Penedo sem mais reclamações, bom acostamento e provavelmente vento a favor, e daí para Visconde de Mauá. Também na inconsciência, sem fazer ideia de como seria subir a serra ou quão longa era a subida lá fomos nós. Para facilitar os outros juntei as mochilas deles e amarrei-as no meu frágil bagageiro. Não me lembro mais em quanto tempo subi, a bem da verdade na época também não devo ter me dado conta, só me lembro que ali aprendi a nunca acreditar que aquela é a última curva antes do fim da serra. Cheguei no topo, as nuvens corriam rápido sob meus pés num branco brilhante de doer os olhos, e me senti o próprio Super Homem. Os dois demoraram o suficiente para as nuvens ficarem a cada minuto mais escuras e quando chegaram tiveram ainda tempo de olhar o horizonte de nuvens carregadas antes de despencar uma furiosa chuva de pedra. Confiante na habilidade dos dois desci a serra para Visconde de Mauá, até um ponto segurando nos freios e olhando para trás, mas logo a frente despencando por crer que chegariam lá. Empapados nos encontramos um bom tempo depois numa vendinha quase em na vila. Cristina queria me matar. "Você me abandonou!". Inconscientes mais uma vez, armamos barraca num campinho de futebol e no dia seguinte depois de uma breve saída acabamos limpos, roubados. Mais uma aventura, desta vez com toda consciência, saímos pela cidade investigando e recuperamos quase tudo. Dormimos num hotelzinho simplório. No meio de tudo isto Zé quase pisou numa cascavel que tomou um susto e sumiu no capim. Quando voltei para São Paulo deveria ter ido ao Instituto Butantã perguntar se cobras não atacam lunáticos. Talvez ainda vá.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Comentários sobre previsões para as novas cidades


Complemento o texto 'Pandemia vai mudar a cidade brasileira' que publiquei sobre os inúmeros textos que falam sobre as mudanças em nossas vidas e nas cidades. Uma delas me chamou atenção, a publicada no "mobilidade" do Estadão em 10 de Junho de 2020 agora. Na página 2, + URBANISMO - 7 pontos para um Plano de Mobilidade Urbana eficiente dá "algumas medidas mencionadas por Estela Alves, mestra em planejamento urbano e regional, graduada pela FAU USP. Em negrito as propostas de Estela Alves seguidos de meus comentários 

1 - Gestão local participativa: OK, desde que o "participativa" seja de fato participativa e dê resultados, o que não costuma acontecer. Um pequeno grupo fica sabendo - porque já está envolvido de alguma forma - e sempre serão estes que participarão, o que não significa a voz do povo ou da comunidade. Por outro lado, é comum a participação de indivíduos que levam pontos muito particulares - dele, ou os que não entendem nada do assunto, não se inteiraram antes. 

2 - Modernização e pontualidade do sistema de ônibus: OK, mas se existe há décadas em vários países do mundo porque nunca conseguimos ter aqui? Uma das razões é a instabilidade da fluidez de nosso trânsito, o que tem relação direta com semaforização, sinal de comunicação, inteligência artificial, treinamento de todos, incluindo motoristas, leis. Não temos nada disto funcionando bem.

3 - Aumentar a abrangência e eficiência dos bilhetes únicos: Não opino, não conheço. O ideal é que o número de viagens dentro da cidade diminua, uma velha discussão. Bairros mais autossustentáveis deve ser o caminho para isto. 

4 - Semáforos realmente inteligentes e resistentes: É ridículo o que temos. Não consigo entender porque a sociedade não exige a troca de tudo. A CET SP (e provavelmente departamentos de trânsito de outras metrópoles) tem projeto para troca de toda semaforização que nunca saiu da gaveta. Um deles quase foi, mas na administração Kassab morreu. O que se tem no país é completamente obsoleto, um custo Brasil que deveria ser absolutamente inaceitável. Investir em semaforização inteligente de última geração custa muito, mas vale cada centavo. Um detalhe importante: para mudar o destino das metrópoles brasileiras é necessário investir em programas de semaforização que levem em consideração transporte de massa, pedestres, ciclistas, veículos leves, com definição de tempo de fluidez para cada um dos modais. Trocar o sistema por um que só dê fluidez geral, como é hoje, onde abre para todos, com alguns cruzamentos tendo um pequeno tempo para pedestres, vamos jogar dinheiro no lixo, vamos definitivamente enterrar o futuro de nossas cidades. O correto seria que o sistema semafórico fosse o mais abrangente possível, já levando em consideração uma geração de veículos sem motoristas. 

5 - Facilidade na interligação entre diversas modais: O Brasil desprezou por décadas o que foi feito em Curitiba, que serviu de referência internacional, mas não aqui. Para facilitar a interligação entre modais deveríamos ter pelo menos calçadas decentes ou, pior, ter calçadas, o que é comum não ter. E num país quente como o nosso ter sombreamento verde. Onde chove escoamento das águas. Bicicletas? É preciso mudar a forma como está sendo pensado e implantado o sistema cicloviário. Aliás, os especialistas em sistemas cicloviários deveriam minimamente saber o que é uma bicicleta, o que é um ciclista, como se pedala numa cidade e acreditar nos dados estatísticos. Interligação é tema velho, que caminha a passo de lesma. Por que?

6 - Conscientização para a redução de viagens nos horários de pico: Óbvio e simples de fazer, mas por que não se fez faz tempo, muito tempo? Onde enrosca? Quem ganha deixando como está?

7 - Promoção do transporte coletivo para crianças e adolescentes: Sem dúvidas. Crianças e adolescentes indo em bicicletas ou patinetes é pratica comum na Europa e em Caraguatatuba e Ubatuba, e provavelmente inúmeras outras cidades brasileiras, mas não é nas metrópoles. Por que? Uma das razões é a venda da insegurança, um rentabilíssimo negócio para uns poucos, mas inviabilizador de vários aspectos sociais das cidades. Crianças indo sozinhas para a escola? Vivemos um grau baixíssimo de segurança, mas também vivemos uma pandemia de medo.

Falta na análise dizer o que se faz com as leis brasileiras, o feroz corporativismo do funcionarismo público, os interesses pétreos que levam vantagens, com a população de pouca urbanidade, a precária formação de profissionais, o excesso de utopias, e principalmente de onde se tira o dinheiro para realizar estas mudanças. Só como exemplo, a troca da semaforização de Los Angeles que acabou de ser implantada custou algo em torno de 1 bilhão de dólares e levou quase uma década para ser completada. 

Ainda no "mobilidades do Estadão, página 4, +  O QUE ACONTECE NO MUNDO; Por que a China é referência em mobilidade sustentável?", uma pequena correção e uma referência histórica: Bicicleta só se tornou popular na China depois de Mao literalmente mandou que assim fosse. Por razões de tradição e cultura, antes da revolução comunista, a bicicleta foi mal recebida e se popularizou. Já na Holanda e em outros países ricos a bicicleta sempre foi bem recebida e popular. Há uma diferença brutal entre um "cumpra-se" vindo de mão forte e a concordância popular. Vale lembrar também que uma pesquisa realizada entre ciclistas em Copenhague apontou que 27% deles se pudessem não usariam a bicicleta (provavelmente preferem o conforto do carro).
Bicicleta é uma das soluções com certeza, mas deve ser tratada sem ilusões. 

Nossas cidades são anacrônicas, obsoletas, precárias. Nem sequer a manutenção preventiva é realizada da maneira adequada. O buraco é muito mais embaixo.
A discussão sobre o que fazer com as cidades brasileiras vem de muito tempo, muito antes da pandemia. Mesmo tendo profissionais e especialistas competentes muitas das propostas apresentadas ou colocadas em obras careceram de realismo por não considerarem todos os entraves e atores envolvidos ou beneficiados. Continuar com projetos de prancheta e relatórios é um erro que não podemos mais nos permitir. Urgem ações que estabilizem a vida na cidade. Urgência não é daqui 2, 3, 4 anos. Urgência é já.

segunda-feira, 15 de junho de 2020

Pandemia vai mudar a cidade brasileira?

Fórum do Leitor 
SP Reclama
O Estado de São Paulo

Nada mudará a cidade brasileira, nem mesmo as esperanças vindas da pandemia. Razões não faltam; temos um feroz corporativismo de funcionários públicos concursados com instrumentos legais obsoletos em mãos, um jogo de interesses particulares, interno e externo ao funcionarismo, que são pétreos, as leis mais modernas do planeta que de tão perfeitas são pouco ou nada funcionais, e em cima de tudo isto uma população, inclusive boa parte da educada, que não faz ideia do que deveria ser de fato uma cidade. A referência que a imensa maioria dos brasileiros tem de urbanismo e urbanidade, comparada até com a de países mais pobres, é para lá de precária. O bem público aqui no Brasil, incluindo equipamentos urbanos, não é entendido como bem coletivo, mas como terra de ninguém que cada um pode usurpar da forma que bem entender. Nosso coletivo começa pelo "eu tenho direito", dificilmente chega no "meu dever", o que dizer "zelar".
Os índices básicos de qualidade de vida das cidades brasileiras são baixos, com raríssimas exceções em raros locais. Faltam água encanada de qualidade, esgoto, calçadas, sombreamento, verde, praças, iluminação, segurança, espaços públicos de convívio e lazer, e nesta pandemia que colocou todos em casa fica mais claro a precariedade de nossas comunicações que correm a céu aberto, penduradas em postes, arrebentadas por caminhões ou usurpadas por quem não quer ou não pode pagar pelos serviços. Mesmo em bairros ricos há uma variação de sinal simplesmente inaceitável num mundo cada dia mais digital. 
O planejamento urbano desde sempre teve um braço forte das incorporadoras, construtoras, e até mesmo de loteamentos ilegais. Daí os fortes apaches, as muralhas medievais, os muros, grades, segurança privada, segurança particular. Aliás, empresas de segurança são o negócio que mais cresce e mais rentável neste país.

Agora se fala sobre as mudanças mágicas que poderão acontecer em consequência da pandemia. Vale aqui a pergunta de Garrincha ao técnico na preleção sobre como seria aquela partida da Copa do Mundo: "Mas o senhor já combinou com os russos?" Os que falam sobre estas mudanças combinaram com a coisa pública brasileira, com os interesses pétreos, as leis e o povão? Já se perguntaram porque a modernização de nossas cidades e de nossas vidas sempre foi tão morosa? Quero lembra-los que o mundo é digital e lá fora as coisas acontecem ontem.

Um dos mais experientes respeitados e sérios políticos brasileiros, daqueles que tem trânsito em toda sociedade, independente do posicionamento partidário ou social, depois de ouvir a história sobre mais um projeto que tinha morrido na praia disse: "Insiste porque aqui (no Brasil) é comum demorar 10 anos para acontecer". Pior: esta para acontecer, 10 anos depois. 

Para rolar não basta tirar malucos e ladrões de lá, tem que acertar o funcionamento do hospício. 

domingo, 14 de junho de 2020

Black Lives Matter e a cultura

Cultura deve ser escancaradamente aberta para o bem e para o mal. A meu ver informação não deveria ter limites expondo todos os lados para assim fundamentar e preservar a verdadeira história. A escravidão, qualquer que seja ou tenha sido, deve ser combatida, mas sua história deve ser um livro aberto, gostando ou não do que está lá em letras, fatos e imagens. A boa alma cresce também do olhar e compreender o mal. "Odeie seu ódio" é uma interessante pixação, faz refletir. Eu diria "aprenda do ou com seu ódio", mas pare por aí. Cresceu quem compreendeu. 

Entendo a reação da população derrubando as estátuas de escravagistas, mas confesso que preferia que fossem retiradas de circulação e guardadas até que pudessem ser novamente expostas para contar a história, aí sim a verdadeira história. Provavelmente é o que deverá acontecer em países civilizados. Só a verdadeira história nos libertará, como a própria história prova que a verdade nos libertou no passado e segue nos libertando a cada momento que é contada sem rodeios, medos ou tendências. 

O Estadão publicou um texto sobre radar-cultural/o-impacto-do-movimento-antirracista-black-lives-matter-na-cultura/ onde colocam que o filme "E o vento levou" foi tirado de catálogo, o que acho péssimo. Já escrevi sobre as séries "Revisitando a Segunda Guerra Mundial" e "Segunda Guerra Mundial a cores" que mostram imagens e falam sobre detalhes até então nunca tinham sido divulgados e que muda a compreensão do que foi aquela loucura planetária. Esconder fatos, não importa quais ou de quem, trouxe uma série de distorções no progresso para o bem e a equidade de todos. Toda informação que se oculta retira a verdade de seu contexto e a partir daí ela passa a ser a verdade do vencedor daquele momento, nada mais. Na TV mostraram imagens do nome Penny pintado de preto nas placas da Penny Lane Street, título de uma das músicas mais marcantes dos Beatles, um singelo tributo dos personagens da a vida cotidiana e normal de uma rua de Liverpool. Penny é o nome de um personagem da história ligado ao escravagismo negro. Repito, entendo estas reações, mas lembro de Gandi e Mandela. 

Notícia de última hora: uma estátua de Cristovão Colombo foi vandalizada em nome de... Ups! Cristovão Colombo? Desculpem, mas esta não entendi.

Aqui no Brasil não é necessário qualquer gatilho político / ideológico / racial / religioso para que estátuas sejam depredadas, depenadas ou roubadas. Elas simplesmente desaparecem e ninguém faz nada. Uma pequena estátua de 400 kg foi roubada sem que ninguém percebesse. Mais, não se tem notícia de investigação... https://www.youtube.com/watch?v=mAf6F_ZnbOI (não sei porque não consigo carregar os vídeos neste blog)

Vale a pena ler:
Análise: as estátuas derrubadas indicam algo maior , Sérgio Augusto , ESPECIAL PARA O ESTADO; 14 de junho de 2020 | 05h00


sábado, 13 de junho de 2020

O custo Brasil futuro de elites que não o são

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo
 
Você faria negócio com "um país onde se plantando tudo dá, nunca antes se estocou tantos ventos nesta terra plana e onde seus mandatários lutam para expulsar todos os males de satanás, inclusive os de seus próprios parceiros comerciais"? O Brasil sempre teve discurso e práticas bem pouco ortodoxas, mas sempre se deu um jeitinho para resolver a situação. Hoje nem isto temos. "Nós e eles" que impera nos corações e mentes há mais de duas décadas dissolveu o entendimento do que é elite - o que há de mais valorizado e de melhor qualidade, especialmente em um grupo social; minoria que detém o prestígio e o domínio sobre o grupo social. Muros, grades e barreiras de todos tipos que se veem em todas as partes deste país são reflexo do salve-se quem puder, e só se chega neste ponto quando quem tem o dever de liderar perdeu sua capacidade de liderança. As elites brasileiras, todas, e são inúmeras, precisam urgentemente tomar consciência de quem são e quais suas responsabilidades, o que esta altura do campeonato duvido. Quando os pais estão completamente surtados e se autodestruindo cabe a família, aos amigos e até mesmo à comunidade assumir o futuro das crianças, nem que para isto se tenha que deixar para trás os loucos. Do contrário será a própria comunidade que sofrerá as consequências das laranjas que foram deixadas para apodrecer.

sábado, 6 de junho de 2020

Todas vidas importam. Todos importam, todos

Wilson Simonal
Homenagem a Marin Luther King 
gravação 28 de fevereiro de 1967

Wilson Simonal é destes gênios que surgem raramente no planeta. Da mesma forma que fez um sucesso estrondoso desapareceu sem que na época sua falta fosse tão sentida e se soubesse ao certo o que tinha acontecido. Hoje passa na TV um documentário que explica a história toda, meio assim com uns buracos, mas dá uma noção boa do que aconteceu. Uma coisa é certa, Simonal era um gênio negro e isto incomodou profundamente muita gente.

Fala da filha de George Floyd: "Meu pai vai mudar o mundo".

muro medieval da cidade de Le Mans, França, provavelmente século XI 

muro de residência em São Paulo, 2018

muro residencial tipico brasileiro

    Muro! 
Autodeclarados negros no Brasil são menos de 8%, mas população mulata vai além dos 50%. Especialistas deixam claro que o número de negros brasileiros é muitíssimo mais alto que o autodeclarado. Seguindo estes números e pesquisando o Brasil real se dá num dos campeões mundiais de problemas sociais, os mais diversos e tristes possíveis. E os muros não só afetam os negros, definitivamente não.

Eu tenho um sonho e não é de hoje: uma cidade sem muros, todos, os físicos e os sociais. Uma vida sem segregações, portanto sem medos. Muros escravizam, são fruto do medo; medo fecha portas, discrimina, mata, no sentido literal e figurado. Vida! IDH!
A mudança factível começa por detalhes muito mais que pelo grosso da história.
no muro está escrito: 
QUERO SER POBRE POR UM DIA..., MAS TODO DIA É FODA


    Desconhecer o outro, caminho certo para pensar bobagens.

"Eu quero que pobre se exploda" é um bordão do personagem Justo Veríssimo de Chico Anísio que define com precisão esta nação.

Italianos, Sírios, Libaneses, Japoneses, Judeus (e os coloco propositadamente com letra maiúscula) e tantos outros mais foram discriminados por aqui. Africanos em especial. Nordestinos. O que dizer dos pobres? A história continua.

Tenho um bom amigo que pelos padrões americanos não é exatamente um redneck branquela. Ele tem um ótimo casamento inter-racial e dois filhos lindos. No meio de toda barbaridade dos comentários e ações do pessoal do Bolsonaro sobre judeus fez seu comentário sobre a questão, de bate pronto, completamente espontâneo, um "deslize" que logo tentou corrigir. Perguntou se eu era judeu, respondi que meus dois irmãos eram de origem judaica. O interessante é que ele pensa a vida com um claro viés de esquerda e no caso o comentário tinha a ver com vincular judeus a bancos e fortunas, como se todo judeu fosse bilionário e fossem os únicos deste planeta que só pensam naquilo: dinheiro. Definitivamente não condiz com a realidade. 
Somos todos humanos. 
A gozação de Monty Python em a Vida de Brian sobre o erro de avaliação de quem foram os romanos vale para tudo e todos. Esculhamba bem esculhambado as besteiras, das raciais às ideológicas. 
A qualidade de vida que temos hoje foi construída, dentre outras coisas, com a assimilação da cultura africana. A saber: higiene na cozinha só chegou ao Brasil com os cultos religiosos africanos. Antes, entre portugueses e europeus, o trato com os alimentos era um horror, que se descrevo aqui talvez vomitem. Todo primeiro mundo foi e está fortemente influenciado pela cultura africana. Somos todos humanos, coitado de que não entende isto.

    Como mudar? Por onde começar?
Tem que ter um gatilho social para acionar mudanças corretas e perenes, não sei qual e não creio que haja respostas. A morte de George Floyd deve gerar mudanças nos Estados Unidos. No Brasil, onde morre-se aos montes, assim sem mais, até de morte morrida, morte de uns não faz muita diferença. Se fizesse qualquer diferença já teríamos feito algo para mudar há muito tempo. Nossos números são asquerosos, assim como nossa falta de vontade de muda-los. 
Lá fora a discussão ultrapassou e muito a questão da violência policial e de estado. No meio desta profunda crise macro econômica alguém usou o termo livestock para trabalho humano, o que é usado normalmente para gado. O que somos; boiada? Com certeza! Foi assim que a humanidade progrediu, é assim que será, mas alguns valores desta equação precisam imediatamente serem revistos.
Todo sistema está completamente desbalanceado; não dá mais para continuar como estamos levando o planeta e nossas vidas. Se nós aceitamos, o planeta não aguenta mais. A equação não fecha, só duvida quem vive na terra plana e outros imbecis do gênero.
Medo escraviza. (Daí porque sou contra implantar ciclovias e ciclofaixas indiscriminadamente.) Sonho como uma cidade livre, sem muros e segregação, mas com uma ordem que liberte. A união liberta, a cidade sempre foi o ponto de união. Selfie é um direito individual, mas também é um muro social. A cidade/sociedade do selfie está provado que não funciona. Unidos jamais seremos vencidos!

O assassinato de George Floyd no meio deste caos pandêmico escancara. Resta saber se queremos ver e agir. Eu quero, eu tento, pelo menos tento. E você? Talvez só tentar não baste mais. 

terça-feira, 2 de junho de 2020

O que era liberdade, o que é liberdade, o que será liberdade

 Primeiro: o que é liberdade?

    Ontem fui até minha casa onde desde dias antes do decretado isolamento está Cristina, que chegou de Londres para tratamento dentário e o casamento da sobrinha e encalhou no Covid 19 daqui. Amanha volta para Londres onde mora faz 30 anos. Os três meses que passou isolada em minha casa, longe de marido e filhos, foi para ela um bom momento de estar consigo própria. Perguntei como tinha sido a experiência, ela falou pouco de si e muito dos filhos, da família e marido. "Pensou sobre liberdade?" e ela continuou falando sobre filhos, família e marido. 

Tenho pensado demais sobre liberdade, uma palavra que está mais que nunca em voga. "Como será a liberdade depois da pandemia?", tema predileto em rádios e TVs. Comecei por olhar o que foi minha liberdade antes desta confusão, uma revisão de vida a qual ainda não cheguei a uma conclusão, exceto que me considero um abençoado. A vida que tive e tenho é de uma tranquilidade..., o que de certa forma me dói um pouco. Senso de culpa cristão provavelmente, mas não só. Liberdade é fazer acontecer?

Sentado no meu pequeno jardim conversando com Cristina me dei conta que não é liberdade, mas liberdades, muitas, em muitos sentidos. Estou solto no mundo, quase que completamente livre. Cristina tem as famílias e um extenso grupo de amigas muito próximas com quem está praticamente todos dias. A pergunta "liberdade" não lhe é tão contundente. 

Hoje vou estar com ela para uma pizza de última noite antes da volta para Londres. Deixarei um recado: "olhe mais para si própria, deixe os filhos e a família voarem de si". Ela foi e é uma mãe e mulher de raro valor, tem que começar a olhar para si própria, pelo menos deveria. É o que resta a quem entrou no “senta!”: cinquenta, sessenta, setenta... Pelo menos é o que nos leva ao sinônimo de liberdade: maturidade. Não é a mesma coisa, mas serve bem.

Quem se ver no espelho enxerga seus demônios, os normais, os bonzinhos e os que assustam. Abençoado é aquele que olha no espelho e se vê pleno. A liberdade começa aí, a própria liberdade e a que os outros receberão de você em consequência de seu encontro com sua verdadeira liberdade. Não há liberdade sem disciplina, e não há disciplina sem autoconhecimento. Não há autoconhecimento sem interação com a meio ambiente.

    Sou um acumulador de memórias. Me dão a liberdade de voar sem escalas para meu passado, dos momentos divinos aos complicados. Tudo que tenho tem vida própria, coisa de Disney, como os móveis e utensílios do palácio da Bela e a Fera. Minha casa está lotada de memorabilias, desde dezenas de vidros de café cheios de pequenas lembranças, até um quarto cheio de brinquedos a vista, guardados ou escondidos, e até dois ursinhos, o meu e de meu irmão, tudo com seu significado e sua vida própria.

A liberdade do passado está relativamente bem resolvida. Algumas liberdades que tive no passado não. Erros de escolha, falta de orientação, limites não estabelecidos, besteiras típicas de um tempo passado numa sociedade perdida em suas próprias transformações ininterruptas. São os meus demônios? São fruto de uma busca incessante de liberdade dita coletiva, mas muito individual. Liberdade eunuca.

Creio, repito – creio, que minha liberdade atual também está resolvida. Penso, logo existo. Porque penso e não paro de pensar e porque não param de falar sobre como será a liberdade pós pandemia, que ninguém sabe bem, é que me meti nesta confusão. Trancado dentro de casa talvez não haja coisa melhor para fazer do pensar em liberdade. Quem sou eu?

Sou livre e terei toda liberdade do mundo quando tudo voltar ao normal. Bom, e daí, o que faço com minha liberdade? Alguém tem uma sugestão?

Não tenho mais espaço para as bicicletas e não ganho na Mega Sena

Não tiro na Mega Sena e não me desfaço das bicicletas que lotam um dos quartos e mais as que estão na sala, uma conta que não dá certo porque um dia acabo dormindo na rua para as bicicletas ficarem bem abrigadas. Acho que tem alguma coisa errada: eu. O que me consola é que não sou o único, tenho um monte de amigos que tem o mesmo problema, não tiram na Mega Sena e tem que ficar numa briga eterna com a família por causa do monte de bicicletas espalhadas pela casa. Fora as peças e acessórios. Pior é quando você vicia o ou a companheira e acaba com duas coleções de bicicletas. Faz um bom tempo recebi um Whatsapp de um cara deitado na cama de casal abraçado com sua bicicleta. Mais ou menos por aí. A briga acaba sendo para ver quem dorme no chão abraçado com sua bicicleta. Como já dormi na calçada debaixo de chuva agarrado a duas bicicletas sei como é.
No meio desta pandemia, saindo de casa pouco, estou começando a ficar preocupado com o número absurdo de bicicletas paradas dentro de casa. Para que quero tantas? Pergunta idiota. Só me pergunto porque não posso pedala-las ao mesmo tempo, esta é a verdade. Para cada uma delas tenho um sonho, um desejo de pedal, de trilha, estrada ou viagem que no meio deste isolamento ficam mais vivos e reforçados pela presença de cada uma delas. Fiz a subida do Desafio da Serra do Rastro com minha amada Haro Flight Line 26 em homenagem aos anos, mais de década, de prazer que ela me deu - e continua dando. Parada ao lado dela minha KHS Vitamin A híbrida que me levou em algumas viagens longas. A velha KHS de cromo-molibdênio de estrada saiu faz pouco e é tratada com deferência. A Groove 29 já elogiada aqui que me levou pelo Caminho da Fé. A Trek híbrida 7100 preta pronta para dias de chuva, para-lamas e bagageiro, toda preta, jeito de Europa, chiquérrima. Nas minhas costas está minha Btwin de estrada pronta para fugir agora, neste exato instante. Faço a cama e sumo. Fui, sigo quando voltar.

Desço a escada com a Btwin no ombro. É leve, tão leve quanto qualquer estradeira de marca dita chique da mesma faixa de preço, só que mais barata e muito menos chamativa. No tubo de selim está um selo "designed and tested Flandes" que não dei importância até que um amigo ex ciclista profissional fazer um teste e elogiar muito esta Btwin Triban 500. O significado do selo: alta qualidade. Simplificando: segundo publicações europeias de longe o melhor custo benefício do mercado na época que a comprei.
Todas minhas meninas são assim, deliciosas, não por ser minhas meninas, mas porque são - deliciosas. Duvida? Quer testar?

Em pouco tempo entrei na Anhanguera um tanto assustado com o movimento de carros, muito maior que há alguns dias e nada bom para controlar a pandemia. Pedalei feito uma lesma, olhei de perto o Pico do Jaraguá, ícone de tantos bons sentimentos, e dei meia volta no viaduto SBT.  "As perna num vai". Decisão sábia. Sair com a bicicleta de estrada e voltar depois de 10k é duro, mas muito mais inteligente que machucar um músculo. Ontem já estava com as pernas doloridas, cansadas, e tinha pensado em dar um ou mais dias de descanso para elas, mas quem segura a coceira? A ideia era ir até a balança de Jordanesia e voltar, 30 km ida, 30 km volta, mas seria irresponsável. Conhecer e respeitar os limites é uma benção da maturidade. 

Na volta saí da Anhanguera pelo caminho sinalizado para Mutinga - Osasco, que desconhecia. Curiosidade mata! Passa por uma acanhada avenida de mão dupla, cheia de gente e negócios abertos, nada bom para quem quer manter o isolamento a sério. Pelo menos tinha carros estacionados dos dois lados. Consegui passar longe de todos pedalando forte no meio da rua. Isolamento, isolamento! Um pouco depois cheguei à avenida que ladeia um córrego (av. Onix, depois Av. Brasil) e a angústia deixou de ser as pessoas por perto e passou a ser o horror do córrego completamente poluído, drama muito pior que a pandemia. Cruzo o rio Tiete pela passarela vazia, pedalo mais um pouco e felizmente entro no tranquilo bairro residencial Presidente Altino. Daí para frente pedal isolado até voltar para casa. 

Pelo sim, pelo não, foi um ótimo treino. Minhas pernas doem.

E se tirar a Mega Sena o que faço da vida? Pedalar com certeza, mas o que mais? Faz sentido ter todas estas bicicletas? Compro ou não compro uma casa maior? Que tal pensar em viver? Vale mais a pena. A pandemia e o isolamento me fazem olhar em volta e pensar de outra forma o que quero desta vida. Pedalar para liberdade é uma coisa, ter um monte de bicicletas cheias de sonhos é outra. O que fazer?