quarta-feira, 27 de julho de 2022

Padronização, organização, eficiência e o bem público

O espaço público foi definido por tentativas e erros e hoje seguem regras que atendem a fatores humanos e ou econômicos, dentre outros. Passaram ao longo do tempo por um filtro de lógica, praticidade e eficiência. Do pequeno para o grande, do individual para o coletivo, numa sequência lógica. 
Neste momento da história estamos tentando caminhar do coletivo uniformizado para a maioria para um individualizado que ainda assim atenda o coletivo, o que fortalece nichos sociais.
De qualquer forma algumas convenções não devem ser mudadas porque está provado que são absolutamente funcionais e beneficiam tanto o coletivo quanto o individual. A escala humana é a principal.
A padronização dos utensílios usados pela humanidade surgiu num processo natural de evolução ligado aos usos e costumes de cada local e momento da história. Mesmo um machado de pedra lascada foi criado e evoluiu levando em consideração o tamanho da mão e força de seu usuário ou simplesmente não teria utilidade. A experiência ensinou que cortar um arbusto é uma coisa, atacar um animal é outra, portanto machados diferentes. E está estabelecida a regra de forma e função, com a ela o padrão.
Sabe-se lá quando foi inventada a roda. Com ela está completa a base da evolução: quadrado, triângulo (machado), círculo, e com a roda a linha. Cada forma com sua função. A medida vem como consequência. Experiência, lógica, funcionalidade, utilidade.

Hoje vias públicas e porque não dizer os espaços públicos são praticamente padronizados, processo que começou com o uso do cavalo, que por sua vez influenciou os padrões das ferrovias, que se mantiveram com a chegada da indústria automobilística e com ela foram completamente universalizados. O automóvel quando comparado ao cavalo tem alta funcionalidade, é simples de usar, muito útil, a experiência mostrou que é lógico. A cidade passou a ser pensada e padronizada a partir da lógica do automóvel, faz todo sentido.

A padronização e sua consequente facilidade de uso nos trouxe a precisão, que por sua vez tomou conta de nossas vidas a tal ponto que estamos caminhando rapidamente para uma padronização universal. Não faz muito tínhamos como medidas o métrico, a polegada e mais umas tantas outras medidas esdruxulas, como a britânica Whitwhort, hoje completamente obsoleta e esquecida. O plug dos carregadores de celular será uniformizados em breve. A experiência faz vencer o melhor, mais prático, mais funcional. 
Mesmo para medidas maiores, como ver a largura de uma rua, não faz muito era medida por trena de pano, madeira, ou metálica, e hoje por uma trena lazer, que dá uma precisão impensável faz alguns anos. Conforme o aparelho se pode chegar a centésimo de milímetro, o que faz uma enorme diferença no resultado final de um projeto, construção e manutenção de um espaço público.

Por um outro lado, quanto maior a precisão, melhor o resultado, menor o custo a longo prazo (custo linear), mais benefícios sociais resultantes.

Hoje a padronização busca apoiar-se num olhar muito mais aberto e genérico que foge até do objeto fim. Não é mais uma rua ou uma praça, mas a função social, as consequências sobre o funcionamento da cidade, os custos futuros, meio ambiente... A simples construção de uma residência ideal deixou de ser um só um teto para a família e agora busca os objetivos de cada indivíduo que irá habitar ali, ser autossustentável, ter geração de sua própria energia, reciclagem dos dejetos, reaproveitamento da água, gerar o mínimo de impacto urbano... 
Nesta padronização X individualização os espaços públicos passaram a ter Internet de alta qualidade, o que os transformou em local de trabalho, de lazer, de relaxamento, rede social, compras, liberdade para filhos e pets...

A humanidade chegou aqui com uma padronização cada dia mais sofisticada. Padronização de padronizações, o coletivo atendendo o máximo possível o individual.
Definitivamente organizar uma cidade não é reformar a praça central com novo chafariz, nem construir um portal de entrada na cidade. Também não se pode supor que em nome ao respeito das individualidades se possa quebrar alguns padrões práticos e funcionais que foram construídos por séculos. 

"Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito"

A "Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado democrático de Direito" será lançada em um encontro na faculdade no dia 11 de agosto, no Pátio das Arcadas, e já tem quase 3.000 assinaturas.

https://direito.usp.br/noticia/809469c6c4fb-carta-as-brasileiras-e-aos-brasileiros-em-defesa-do-estado-democratico-de-direito

Dia 11 de Agosto pela manhã será lida a carta no saguão da Escola de Direito São Francisco, Largo São Francisco, Centro de São Paulo. Compareça. 

"Em agosto de 1977, em meio às comemorações do sesquicentenário de fundação dos cursos jurídicos no país, o professor Goffredo da Silva Telles Junior, mestre de todos nós, no território livre do Largo de São Francisco, leu a Carta aos Brasileiros, na qual denunciava a ilegitimidade do então governo militar e o estado de exceção em que vivíamos. Conclamava também o restabelecimento do estado de direito e a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte.

A semente plantada rendeu frutos. O Brasil superou a ditadura militar. A Assembleia Nacional Constituinte resgatou a legitimidade de nossas instituições, restabelecendo o Estado Democrático de Direito com a prevalência do respeito aos direitos fundamentais. Temos os poderes da República, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todos independentes, autônomos e com o compromisso de respeitar e zelar pela observância do pacto maior, a Constituição Federal.

Sob o manto da Constituição Federal de 1988, prestes a completar seu 34º aniversário, passamos por eleições livres e periódicas, nas quais o debate político sobre os projetos para o país sempre foi democrático, cabendo a decisão final à soberania popular. A lição de Goffredo está estampada em nossa Constituição: 'Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição'.

Nossas eleições com o processo eletrônico de apuração têm servido de exemplo no mundo. Tivemos várias alternâncias de poder com respeito aos resultados das urnas e transição republicana de governo. As urnas eletrônicas revelaram-se seguras e confiáveis, assim como a Justiça Eleitoral. Nossa democracia cresceu e amadureceu, mas muito ainda há de ser feito.

Vivemos em um país de profundas desigualdades sociais, com carências em serviços públicos essenciais, como saúde, educação, habitação e segurança pública. Temos muito a caminhar no desenvolvimento das nossas potencialidades econômicas de forma sustentável. O Estado apresenta-se ineficiente diante dos seus inúmeros desafios. Pleitos por maior respeito e igualdade de condições em matéria de raça, gênero e orientação sexual ainda estão longe de ser atendidos com a devida plenitude.

Nos próximos dias, em meio a estes desafios, teremos o início da campanha eleitoral para a renovação dos mandatos dos legislativos e executivos estaduais e federais. Neste momento, deveríamos ter o ápice da democracia com a disputa entre os vários projetos políticos visando convencer o eleitorado da melhor proposta para os rumos do país nos próximos anos.

Ao invés de uma festa cívica, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade democrática, risco às instituições da República e insinuações de desacato ao resultado das eleições. Ataques infundados e desacompanhados de provas questionam a lisura do processo eleitoral e o Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira.

São intoleráveis as ameaças aos demais poderes e setores da sociedade civil e a incitação à violência e à ruptura da ordem constitucional. Assistimos recentemente a desvarios autoritários que puseram em risco a secular democracia norte-americana. Lá as tentativas de desestabilizar a democracia e a confiança do povo na lisura das eleições não tiveram êxito, aqui também não terão. Nossa consciência cívica é muito maior do que imaginam os adversários da democracia. Sabemos deixar ao lado divergências menores em prol de algo muito maior, a defesa da ordem democrática.

Imbuídos do espírito cívico que lastreou a Carta aos Brasileiros de 1977 e reunidos no mesmo território livre do Largo de São Francisco, independentemente da preferência eleitoral ou partidária de cada um, clamamos às brasileiras e aos brasileiros a ficarem alertas na defesa da democracia e do respeito ao resultado das eleições.

No Brasil atual não há mais espaço para retrocessos autoritários. Ditadura e tortura pertencem ao passado. A solução dos imensos desafios da sociedade brasileira passa necessariamente pelo respeito ao resultado das eleições. Em vigília cívica contra as tentativas de rupturas, bradamos de forma uníssona:

Estado Democrático de Direito Sempre!" 

Para assinar a carta - https://www.estadodedireitosempre.com/


terça-feira, 26 de julho de 2022

Chatos

chato
adjetivo
  1. 1.
    que tem a superfície plana (ou quase), próxima da horizontal.
    "painel c."
  2. 2.
    POR EXTENSÃO
    que tem pouca ou nenhuma elevação.
    "nariz c."
  3. 3.
    POR EXTENSÃO
    de pouca altura ou pouca espessura.
    "travesseiro c."
  4. 4.
    POR METÁFORA
    acanhado, estreito.
    "mentalidade c."
  5. 5.
    POR METÁFORA
    sem originalidade ou brilho; monótono.
  6. 6.
    adjetivo substantivo masculino
    que ou o que é maçante, enfadonho ou insistente.
    "conversa c."
  7. 7.
    adjetivo substantivo masculino
    que ou o que aborrece, perturba ou preocupa.

Antes de mais nada; Salve o pai dos burros, o Santo Dicionário! Amém.

Lendo os vários significados de "chato", afinal quem é chato? O que é chato? Depende muito. Chato antes de mais nada é adjetivo, um complemento, daqueles que a educação manda que não se fale cara a cara. Falar pelas costas é comum, mas será politicamente correto, ou nem isto se permite mais?

O cara chato é chato por que ele é maçante, enfadonho, aborrece, perturba, ou porque você o acha um chato? Chatos são tachados pela boiada? Individual ou boiada, tem opção.

E aí, você já se sentiu um chato? Eu me olhei no espelho e o texto saiu. Ressaca de ontem, faz parte.

Você descarta a conversa com um chato? Fala sério, quem não descarta? A imensa maioria descarta, mas talvez não valha a pena. Paciência meu caro, paciência; paciência é a mãe da sabedoria. Aprende-se muito com quem é chato, basta saber ouvir e instigar o melhor que a chatice de quem vos fala pode oferecer. Depois da quinta cerveja vai qualquer coisa, até bafo de alho. 

Agora tem rede social a disposição de todo mundo no celular. É a salvação da pátria. Você senta numa mesa para jantar com uma figura que é um porre e sem maiores formalidades vai ver o que há de novo no Whatsapp, Instagram, Twitter, ou... Pelo cerimonial destes dias nem falta de educação mais é. Os dois enfiam o nariz na telinha, não trocam uma palavra a noite toda e terminam o delicioso jantar sem brigas e discórdias; que maravilha! Mas levante bem o celular para não deixar que o outro de esgueira perceba sua cara de "que porre!". Nas garfadas não dá para disfarçar, mas aí basta enfiar a cara no purê de batata.  
Porre é uma variação turbinada de chato. No tempo da onça era um "chato de galocha". As denominações evoluem. 

Para o pessoal da época do chato de galocha chato mesmo é celular.  Os tempos mudaram. Naquela época, no tempo da onça, uma baforada de fumaça de cigarro longa e bem dada era sinal de "deixa de ser chato" que se podia ler como "como você é interessante". Vide que depois de qualquer cena de sexo do cinema americano dos anos 40 e 50 o casal imediatamente virava cada um para seu lado e acendia um cigarro. Mais ou menos a mesma coisa que acontece agora com o celular, a grande diferença é que o "Foi bom para você" não é mais falado, mas digitado. Cigarro queima e não tem vibrador, então vai com calma.

"Você viu esta?" Clipes de segundos, tudo instantâneo, mensagem cifrada, vc, ngm, emojis, que saco, nada mais chato. Mentira, depende de quem envia. Vai da inteligência. 
Afinal, existe algo mais chato que repetir a mesma coisa toda hora, todos dias? Nada mais chato que a burrice.

Sei, sei, já me disseram: chato é quem não quer viver os novos tempos. Segundo me disseram, nada mais chato que ser antiquado, aquele que não é "in". In... on... in... on... in... on... in... on, ok, sou um asno.

E um dia a coisa legal que se repete vira chata, muito chata. E o chato do passado se descobre que é simpático, cativante, cheio de boa conversa. Ufa!
Como tudo nesta vida, há os chatos inteligentes, chatos burros, os xucros, os grosseiros, us beubos, ah! os beobos! Alguns são irremediavelmente chatos, se não inoportunos, ou até coisa pior.

O problema de boa parte dos chatos é a forma. Se não se ouve, paciência, paciência, não se descobre o conteúdo, que é o que realmente interessa, quando há. Se o conteúdo não interessa quem é chato é que não consegue ouvir. Que chato!

Os que não param de falar, os que falam sem parar, e há uma sutil diferença. Primeiro, os que não sabem o que estão falando. Os que sabem o que estão falando, mas não admitem interrupção, comentários ou intervenção. Os dois são chatos. 
Divertidos são os que falam abobrinhas inconsequentes que nos fazem rir. Um dia vai descobrir que ele também é chato. O zoológico é diversificado. É lógico que tem uns que se pudéssemos jogaríamos pela janela, mas do 10º andar... 

Agora, chato mesmo, aquele chato imperdoável, que precisa ser extinto, cancelado, pulverizado é aquele inseto pequenino, dito piolho, que a gente tira com pente fino e joga na privada. Mais que um pé no saco, ele é tão chato que gruda nos pentelhos... Que horror! 
Tem gente assim? Upa! E como tem! São mais que chatos, são os piolhos sociais. Além de chatos, briguentos. Destes corre, não tem jeito. 
  1. 8.
    substantivo masculino
    ENTOMOLOGIAINSETOS
    inseto anopluro ( Pthirus pubis ) da fam. dos ftiriídeos, cosmopolita, que mede cerca de 1,3 mm de comprimento e vive ger. na região pubiana do homem; carango, ladro, piolho-das-virilhas, piolho-do-púbis, piolho-ladro [A infestação produz manchas azuladas na pele em consequência da toxidez da saliva desse inseto.].

domingo, 24 de julho de 2022

O custo empobrecedor das estradas brasileiras

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Durante décadas a Serra do Cafezal, que sempre conheci como Serra do Café, na BR 116, Regis Bitencourt, teve sua duplicação impossibilitada por uma luta ambiental cujo preço para o desenvolvimento do país foi incalculável, incluindo aí a proteção ambiental. O curto e sinuoso trecho de 30 km de pista simples e mão dupla passou com toda razão a ser chamado de estrada da morte. A lentidão e as constantes paradas do trânsito em razão de acidentes fizeram deste trecho de estrada um dos piores do Brasil. Por mais justa que fosse a causa faltou aos defensores do meio ambiente lembrar, dentre outras coisas, que o que mais devasta é a pobreza. Não é difícil concluir que em razão de uma luta justa houve um empobrecimento de todo país com consequente dano ambiental causado por este processo de justas boas intensões que demorou décadas para terminar. Faltou a todas as partes bom-senso e principalmente inteligência para encontrar uma saída racional, o resto que se dane. Foi tanto tempo de luta na justiça que com certeza teria sido possível abrir um túnel a picareta e talhadeira de ponta a ponta da Serra do Cafezal. O custo Brasil desta estrada disfuncional foi monumental, uma perda econômica que nunca se irá recuperar. Leia matéria sobre os resultados da duplicação.
Fui de carro para Belo Horizonte, de lá tive que ir ao Rio de Janeiro para depois voltar para São Paulo. A BR 40 rumo ao Rio de Janeiro tem uma condição de rodagem vergonhosa para o momento que vivemos e a importância estratégica que tem para a economia do Brasil, do Estado de Minas Gerais e de Belo Horizonte, a terceira  mais importante capital deste país. Incrível que não se tenha aprendido nada com a Regis Bitencourt e sua Serra do Cafezal. É estrada pedagiada e mesmo assim tem vários trechos de rodagem em ridícula pista simples com mão dupla e um pesado trânsito de caminhões. O projeto da estrada é de outra era e ainda não foram realizadas correções no traçado da rodovia, nas inclinações percentuais, na largura da pista e sinalização. É absurdo ter um estreitamento de pista em curva quase na cabeceira de uma ponte simples de mão dupla construída na década de 70; dentre outros detalhes anacrônicos. Quanto empobrecemos aí?
Saindo do Rio para São Paulo, nos primeiros km da Rodovia Dutra, em Nova Iguaçu, o trânsito praticamente parou por mais de meia hora. Pensei que houvesse um acidente, mas não, era só trânsito. Segundo um motorista profissional que vive na e da Dutra a situação é comum e diária numa região recheada de grandes empresas estratégicas para o Rio e Brasil. Imagino que esta situação seja considerada aceitável porque não me lembro de ter lido ou ouvido reclamações. Quanto empobrecemos aí? 
Não podem ser plausíveis as razões para estes anacronismos. É inaceitável do ponto de vista macro econômico, portanto social. É um descalabro o que se sabe de estradas Brasil afora que escoam nossas riquezas. O que fazer se mesmo fugindo a qualquer racionalidade é aceita até esta estúpida incompetência ao redor deste triângulo de capitais cruciais para nosso desenvolvimento e riqueza, leia-se também e principalmente para a diminuição e futura extinção de nossa vergonhosa miséria.
Como fui para Belo Horizonte pela Rodovia Fernão Dias com seus pedágios baratinhos de R$ 2,70 posso afirmar que estrada pedagiada sim, com certeza, mas pedágio populista de pista remendada, mal sinalizada, sem atendimento, definitivamente não. Mesmo os que reclamam reconhecem que as estradas de São Paulo deveriam ser a regra geral. Isto tem um custo e inúmeros benefícios, ou seja, gera riqueza. 
O descalabro começa nas nossas estradas e termina num país sem uma política estratégica de transportes. Imagine só como estão nossas ferrovias.   

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Museu: polo atrativo de público

"Você pega os museus fora do Brasil e em praticamente todos o número de visitantes brasileiros está entre os mais altos. Aqui no Brasil brasileiro não vai ao museu. Este é o problema (para a sobrevivência dos museus no Brasil)."

Confesso que cansei de ver reclamação sobre cobrança de ingresso na porta de museu. Muitos consideram um absurdo a visita não ser grátis. Mas o problema maior é sem dúvida a falta de público muito em parte pelo puro desconhecimento da existência do museu. A sinalização ou inexiste ou é ruim. As cidades não trabalham seus museus como polo atrativo de público.

Europa, Estados Unidos e Canada
As cidades acabam sendo um museu a céu aberto por causa das placas indicativas e explicativas coladas em muros, casas, praças ou mesmo em postes de ruas, tipo “Nesta casa morou o escritor...”, “Aqui foi lançado o...”

A sinalização indicando os museus e pontos de interesse histórico da cidade estão devidamente espalhadas pelas vias principais e levam o turista ou visitante até a porta do museu, quando não indicam com perfeição onde está a entrada e a bilheteria.

França
No meio do nada no sul da França achei em precioso museu de motos e bicicletas. Entrei porque vi sinalização bem posicionada na estrada, Musée de la Moto e du Velo, ou Musée de Bosc entre Nimes e Orange. É um palacete no meio de um grande terreno, com um jardim muito bem cuidado, uma recepção simples onde se cobra uma entrada, não me lembro quanto, nem estou preocupado com isto, e se ouve alguma explicação. Dentro há um impressionante acervo de bicicletas, várias ainda do século XIX, draisianas e biciclos originais, e motos. É uma coleção de respeito, e como é, distribuída pelos cômodos do palacete. Não faço ideia de qual é o número de visitantes que recebem, mas o site, https://www.bosc-musees.fr/, deixa claro o quanto a coleção é levada a sério. Detalhe: olhando agora o site descobri que o museu tem aviões, o que não vi ou ainda não estava lá. Adoraria ter visto o MIG 17 que um dia montei em plastimodelo. Saí de lá pensando como sustentam e mantém aquele impressionante acervo. Uma coisa é certa: tem o apoio do Governo Francês.

Florida
No meio do caminho entre Saint Petersburg e Orlando, Florida, tem um museu aeronáutico de cair o queixo, o Fantasy of Flight, que recomendo muito. Pela estrada vão aparecendo grandes placas tentadoras convidativas para uma visita que se torna realidade quando se vê uma placa indicando que em tantas milhas tem uma saída, também sinalizada, para o museu. Da estrada principal para o museu a sinalização é clara, sem deixar qualquer dúvida até cruzar a porteira e estacionar o carro. A recepção no museu é simples, formal, agradável e direta. Já nos primeiros momentos você sabe o que vai encontrar ali e o quanto pode se divertir. Confesso que fui às lágrimas quando vi um Grumman Wildcat ligar os motores, decolar e fazer um show aéreo para o ansioso público. Cada dia voam com um dos inúmeros aviões da coleção. Pagando um extra é oferecida uma visita ao hangar onde restauram ou reconstroem os aviões. Pagando um pouco mais é possível voar num dos biplanos da coleção.

Musée de Bosc e o Fantasy of Flight são sustentados por entidades privadas e muito provavelmente devem ter algum estímulo financeiro dos governos.

Europeu e americanos aprenderam que a propaganda é a alma do negócio, daí a sinalização de estradas e ruas normalmente ser clara e não dar margem a erros ou ficar perdido.

Aqui é muito comum você entrar numa cidade de interior, seguir a placa "centro" e no meio do caminho se perder. Aconteceu comigo neste fim de semana. Fiz voltas para chegar próximo do centro e mais ainda para chegar na praça da igreja da matriz. Só cheguei na igreja porque dava para vê-la de longe. A sinalização falha ou inexistente é fato comum. Provavelmente quem determina o local das placas é da cidade e fez o "caminho que todos fazem", leia-se todos da cidade, não um forasteiro.

Joinville
O museu das bicicletas de Joinville é (ou foi) um dos principais polos atrativos da cidade. Enquanto estava sob o comando de Valter Busto o MuBI chegou a receber até 8.000 visitantes / mês, pelo que foi dito mais que todos outros museus da cidade juntos. Isto sem nenhuma placa ou sinalização na estrada, a BR 101, uma das mais movimentadas do país. A posição do museu na cidade é boa, no final de uma avenida e numa praça de onde se vê a antiga e restaurada estação ferroviária. Mesmo para quem nunca esteve em Joinville é fácil de chegar até lá e estacionar o carro. Próximo do museu há locais bons para comer e um pequeno shopping center. Ou seja, o entorno ajuda.

Socorro
Em Socorro está o CCM, Centro Cultural Movimento, um museu dedicado a história da moto com um acervo incrível sobre o motociclismo de competição brasileiro, provavelmente o único acervo deste porte no Brasil. Por se tratar de um acervo de duas rodas tem algumas bicicletas, mas o foco mesmo é sobre motos e volto a dizer que é impressionante. Tudo está dentro de uma recém-restaurada estação ferroviária. Junto foi restaurado o entorno direto da estação criando um espaço público agradável.
Socorro está entre Bragança Paulista e Águas da Prata. A estrada é estreita, mão dupla, e no trecho para Bragança o pavimento está bem ruim, bem ruim. Para quem vem de São Paulo é uma viagem relativamente longa não na distância, mas no tempo de viagem: segundo o maps.google pelo menos 2h36m para 164 km. Dependendo por onde se vá é um pinga-pinga de cidadezinha em cidadezinha com curva não acaba mais.

Socorro é uma cidade cortada por um rio com uma topografia bem acidentada, o que fez com o recorte urbano seja irregular e circular pela cidade não seja algo fluído. O CCM está próximo do centro, o pouco significa como ponto de referência. Dependendo por onde se entre na cidade é um tanto complicado chegar ao museu; aliás, é um tanto complicado chegar até o centro da cidade, que por sua vez não está concentrado num ponto só da cidade, mas dispersado em praças e ruas umas 'distantes' das outras, quando não por subidas íngremes. A estrada contorna por um dos lados da área central com alguns acessos para a cidade. A sinalização nas entradas também não ajuda, muito menos para se chegar no CCM.
Estacionar em volta do CCM de moto é fácil, de carro nem tanto, ou não é, dependendo se o supermercado em frente está ou não aberto. Se não encontrar vaga e tiver que dar a volta para procurar lugar para estacionar existe a chance de se perder, situação pela qual passei.

O CCM foi aberto a pouco, uns seis meses, e há por parte das autoridades vontade de ver o museu decolar para valer. Veremos.
O CCM tem um acervo com uma qualidade que se vê em raríssimos museus ou coleções mundo a fora. Merece ser conhecido, aliás, imperdível.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

O custo da bagunça numa cidade

Está pipocando edifício por tudo quanto é canto. Mesmo numa cidade como São Paulo que tem um mar de edifícios fica claro que a panela está quente para o mercado imobiliário. 


Qual é o problema desta panela quente?
Não vou entrar no perigo da bolha imobiliária, na crescente inadimplência, deixo isto para economistas. Fico na questão urbana, na cidade como comprovado instrumento civilizatório.
   
"É só um edifício? Precisa lugar para as pessoas morarem."
Antes de mais nada é uma cidade, esta é a questão. O ou um edifício faz parte da cidade, não é uma unidade onipotente, soberana, isolada de outras realidades. Interessante que nas propagandas nos entregam nas esquinas o entorno do novo empreendimento sempre desaparece ficando o edifício prepotente em sua beleza. Beleza? Você decide.   
 
Um edifício novo construído no lugar de algumas casas demanda investimentos públicos em água, esgoto, energia, vias públicas. Se em duas casas moram duas famílias, num edifício baixo, de 10 andares e dois apartamentos por andar, vão morar 20 famílias.
Quem paga a conta das melhorias públicas necessárias para dar suporte a estas novas moradias em parte vem de seu bolso, contribuinte. "Mas eles também vão pagar os tributos e serviços." Sim, depois que o edifício estiver todo vendido e habitado, mesmo assim nem todos custos públicos vão ser cobertos. O aporte inicial nas contas públicas sai do bolso de todo cidadão, a bem dizer em benefício das empreiteiras e incorporadoras.

"Eles também são cidadãos, tem o direito de comprar um apartamento para morar."
A princípio sim, tem direito a moradias, mas quem dá o direito aos moradores de um edifício a criar sombras nos vizinhos, a mudar o fluxo de ventos, de deixar as casas no entorno com umidade, a mudar a paisagem. Que direitos especiais têm os moradores de um edifício alto a de ter uma vista sem obstáculos, ter insolação do perfeita do apartamento, uma ventilação interminável e com muito menos poluição que os simples mortais que vivem aos seus pés? 
O que lhes dá tantos direitos? Dinheiro? Onde fica o direito coletivo de todo cidadão? 
Quem ganhou com isto? Quem ganha com isto? 
Qual o preço para a cidade? 
Eu colocaria ai muros, condomínios, ruas fechadas, qualquer direito especial. Não excluo invasões. Quem ganha com estas situações? Quem perde?


Guarujá e Balneário Camboriú
Guarujá foi conhecida como "A Pérola do Atlântico". Vivenciei um Guarujá ainda com casinhas a beira mar, uma delas literalmente suíça, ou seja, trazida desmontada da suíça num navio e montada ou construída na beira mar, outras projetadas por arquitetos renomados aqui no Brasil e mundo a fora. A praia era limpíssima, o mar translucido, a vida tranquila, segura e muito agradável. Éramos crianças e circulávamos livres, leves e soltos por toda a cidade. Muitos turistas estrangeiros. Infelizmente não cheguei a ver o hotel casino, que todos dizem que era uma maravilha. 
Falo da década de 60. Em 1969 a tampa de um bueiro explodiu por pressão do esgoto e meu tio decidiu mudar seu local de férias. Guarujá já crescia sem controle e com seguidas denúncias de corrupção.   
Era coisa de elite, sim. Na mesma época vivenciei Santos, uma cidade de classe média com personalidade própria, aliás um dos celeiros de profissionais de primeira linha do Brasil. Santos preservou-se, Guarujá virou uma baderna.
 
A tradicional Santos e os novíssimos espigões
Liberaram geral as construções em Guarujá, não houve qualquer preocupação com água, esgoto, energia, logística de distribuição de bens e alimentação. A pequena e agradável cidade virou uma baderna na temporada, quase uma guerra civil. No supermercado ainda hoje chega a ter fila de horas para conseguir entrar e comprar. Ridículo. E a violência é contínua e escandalosa, na cara de todos - literalmente.
Não posso deixar de fazer um paralelo de Guarujá com Camboriú.
Cheguei a conhecer Camboriú sem a maluquice dos edifícios, arranha-céus, que hoje assustam quem os vê passando pela BR 101. Era conhecida como a Guarujá do sul e seguiu o mesmo caminho de Guarujá na sua selvageria imobiliária. Deprimente!
Ridículo, mas os edifícios altíssimos de Camboriú tiraram o sol da praia e Governo e Prefeitura teve que esticar a arreia da praia, uma prática que se sabe que causará problema ambiental em algum lugar, ou em vários outros pontos do meio ambiente marinho. Mesmo assim a praia continuará sombreada, um pouco menos, mas sombreada.
Não sei como está o perfil do turismo argentino lá em Camboriú, mas com certeza não é um turismo com alto valor agregado. Vão para lá porque dependendo da época e da cotação Real - Peso vale a pena, mas é sabido que a maioria é turista difícil.

Santos irá imitar o brutal fracasso de Camboriú? Duvido, talvez queira ficar tão rica (?) e chique (?) quanto São Paulo. Não importa as razões, o que está acontecendo não é nada bom. Santos tem uma personalidade forte, uma alma de raro valor, uma história que deveria ser preservada. Preservar não significa necessariamente estancar o progresso, mas organizar, colocar limites, preservar a alma da cidade. Isto não está acontecendo. Pipocam edifícios imensos deformando bairros.

O grande problema das cidades brasileiras esta num "eu quero o meu já", provavelmente "o" câncer do Brasil. Políticos e população está preocupada com ter a sua parte imediatamente, sem pensar nas consequências futuras. Aí dançou tudo. O preço desta monumental besteira pagamos dia a dia e não aprendemos. Copacabana não é uma praia sombreada? Desde quando? Aprendemos com isto? Mar poluído afasta turista de valor agregado? Ter a cidade mais que lotada só por alguns dias do ano é bom negócio? Estrada entupida ajuda? Turismo sem valor agregado vale é realmente rentável?  

Santos e os farofeiros

Tem que proteger a cidade? Sim, tem. Podem ser ações simples. Santos, por exemplo, chegou num determinado ponto quando tiveram que proibir a entrada de ônibus fretado com farofeiro que invadia a praia, enchia a cara, colocava som batidão a mil, fazia algazarra, afastava outros turistas, não gastava um centavo e ainda deixava a praia imunda. Eram todos farofeiros que faziam isto? Não, mas a maioria não queria controle. Santos sob pesados protestos foi a única a tomar a atitude de barrar farofeiro? Não, de bate pronto lembro de Ilha Bela que também deu um basta. Todo farofeiro age assim? Repito, definitivamente não, é uma minoria que ninguém controla ou tem interesse em controlar, nem sequer os prejudicados que viajaram juntos e não gritam um "basta!"
A opção lógica: trabalhar turismo com valor agregado.

   
Santos
Farofeiro é relativamente fácil de controlar. O estrago que causam é reversível, mas dependendo dos estragos difícil de reverter. Já a selvageria das classes média e alta e seus novos edifícios pomposos é um problema infinitamente maior para o Brasil, primeiro porque não há educação e cultura para entender que é um problema, depois porque se crê que não é selvageria, mas crescimento econômico, finalmente porque o estrago é praticamente impossível de ser revertido. 
Santos é uma das poucas cidades deste país que tem uma personalidade característica e forte. A nova geração de moradores simplesmente não tem cultura para entender o que isto significa em termos de qualidade de vida. O resultado é que Santos está lentamente sendo deformada pela construção de edifícios desproporcionais. Há uma luta para frear o processo, pelo menos isto.
Isto não é liberalismo, mas selvageria pura. Os únicos que realmente vão ganhar com esta loucura são as construtoras e empreendedoras. Não esqueçam, o futuro dirá.
Enquanto estava tirando esta foto se aproximou uma bela mulher jovem com sua filha de 17 anos que acabou de entrar na faculdade de arquitetura. A mãe me perguntou o que eu tanto olhava e fotografava o edifício da foto que se vê na foto ao lado. Dei minhas razões, que já expus aqui, e ela me contou que a filha vive perguntando no que vai dar esta festa de arromba de arranha-céus. 
- Tem vários problemas... Com a perda da identidade, há uma ruptura da história da cidade, dos cidadãos, do passado, e está provado que isto resulta em violência... 
No que vai dar esta loucura? Ninguém sabe ou quer falar, mas... tem tudo para não dar certo. Tem bastante gente que aposta em isto é bolha e que vai explodir. Veremos.

quinta-feira, 7 de julho de 2022

Ler o manual para não ter pesadelos depois

Qual é o seu símbolo máximo da sociedade do desperdício? Para mim o guarda-chuva vagabundo vendido com facilidade no desespero da população frente a chuva. Comprou, ventou, quebrou. Se não ventar quebra também. Interessante que não é um fenômeno de país pobre. Em NY e Paris é trivial encontrar algum deles entupindo as lixeiras. Um crime em nome de tentar chegar em casa seco. Fosse só este...

De jeitinho em jeitinho foi criada a humanidade. Os bons jeitinhos foram assumidos por razões obvias e viraram padrão. Mas a lógica não caminha por ai e tem muita porcaria que não tem jeito que continua em nossa vida. A quantidade de bens que temos em casa hoje em dia é absurda se comparada com menos de um século atrás, muitas destas "recordações" sequer funcionam ou um dia funcionaram. 
Bom produto é prático, funcional, usável por qualquer idiota. Sim por qualquer idiota. Se o produto precisa de um gênio para funcionar não é prático. Colocar na tomada, ligar, funcionar. Não precisa manual, basta agir; e aí está o perigo: desperdício, o risco desconhecido, não calculado. 

Não li o manual da bateria nova de meu computador e estúpido de não tê-lo lido provavelmente a danifiquei. Foi então que li o bendito manual. Estúpido! Dormi logo em seguida e tive pesadelos com a burrice, acordei no meio da noite angustiado. Luz acesa, procurei um livro para pegar no sono novamente e dei de cara com "Against the Gods. The remarkable story of risk" de Peter L. Bernstein; que pelas primeiras páginas já sei que vou me divertir. Duas páginas lidas, não paro de pensar, vou até o computador, ligo, deixo carregar a bateria e descubro que - felizmente - a bateria não foi danificada. Vai entender? 
Estamos na era do vencedor de desafios, do perdedor e da maioria, a boiada. Produtos bons são criados para a boiada. Tem que vender, então não adianta criar para minorias. A questão é que a boiada, faço parte dela, não tem saco para ler as instruções de como funciona.
Porque ler o manual da bateria nova? Não é, ou não deveria ser, ligar na tomada e deixar carregar? Sim, plug and play; dot! Você já leu o manual de sua bicicleta? "Como assim? Bicicleta tem manual?" Se não tem, melhor, se não lhe foi entregue é por falha de quem vendeu. Por lei tem que ter, mas a lei, ora a lei... 

Uns dias depois tive pesadelos, agora com a corrente 9 marchas que mesmo nova já deu problema duas vezes. Errei na montagem? Pode até ser, duvido, mas não sou um idiota no assunto, imagino eu, mas mais um trouxa do mercado feito de tentações. Não li o manual, simples assim, pau na minha burrice de olhos arregalados no meio da noite. Pesadelo com corrente de bicicleta. Preciso de um psiquiatra, líquido e certo. "Ler manual de corrente, está louco?"

A padronização dos utensílios usados pela humanidade sempre teve um processo natural de evolução ligado aos usos e costumes de cada local e momento da história. Mesmo um machado de pedra lascada foi criado levando em consideração a dureza e tamanho do que é necessário cortar, o tamanho da mão e força de seu usuário, ou simplesmente não teria utilidade. Cortar um arbusto é uma coisa, atacar um animal é outra, portanto machadinhas diferentes. Mas os tempos são outros, funcionalidade é coisa do passado. Precisa de manual? Se tiver instruções sobre como cortar melhor aquele galho de árvore talvez seja uma boa ideia, mas quem vai pensar nisto?

"Vou comprar um computador, qual eu compro?" e a amiga respondeu "Para que quer usar?". "Não interessa para que eu quero usar. Quero saber qual é o melhor?" e conversa encerrada. Computador comprado, fios ligados, ligados na tomada, caixa descartada com o manual dentro, e... e... e... 
02:00 h da madrugada, toca o telefone. Depois de um tempo ele levanta da cama quentinha e vai atender achando que alguém morreu
- Preciso de uma ajuda tua...
- O que houve? Você está bem?
- Não consigo fazer o computador funcionar...
- Me acordou para isto? Porra meu! Leia o manual.

Tudo tem seu manual de instruções, o que não deixa de ser só as referências corretas para o bom uso do produto. Hoje temos informação de boa qualidade para tudo relativo a nossas vidas, até para o que vai dar depois das eleições. Não tenha pesadelos nem se arrependa depois. O estrago pode ser muito mais alto que você possa imaginar. 

terça-feira, 5 de julho de 2022

Vida e quase morte de Carlota Joaquina

Qual é o sentido da vida?

A belezura da foto é Carlota Joaquina, uma belíssima schnauzer que hoje deve ter uns 8 anos. Foi adotada e não se sabe quantos anos viveu trancada, pelo menos quatro ou cinco, numa gaiola servindo de reprodutora para um canil de Piedade, o mesmo que Luiza Mel teve que resgatar 1707 cachorros.

Quando chegou em sua nova casa não respondia a nenhum chamado, parecia um pano de chão. Com tempo, muito carinho e estímulo que ganhou de Tereza foi aflorando, ganhando vida, seu corpo recuperou-se, ficou linda, carinhosa, tornou-se uma cachorra alegre e feliz. Com ela entendi o significado de reviver, que é possível recuperar vidas quase mortas. A bem da verdade minha prima que está com Alzheimer também passa pelo mesmo processo: revive com os ótimos cuidados que vem recebendo, coisa infelizmente para poucos neste país.

Ver o outro reviver por um lado é uma alegria, e para quem gosta de pensar é um levantar poeira sem fim.

E vieram os primeiros desmaios Carlota e com eles o diagnóstico de um coração aumentado com má formação nas válvulas. "Pelo menos demos três anos de vida normal e feliz para ela" diz Tereza com muita tristeza.

Semana passada com muita dificuldade para respirar foi levada ao hospital veterinário e lá ficou por três dias e noites. Descobrimos que cachorro que não deita e respirando com pescoço esticado é porque está com líquido no pulmão, ou seja, está morrendo afogado.

No segundo dia da internação de Carlota peguei uma folha e escrevi o croqui para um texto que não tive condição emocional de subir no blog. Depois que Carlota voltou para casa tentei escrever em cima das anotações, mas foi impossível, a cabeça daqueles momentos angustiantes se foi. Humanos tem uma impressionante capacidade de superar situações negativas, mesmo que seja aos pedaços. Agora tento escrever, mas ainda não consigo encontrar o caminho. É muito a se pensar, os pensamentos passam muito rápido, são muito densos, tudo muito intenso.

Não, não há drama; é o que é.

Pela cabeça passou de tudo, da pergunta "qual é o sentido da vida?" até um "qual é o valor da vida?", nos dois sentidos, incluso o monetário. Entrou nestas contas a história de minha mãe que ficou doente por décadas e num certo momento teve uma internação em UTI com puro viés financeiro para o hospital; ou, a medicina como busines. Passou a história de minha prima com Alzheimer e o entender que é privilegiada. O que será do pessoal que não tem condição financeira para dar o tratamento adequado? É o que mais tem. De gente miserável que passa fome, dos absurdos que estamos vivendo neste Brasil, e porque não dizer no mundo, na África. Os beagles cobaia resgatados engaiolados numa indústria farmacêutica. Veio a lembrança da expressão de conforto que minha beagle Filó me olhou no meu colo quando a colocamos para dormir. Câncer na boca, coisa horrorosa, mesmo assim só foi autorizada a eutanásia só depois que Filó ficou 36 dias sem comer, sim 36 dias. Todos sabíamos que era irreversível, mesmo assim... Billy, um pequeno poodle preto mágico, de rara inteligência, que teve mais sorte, ou recebeu mais piedade, e foi colocado para dormir bem antes no colo de Tereza.

A pergunta central foi e continua sendo "Depois de tudo que Carlota passou no canil, quatro anos numa gaiola parindo, ela merece que se estenda seus sofrimentos, que sofra mais?" Minha resposta é não, não se deve estender a vida. A vida deveria seguir seu ciclo natural. Se Carlota estivesse na natureza já teria partido, mas não, aqui ela é pet, animal doméstico com tudo que isto implica no individual e no coletivo, incluindo no macroeconômico, na geração de empregos, na indústria do bem, na mesma indústria que faz tanto mal para o meio ambiente, para milhões e milhões de seres vivos, fauna e flora, micro-organismos e outros mais.

Qual é a finalidade da medicina moderna, estender a vida infinitamente ou dar qualidade de vida, conforto?

Animais domésticos são cruciais para estabilizar emocionalmente boa parte da população. O outro lado desta história é que enquanto o setor pet cresce sem parar, um dos negócios mais lucrativos, a proteção de sistemas de meio ambiente primários e secundários é depredado impiedosamente sem que a mesma população que tem pet use todo seu carinho, amor, ou o que quer que seja, para impedir o genocídio ambiental. Quanto se faz de doação perto do que dos gastos/mês com a manutenção de um pet? Bingo!

Carlota voltou para casa e ficou bem por algumas horas. Voltou ao estado anterior. O mais impressionante desta história é que ela olha para a gente pedindo ajuda, pedindo que façamos alguma coisa para ela se sentir melhor, como se em sua memória estivesse vivo os anos de martírio na gaiola. A bem da verdade nada diferente do olhar de minha mãe já em seus últimos dias de vida. Ou de minha avó quando pediu para não ser ressuscitada mais uma vez. Ou de Sérgio que paralisado por um derrame e chorando quando passou por mim numa maca rumo a seus dias finais. Ou de...

Qual é o valor de uma vida? Qual é o preço de uma vida? O que faz com que não se levante a discussão séria, neutra, proponente sobre a morte, ou o eterno dormir?

Ironia do destino Carlota está dormindo depois de ter passado mais ou menos uns dois dias em pé. Respira com certa dificuldade, olha para a gente com expressão agoniada. Todos os veterinários dizem que se ela come e bebe é porque está bem. Não está, definitivamente não está.

Olho para ela sentindo um profundo desconforto. Estou eu errado? Quero encerrar o meu sofrimento ou o dela? Os pensamentos simplesmente não param. Uma coisa é certa; a medicina deu um salto de qualidade imenso nestes últimos anos, muito em conta por ter virado negócio, mas a vida é negócio? Vamos salvar toda a vida do planeta? Se isto acontecer vai ser um caos.

Onde está o equilíbrio?



ABRAz - Associação Brasileira de Alzheimer
ir ao hospital veterinário
estou exausto emocionalmente
não consigo parar de pensar nesta situação (e vínculo com um contexto maior - tratar alguém com Alzheimer, minha própria vida, qualidade de vida...)
(lembro de minha mãe) caiu no sistema de saúde não sai mais
(deixa) moribundo ou (o sistema busca) salvar vida?
Carlota não tem solução. De qualquer forma não vai ter qualidade de vida, vai sofrer
(depois de tudo que Carlota passou - quatro anos numa gaiola - será que ela merece sofrer?)
Alongar a vida é preço religioso. Manter viva a força de trabalho depois da peste negra que dizimou a população europeia. Morte é falta de trabalhadores.
Quanto vale $ um internado (num hospital)? Qual é o percentual no ganho bruto dos hospitais com a manutenção - alongamento - da vida?

Lollia e o hospital que manteve, estendeu a permanência dela e de outros na UTI para cobrir os gastos com a nova aparelhagem? (história real que foi aberta por um médico da equipe e confirmada mais tarde por outros)

Caiu no sistema perdeu direito a sua própria morte (direito de vi ver ou morrer). Ninguém tem. Entrou faz parte do sistema (corporativismo e lucro)

Foram quatro dias muito pesados, muito pesados.