terça-feira, 28 de janeiro de 2014

o status da bicicleta

A Land Rover Discovery com uma bicicleta topo de linha pendurada no rabo é roubada por homens armados e logo em seguida encontrada intacta, mas sem a bicicleta. Simples: a bicicleta é muito mais difícil de ser encontrada, muitíssimo mais fácil de vender, e dependendo do modelo o preço alcançado pelos ladrões seguramente é mais alto que o pago pelo roubo do carro, mesmo sendo uma Land Rover Discovery nova.

Talvez a pergunta mais frequente que me fazem é porque não compro uma bicicleta topo de linha?

Me lembra uma história (real) que aconteceu na av. Cidade Jardim nos primórdios do celular. O carro grande e importado de uma senhora quebrou no meio da avenida na hora de pico. O pessoal tentou encosta-lo, mas com o câmbio automático travado não saiu do lugar. No meio da confusão, buzinas e xingamentos, a senhora desesperada viu um sujeito bem vestido dentro de um carro esportivo com janela aberta e falando num dos raríssimos celulares então existentes. Foi até o homem e pediu educadamente:
- Boa noite. Estou com o carro quebrado atrapalhando o trânsito. Por favor, me empresta o celular para chamar o socorro.
O homem fez que não a viu nem ouviu. Ela repetiu calmamente o pedido. Ele olhou para ela e continuou falando no celular, esnobando. Irritada, ela repetiu o pedido mais enfática.
- Me empresta o celular. Não dá para parar todo o trânsito... Eu pago a ligação!
- Você não vê que estou falando? Não vou emprestar! Compra o seu.
E a senhora, num ato quase de fúria, simplesmente arrancou o celular da mão do homem... e descobriu que era uma replica de plástico daquelas compradas em qualquer camelô.

As malas Louis Vuitton foram compradas as duras penas em prestações. Imediatamente depois da compra, ainda dentro do shopping, foram jogadas dentro do porta-malas meio sujo do carro, e ali ficavam até ganhar um ar de bem viajadas. Então foram assim não mais que simplesmente esquecidas na sala de estar da boa casa em bairro nobre, para a inveja das amigas.

A bela casa no bairro nobre, bem ajardinada, com entrada, salas de estar e jantar, lavabo e cozinha ricamente decorados para os convidados. Não houve dinheiro para o resto da casa e o conforto da família, que vivia precariamente acampada ali.

Quais são os valores mais caros para uma vida? 
Eu adoraria ter uma bicicleta topo de linha, ou melhor, várias bicicletas, muitas, mas e daí?
Bicicleta hoje não passa do status da moda. Confesso que isto me incomoda. 

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

voo de urubu, águia aprendiz

A Ponte Bernard Goldfarb sempre foi meu voo sobre a paisagem do rio Pinheiros, sua várzea urbanizada e ainda verde, o Pico do Jaraguá ao fundo e as variações de horário, clima e ventos. Um voo apertado, com uma pitadinha angustiada, entre a mureta que me segura de um salto idílico nas águas límpidas onde minha mãe ainda menina nadava no rio, e carros e ônibus circulando na faixa apertada  que cruzam para a outra margem num sobe e desce. Dos veículos não há tempo para se tirar os olhos do caminho; nem imaginar parar, encostar à mureta e olhar, girar a cabeça e continuar a olhar, 360 graus de cima. A bicicleta já se fez amiga da mureta.

Manha quente e na parede do grande edifício novo que fica do outro lado do rio, na cabeceira direita da ponte, um urubu aproveita a térmica e o vento que bate e sobe rente à parede, e exercita um voo suave, fluido, de discretas correções com asas e rabo. Eu o vejo do topo da ponte, num de seus rasantes. Paro a bicicleta já na descida e voo junto, sentindo com grande inveja as mudanças de direção, a o peso da força da longa curva anti-horária, do sobe e desce, a delícia de passar rente à parede atirado ao ar, sob controle, para quem quer que dos funcionários enfurnados em seus trabalhos possa ver uma sombra preta, sair da tela do computador, e voar na paisagem dele, urubu. Voa em círculos e mais círculos, no seu voo, simplesmente voo, urubu, nada mais, nem razão de ser, mas prazer. Ele abre o círculo, sobe, diminui sua velocidade, abre as asas imponente e pousa escondido de meus olhos no edifício em frente, do outro lado da avenida. Sigo olhando para cima encantado pela natural maestria. Se faz um breve silêncio em meu êxtase. “Hora de seguir...” Mas outras asas se abrem no beiral, menores, cinzas escuras com as pontas brancas; também retangulares, e uma cabeça branca com um formato delicado e um olhar irrequieto e um tanto ameaçador. Para decolar bate as asas com força, mas um tanto desajeitadas para a leveza de um urubu. Perde altitude para ganhar velocidade e cruza a avenida no sentido da parede do grande edifício. A águia, imponente na sua postura, busca fazer os mesmos círculos do urubu, como fosse um desajeitado aprendiz. Dá algumas voltas, sobe e pousa no telhado do edifício provavelmente próximo do urubu. Qual será a conversa, os olhares?

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Mudança de rumo

Liberdade. O que será liberdade?
Na terra dos super-heróis, que num passe de mágica resolvem tudo, você se vê obrigado a também resolver todos seus problemas e se possível dos outros, aguentar qualquer tranco, lutar, lutar, lutar e não fraquejar, e não passar vergonha na frente dos amigos e família, principalmente do seu próprio ideal, “The Eghrói”, o herói do próprio ego. Invencível! Vai-se levando até dar merda. Aí, de herói se passa a coitadinho ou idiota.
Na terra e no asfalto dos super-ciclistas os quilômetros rodam em disparada até que a leveza do ser compre um chão impossível e inesperado. Sem perdão! Como um pimpolho – adolescente, feliz e exausto com a divina noite de beijos, longas carícias e chupadas com a amada jovem namorada, toda sorridente, muito bem formada, durinha, bonita e fogosa, desce as ruas vazias da madrugada agradavelmente agasalhada por um céu outonal pedalando em suaves zig-zags de alegria, para lá e para cá, olhando a lua crescente com seu sorriso de gato, deixando que velocidade e o vento na cara aumentem na descida em zig-zags orgásticos e então a roda da frente se fecha e o super-jóvem-apaixanado sai voando por sobre o guidão, tangencial ao leito de asfalto áspero que rasga a roupa e vai lixando a pele, deixando um rastro de mais de 10 metros no leito negro da rua. Parou. A bicicleta torta passa rangendo e para mais adiante. Silêncio completo. Só uns primeiros pássaros madrugadores piam ainda meio adormecidos. Gemidos, alguns gemidos seguidos de uma gargalhada indefinida pelas horas bem passadas e o ralado presente. Interessante: daquele ângulo, rosto colado ao chão, a terra parece plana.  
“Acidentes acontecem. Só pode ser piada!”
Não existe liberdade sem disciplina. Não existe felicidade sem disciplina. Disciplina. Disciplina. Não existe mudança de rumo sem disciplina. Disciplina. Maldita falta de disciplina... onde está o papel que fiz anotações e que deveria estar aqui (no meio deste caos de papeis amontoados...)? Sim, sim, aqui está, vamos lá:
Percepção correta
Pensamento correto
Fala correta
Comportamento correto
Meio de vida correto
Esforço correto
Atenção correta
Concentração correta
Sem disciplina não há liberdade e felicidade. Mas o que é liberdade e o que é felicidade? Responde um compartimento indefinido e especial de minha consciência: a vida é como as nuvens: algumas vezes as vemos, quando as vemos sempre passam e nunca mais serão as mesmas. Liberdade e felicidade têm lá suas dinâmicas, algumas vezes invisíveis, imperceptíveis, outras passam e tiramos proveito. Sobre o bom não nos questionamos. Que desperdício!
O jovem ciclista ficou no asfalto olhando em volta a procura de um socorro, uma mão amiga que o levantasse dali e o fitasse com olhos caridosos. Não ouviu sequer um apito de qualquer guarda-noturno, àquela hora já encostados num canto e roncando a espera do som do despertador de seu patrão. Levantou-se dolorido, olhou com tristeza e raiva a bicicleta e sua roda torta como um 8, levantou-a como pode e foi arrastando-a para casa, com desejo do banho e finalmente o conforto inequívoco da cama. E assim foi, até o dia seguinte quando acordou com o lençol grudado ao corpo raspado, dos pés a cabeça. Levanta da cama, enrola-se no lençol meio branco meio rosa sangue, abre a porta e dá de cara com a santa mãe no corredor. Perplexa, mas acostumada, ela pergunta - “O que é isto menino?”. A resposta foi mais fácil e menos dolorida do que ter que depilar o lençol grudado debaixo do chuveiro.
Cuidado com carinho maternal, esterilizado, vestido só num calção, senta-se à mesa posta para o café da manha, divino como sempre, com pão fresco, crocante, recém saído do forno, ainda quente, geleia caseira meio azeda de mexerica do rio, manteiga, e um forte aroma de bom café que ainda no fogão goteja do coador no bule. Senta-se ela na cabeceira, estende a mão, me olha com o verdadeiro carinho severo de mãe.

- Meu filho, a verdadeira mudança não está lá fora, mas em você. Se você não mudar não vai conseguir a felicidade que tanto quer. 

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A vida e o karma da bicicleta

A vida tenta nos ensinar, mas é difícil, quase impossível aprender. Com frequência ela nos leva e nosso ego ainda delira que estamos conduzindo a vida. Fruto da acomodação.
Esta semana estive a mercê dos desígnios chatos vida. Oh semaninha! Provavelmente foi um treinamento zen. Vale para quem acredita. Ainda não sei o que devo tirar deste aprendizado. Talvez o recado seja a paciência por si só, o que já bastaria. Zen...
Não somos treinados para olhar com atenção e aprender do que a vida em seus detalhes mais simples e bobos nos ensina, ou tenta nos ensinar. Temos um bloqueio que serve para proteção da saúde mental que estabelece até onde conseguimos absorver as verdades da vida. A partir dai entra a fantasia não só um instrumento de acomodação, mas principalmente de sobrevivência. Passou de certa aceleração é arremessado pela tangente incerta. O problema é que a fantasia é verdade coletiva e parece o caminho correto dos ineptos funcionais.
E ai vem a magia da bicicleta, como a da vida. Bicicletas tem vida própria, tem alma. Não, não é discurso de alguém que ama bicicletas, mas física pura, ciência pura. Resiliência, simplesmente resiliência.
Do IDicionário Aulete:
(re.si.li:ên.ci:a)
sf.
1. Fís. Propriedade de um material retornar à forma ou posição original depois de cessar a tensão incidente sobre o mesmo, determinada pela quantidade de energia devolvida após a deformação elástica, ger. medida em percentual da energia recuperada que fornece informações sobre a elasticidade do material.
2. P.ext. Ecol. Capacidade de um ecossistema retornar à condição original de equilíbrio após suportar alterações ou perturbações ambientais.
3. Fig. Habilidade que uma pessoa desenvolve para resistir, lidar e reagir de modo positivo em situações adversas.
[F.: Do lat. resilientia, part. pres. de resilire.]

Nada se cria, tudo se copia. Exatamente como na vida é muito difícil transmitir conhecimento sobre a vida da bicicleta e o pedalar, principalmente no meio de um povo que não tem a cultura do ouvir, como o brasileiro. “Eu sei pedalar”; “Este é meu jeito”...
Bicicleta tem vida própria. Deixa ela te levar. Se você brigar com ela provavelmente vai se machucar. Olhe a sabedoria dos “pé de chinelo”, aqueles ciclistas de baixa renda que nasceram sobre uma bicicleta, aprenderam a pedalar numa coisa de duas rodas, não tem outro opção modo de transporte, pedalam o que tem a disposição e onde é possível. A vida/bicicleta os leva naturalmente por que eles aceitam. Aceitar, simplesmente aceitar!
Aprendemos da vida quando esta não nos dá alternativa. Ou quando nos permitimos. E perdemos oportunidades quando apanhamos da vida e nos recusamos a tentar entender o que aconteceu. Na vida, como na bicicleta, há uma hierarquia e nós devemos aceitar que somos simplesmente passageiros, mas que, com gentileza, podemos conduzir nossos destinos. Quando fazemos assim seguimos em frente com tranquilidade. Karma!

A bicicleta está ali. Suba nela e deixe que ela o leve. Respeitei-a com um ser. Divida. Zen é a arte de pedalar com segurança. Ciclismo é a arte da suavidade.