terça-feira, 26 de maio de 2020

Discurso de Barroso e a compreensão do povo

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Foi com imenso prazer que ouvi o discurso de Ministro Luís Roberto Barroso na posse da Presidência do TSE, e é muito duro ter que dizer isto porque o tom, a sabedoria e a serenidade são fundamentos de civilidade e devem ser regra em qualquer situação ou lugar, sem exceção, mas aqui no Brasil não é. Nos metemos numa baderna tão absurda, tão grosseira, que a fala de Barroso chama a atenção. Fazia muito tempo que não ouvíamos um recado dado com tanta maturidade e sabedoria. Dado para todos brasileiros, resta saber se grande parte da população tem capacidade para entender o que Barroso calma e claramente falou; entender tanto na essência quanto as palavras em si. A maioria de nossa população é mais afeita às falas de Bolsonaro, que usa e abusa da mesma técnica populista de comunicação que Lula usou. Seria interessante saber qual foi o alcance deste discurso de Luís Roberto Barroso, antes de tudo cidadão brasileiro. Com isto saberíamos o tamanho do buraco que o Brasil está metido.  

segunda-feira, 25 de maio de 2020

Fazer o que?

"No que posso ajudar?" dá prazer de ouvir e falar.
Dá para fazer algo e ajudar nesta crise brutal. Sempre dá, em qualquer circunstância, a história ensina.
Mesmo sendo uma pessoa socialmente pouco hábil consegui, ajudei no passado. Agora não estou conseguindo e isto me doe, e muito.

Reli meus últimos textos e minha sensação foi dúbia. Fiquei ao mesmo tempo um tanto envergonhado e orgulhoso, pelo menos pela qualidade do texto, o que talvez não adiante muito neste momento, já não sei mais. Alguém tem uma resposta?

Envergonhado porque é fácil escrever críticas sobre o que os outros estão ou não fazendo. Duro é não ficar apontando o dedo acusatório para o próximo, vício meu, humano ou brasileiro? Olho no espelho e me sinto repetindo as minhas próprias palavras críticas acusatórias. Ou, pior, ficar esperneando como barata que em chão liso não consegue desvirar de sua carapuça. Não sou o único a ter estes sentimentos, acredito eu, mas talvez nem nisto deva acreditar.

Ajudar...
"Formar formadores de opinião", esta é a missão da Escola deBicicleta. Nos seus mais de 16 anos ajudou, forneceu uma base de informação sobre a bicicleta e as possibilidades de uso, sobre o ciclista e seu meio ambiente, questões legais, formas de agir, um pouco de história; um básico geral que só excluiu logística de distribuição e tributário, temas muito específicos.

A fórmula para construir o site, passar a informação e com isto tentar ajudar os outros foi a mais básica possível: colocar no papel, organizar, parar, revisar, editar e distribuir a informação. Mais ou menos assim: http://escoladebicicleta.com.br/bicicletauso.html .

Mesmo não sendo um site com números muito altos (faz uns bons anos tínhamos tido 7 milhões de entradas) cumpriu seu dever. Influenciou um bom punhado de eficientes atores e mesmo que alguns resultados não tenham sido como eu sonhava, no geral creio que tenha ajudado muito na melhora da qualidade do geral da vida do ciclista, das cidades, da relação com o poder público, e da bicicleta em si. Desde que foi colocado no ar em sua primeira e primária versão, ainda em texto Word creio que lá por volta de 2001, mesmo sem qualquer propaganda ou mídia social chamou atenção e fez diferença. Acabou decolando sozinho.

Uma das principais razões para o Escola de Bicicleta ter conseguido o resultado que conseguiu foi dar informação com o máximo de neutralidade possível. Nem patrocinadores foram aceitos.

Quem me conhece pessoalmente sabe que sou confuso, disperso, pulando da gozação para irritação com facilidade, tenho dificuldade de comunicação e principalmente de interação social. Muito diferente do sou quando escrevo, mas isto se deve às inúmeras revisões* que faço nos textos. Demoro até dias para finalizar. Mas fiz.

Se eu fiz qualquer um faz. Todos nós temos algum conhecimento ou vivência que pode ajudar muito nesta crise. A carência do Brasil é muitíssimo maior que imaginávamos antes da pandemia, em todos os sentidos. O que agregue qualidade é mais que bem vindo, urge.

Ajudar e coçar é só começar.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Ainda não afundou porque a turma do baldinho evitou

É incrível, mas ainda estamos na estaca zero de uma discussão mais ampla e direcionada sobre como agir numa situação de colapso como a que estamos vivendo. Na primeira versão escrevi "discussão sobre quais as possíveis saídas para o pós pandemia", mas não é isto, não é o pós, mas tudo. Percebi o erro de posicionamento enquanto ouvia as mesmices no rádio e revisava este texto. 

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Passados dois meses de parada forçada os brasileiros, principalmente os que comandam este país, seja no Poder Público, seja na sociedade civil, não conseguiram traçar um caminho minimamente prático, realista e convincente que dê pelo menos esperança à população. Ter discussões abertas, intensas e variadas sobre problemas, alternativas, soluções e saídas deve ser a regra, mas no meio de um naufrágio é necessário traçar o mais rápido possível um plano e ter uma única voz de comando clara, segura, ouvida e acatada por todos. Quando o capitão e seus comandados se perdem é prudente passar a ouvir a voz de quem tem experiência, sejam timoneiros, velhos marinheiros e sábios que não se veem normalmente no convés. Estamos no meio de um maremoto num "barco furado que não tem pão, onde todos brigam e ninguém tem razão". Salve-se quem puder. Pular fora é afogamento certo ou ficar ao prazer dos tubarões. A algazarra é geral enquanto um barco chamado Brasil vai fazendo a cada hora mais água e só não afundou ainda porque a turma do baldinho até agora evitou. Espero que um balde por vez chame outras mãos com outros baldes ou não teremos salvação. 
É deprimente ver autoridades competentes falando no vazio. Na histeria enlouquecida de alguns o caos está instalado, cada um faz o que sua medíocre verdade diz. Quando todos têm sua verdade não há verdade, não há coletividade. Salve-se quem puder; e que ninguém reclame dos corpos nas praias.

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Pegou quem de surpresa?

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

É inaceitável a afirmação de "que fomos pegos de surpresa pela pandemia" como escreve José Serra em seu texto "Sobre filas e descompasso da urgência social". Como assim "fomos pegos de surpresa"? A pandemia vinha se espalhando impiedosa pelo planeta meses antes de ter chegado no Brasil, era líquido e certo que aqui também chegaria e não fizemos nada. O deprimente descompasso na urgência social é responsabilidade de toda sociedade brasileira, em especial das autoridades eleitas, todas, mais uma vez ineptas. Não se poderia esperar outra coisa de um Brasil que sambou o carnaval dislexo - utópico de Dilma e atualmente vai ajoelhado frente a um severo transtorno de personalidade antissocial de Bolsonaro. Impera uma esquizofrenia generalizada de todos poderes, em todos níveis, para não dizer geral, repito, de toda sociedade. 
Dilma e Bolsonaro são reflexo perfeito da maioria dos brasileiros: por um lado uma maioria que fala desarticuladamente de mudanças estruturais e sociais de fato urgentes, por outro uma maioria dos que têm um autoritarismo atávico que "resolve tudo", o nosso trivial "você sabe com quem está falando?" País de duas maiorias, sem nenhuma sabedoria, disfuncional. O descaminho destes nossos atavismos faz o Brasil caminhar a cantarolar eternamente na borda do precipício. Até a sociedade científica internacional se pergunta o que pode ser mais mortal, se Bolsonaro ou o Covid-19. Nenhum dos dois. Nosso inimigo mortal é a completa incapacidade de ter um mínimo de organização e bom senso.
Num país com altíssimo índice de pobreza e informalidade a urgência social previsível nesta pandemia é urgente urgentíssima, para dizer o mínimo.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Misto frio ou quente?: chororô; Tia Milão. Robério

    A primeira rejeição amorosa resultou num chororô ao som de músicas meladas que durou quase um mês. Acordava, ia cabeça baixa para a escola, voltava, não falava nada, entrava na sala, ligava a vitrola, encostava na janela e perdia o olhar na vida normal que passava lá fora. Terminou quando, como sempre, estava ouvindo testa colada no vidro da janela mais um disco dor de cotovelo, sua mãe entrou, desligou a vitrola, olhou para trás ela vindo determinada em sua direção. "Chega, você sai desta casa agora e só volta quando parar com esta tristeza burra", disse olhos nos olhos. Deu as costas, saiu quase marchando, abriu a porta do apartamento, apertou o botão do elevador, voltou para dentro, pegou o filho pelo braço, puxou porta afora sem que reagisse, abriu a porta do elevador, o empurrou para dentro, tocou o térreo, fechou a porta do elevador. Ele ainda ouviu a porta do apartamento fechando e a chave girando. Andou sem destino sem perceber as horas ou o anoitecer, primeiro com raiva da mãe e a dor do amor negado, e com o tempo com o aumento da fome. E com a fome presente as imagens do amor negado foram se esmorecendo até se transformarem na determinada pergunta “o que tem no jantar?”. Meio envergonhado, mas muito esfomeado, voltou sem saber como seria recebido. Entrou pela cozinha para não ser percebido. A porta da sala estava aberta e todos estavam sentados à mesa. Sentiu o cheiro de comida bem feita, panelas no fogão, o ruído dos talheres trabalhando na sala no meio de conversas triviais. Parou no meio da cozinha envergonhado, sem saber o que fazer; e lá ficou. Ouviu em voz sempre doce da irmã “Tá esperando o que? A comida vai esfriar. Senta”. O jantar correu como sempre e a fome desapareceu. A dor de cotovelo foi sendo educada a cada refeição. “Tira os cotovelos da mesa. É falta de educação”, bronqueava a mãe aos risos dos irmãos.


    Tia Milão era uma mulher muito especial. Viúva, baixinha, cheinha, determinadíssima, sempre que encrencava alguma situação era ela a chamada, e vinha e resolvia. Não tinha tempo ruim ou mar revolto, ia lá e dava jeito, colocava as coisas “no seu devido lugar” como dizia, ponto final. Dentre estas habilidades estava socorrer todos na hora das tratativas pertinentes as mortes. Num vapt vupt resolvia tudo. Tinha prazer em contar as histórias e situações inusitadas, que naquela época eram comuns. Numa destas corria o velório no silêncio, tristezas e alguns choros, tudo segundo as regras e bons costumes, quando o defunto teve um espasmo após morte (espasmo cadavérico) levantando a perna e atirando flores para todos lados. Sobrou tia Milão no velório completamente vazio, flores e castiçais espalhados pelo chão de ladrilhos, cadeiras tombadas, portas escancaradas, uma delas ainda se movia lentamente, e queixumes horrorizados e algumas gargalhadas histéricas vindas da rua onde de onde fosse longe do caixão.  Tia Milão ainda tentou baixar a perna esticada e não pode, não teve forças. Deu meia volta, foi pelo corredor buscar o pessoal do velório ou da funerária, quem pudesse ajudar. Saiu para rua e foi recebi com um macabro espanto por todos. Pegou sua piteira, encaixou o cigarro, acendeu, deu um trago, e deu a ordem “Eles ajeitam e nós voltamos”. Assunto encerrado.


    Aqui e agora, o último texto publicado, foi pesado, é pesado. Ironia do destino, destas que não sabemos como ou porque acontecem e nos fazem lembrar o “yo no creo en brujas, pero que las hay las hay”, ou no “Hóme” lá de cima. Cansado, terminado e publicado o texto saí para relaxar com a bicicleta e acabei perdendo minha carteira que caiu do bolso na Diógenes Ribeiro, a velha Estrada da Boiada. Já de volta fui pagar a comida e bolso vazio, mochila nada, putz! Que dia! Subi na bicicleta e fui refazendo o caminho. Algumas folhas e objetos quadrados se transformam na carteira perdida. Imaginei onde poderia ter caído e fui seguindo em frente. Esperançoso passei por uns moradores de rua sentados na porta do supermercado e aos Céus prometi que se encontrasse minha carteira daria os R$ 50,00 que ainda tinha no bolso dos que retirara para pagar a comida. Olhei o céu estrelado. “Meio canalha meu pedido, mas talvez seja desculpado” confessei meus pecados para as boas almas que certamente nos cercam e Eles, talvez incluindo o texto publicado. Alguns quarteirões a frente o celular tocou, número desconhecido, e uma voz nordestina do outro lado falou "Seu Arturo?"; respondi sem pensar "Você encontrou minha carteira"; "Foi" minha felicidade ouviu. O nome do meu anjo da guarda: Robério. Só aqui no Brasil.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Aqui e agora

"O Valdeci está na UTI" respondeu Tereza pelo telefone.

Banho quente acalma. Desliguei a água, fiz a barba, liguei a água, vi a espuma desaparecer pelo ralo e desliguei a água. Parado, cabeça baixa, olhando a água secar aos meus pés, senti as últimas gotas da deliciosa água quente batendo no meu corpo. A intensidade foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, gotas quentes espaçadas, alternadas, parou. Fiquei imóvel no pensamento perdido por um bom tempo. Abri o box, me enrolei na toalha em frente ao espelho, mas não me vi, só via pensamentos rápidos, alguns desconexos e perdidos passando pela consciência turva. Estranho como os olhos se voltam para dentro. 

Sentei no computador, comecei a digitar. Reli o texto passando a mão no rosto e me dei conta que não terminei de fazer a barba. Que importa? Ia sair para fazer um pouco de exercício, mas prefiro escrever. preciso escrever. Saio a tarde. Ou não saio. Sei lá. 

A Rádio Eldorado pela manhã, no final do noticiário, às 8:30 h, colocam uma música que serve de chamariz para a programação musical que segue ou diz respeito a algum fato relativo à música, ao compositor ou intérprete da música. Tocaram a Dionne Warwick cantando Alfie do Burt Bacharach em homenagem ao aniversário do Burt. Nos breves eternos segundos que a música tocava no silêncio da Carolina e Haissen Abaki, apresentadores do noticiário, pensei que a Diane tivesse ido embora. Foi uma pedrada no meio da cabeça. As músicas de Burt fazem parte de uma época maravilhosa de nossas vidas quando inocentemente sonhávamos que realmente construiríamos um mundo melhor e mais justo. Todos nós temos seu ponto de fratura, este quase foi o meu. Estamos cansados, estou cansado, mas não dá para parar agora. Não são pedras no caminho, mas respiradores, UTIs, covas.

"Eliane (mulher do Valdeci) não para de chorar. Diz que não consegue comer. Não para de chorar. Dei uma bronca, carinhosa, mas uma bronca" disse Tereza pelo celular.

Os presuntos estão cada dia mais próximos. Por aqui já tenho sete conhecidos contaminados, quatro passaram por UTI, e morreram dois, o irmão de uma figura bem conhecida e o pai do João. É, estão cada dia mais próximos. 

Bem no começo da pandemia, quando tudo estava aberto, tomando sorvete conversei com uma família que a mãe, avó das jovens que acompanhavam os pais no sorvete, já estava em situação crítica, cheia de comorbidades. Entrei na conversa deles porque a família estava completamente perdida, desnorteada sobre o que fazer. "No hospital tem um setor de orientação para parentes e amigos de pacientes terminais. Vocês precisam entrar em contato, principalmente você" falei apontando para a filha da senhora terminal. Eles ouviram e agradeceram. Ninguém tinha falado de forma tão direta e clara sobre morte. Em um determinado ponto da conversa usei a palavra "presunto", percebi minha indelicadeza, ou minha imprudência, ou minha secura no trato de assunto tão cercado de simbologias.  Tive que explicar. Não me convenci do pedido de desculpas não dito, mas implícito. "Presunto" para os não iniciados vai além da curva. "Nós nascemos, vivemos e morremos; ponto. Esta é a visão do Budismo, simples e objetiva". Isto fato, ninguém nega e ninguém aceita.

É da cultura de boa parte do Brasil não dar muito valor à vida. "Morreu, morreu, antes ele do que eu" está no ditado popular. Verdade verdadeira.

Morei por um ano em Olinda e comecei a ir à missa com cantos gregorianos do início de noite na belíssima Igreja do Mosteiro de São Bento. Monges afinadíssimos, boa acústica, uma maravilha. Um destes monges me contou que entrou para vida religiosa porque já tinha visto muita desgraça e muita morte. Em sua terra natal, cidade pequena de sertão, nos fins de semana tinha forró num bar onde se dançava numa área coberta, aberta aos ventos, cercada por muros baixos, festa muito animada. De vez em quando saía uma briga que não raro terminava em morte. O povo pegava o morto, colocava do lado de fora, voltava e continuava o forró. No fim da festa cada um pegava seus mortos e levava para casa para depois ser enterrado. Era corriqueiro.

Ninguém quer morrer ou ver o outro morto. Ou quer, dependendo da situação e da noção das consequências envolvidas. "Morreu, morreu, antes ele do que eu". 

As entidades que representam a medicina no Brasil acabam de definir regras para quem tem chance de sobreviver e quem não terá. Até que enfim. Discussão e definição que deveria ter sido debatida faz tempo, mas morte é tabu "e não se fala mais nisso".
O drama maior será para os médicos. São educados para salvar vidas. Não foram treinados para "isto" - deixar morrer.

A verdade é que o Brasil vive há muito com uma regra de quem morre e quem vive não escrita, mas estatística. Norma não estabelecida no papel, mas de conhecimento geral e irrestrito via programas macabros de rádio e TV de início de noite. Notícias Populares na cabeça!

A diferença entre os "do asfalto" e os favelados, os perifa, e os nortistas, é o costume de ver a morte de perto, se não são os seus, o gado. Morre tudo igual, onde dá, onde está. Morre, simples assim, matado ou morrido. Já viu de perto um presunto, já sentiu na mão a última vibração do corpo já morto, viu o olhar da certeza que ali acabou? Não? Pois é, morreu. A gente se acostuma, mas não sem um preço, não sem um preço, isto não, isto não.

Vai morrer às pencas. Eles infelizmente estão acostumados, é trivial, acaba não fazendo tanta diferença do dia a dia. Faz! As famílias estão se contaminando e muitos estão indo para auto isolando e assim não ter que enterrar filhos, país, tios, primos. Aí faz diferença.

Espero que caia a ficha deste povo quem os colocou nesta situação.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Vai mudar o que? O carácter brasileiro?

Fórum do Leitor
O Estado de São Paulo

Muda, muda, muda, muda....

Esta é a esperança da maioria. Uai, se já tinham tanta vontade de mudar e tanto para mudar por que não mudaram antes? Tinha um bocado de gente trabalhando para mudar situações críticas antes da pandemia, no contexto geral eram poucos, muitos heroicos, alguns barulhentos, outros utópicos. O grau de eficiência não foi medido, mas é certo que bem poucos foram eficientes.
Esta maioria dos que agora estão no grito da torcida muda muda até o começo dos males do coronavírus até pensavam, falavam, resmungavam, brigavam em nome de suas mudanças, de novo, de suas mudanças, mas praticamente não fizeram nada prático. A verdade é que aqui no Brasil nem jogar lixo no lixo se joga, vejam nossas ruas. Portanto muda, muda, muda... o que? Mudar o que, para que, como, de que forma, em quanto tempo, com que objetivo, para qual resultado, para quem?

Muda, muda, muda, muda.... 
O que é capaz de mudar o carácter de uma pessoa? E de um grupo social? E de uma nação? Uma nação. Exemplos e respostas não faltam.
Bombas atômicas mudaram o carácter do Japão? A devastação imposta pelos Aliados à Alemanha Nazista na Segunda Guerra Mundial mudou o carácter de seu povo? Não, definitivamente não. Alemães e japoneses entenderam seus erros, aprenderam com eles, e mudaram, mas o carácter secular voltado ao bem coletivo continua exatamente o mesmo. Não os únicos. 

Pelo andar da nossa carroça a pandemia não deve mudar o Brasil. Somos o que somos e nos orgulhamos disto. Fazemos parte de um país que foi loteado, fragmentado, usurpado, descaracterizado, principalmente nestas últimas décadas. Pior, um país que parece se orgulhar de sua pobreza e ignorância. Definir o Brasil como um país bipolar é uma definição simplória. Não exagero dizendo que o carácter do brasileiro está intimamente ligado à usurpação. Usurpação de uns pelos outros, de grupos sociais e da sociedade por alguns, independentemente do nível social. Usurpação da terra, dos bens naturais, das riquezas, também independentemente do nível social. E justificamos por ser um país diverso. Diverso sim, mas sem unidade, que não se reconhece mais como Brasil, mas como “nós e eles”, muitos “nós” e muitos “eles”, muitos, tantos que mal sabemos.

Os erros do Brasil são gritantes, mas parece que nada nos faz vê-los, sequer esta loucura da pandemia. A cegueira faz parte de nosso carácter. A pandemia nos fará mudar?

Parece piada macabra, mas definitivamente não é.
No meio de toda esta baderna mortal as usuais práticas de autoridades e políticos não mudaram, continuando seu persistente trabalho de autoproteção e a incessante busca de vantagens. A sociedade é incapaz de manter um mínimo de estabilidade mesmo em acordos os mais básicos e necessários. Ladrões e golpistas continuam os mesmos agindo sem uma reação civil. Faz parte de nosso carácter a aceitação. Estamos acostumados a chorar nossas mortes inúteis.

Depois de um certo tempo as coisas vão voltar mais ou menos para o que eram antes da pandemia. É humano. É o que dizem pensadores, analistas e historiadores.
Depois deste tranco mundial vai mudar o que? O valor humano, o valor ambiental, ou o ecológico? Vai mudar para quem?
Tudo muda. Depende do que, depende de cada momento e depende do carácter.

"Que a gente saia da epidemia sem amar controles de comportamento" diz Pondé

domingo, 10 de maio de 2020

Ineos Petroquímica e os patrocínios ao esporte

Dois dias antes do início de nossa bagunça pandêmica o Financial Times publicou a matéria especial de página dupla "Ineos: why Jim Ratcliffe is mixing petrochemicals and sports" (Monday 16 March 2020). Infelizmente o link é só para quem assina. Eu li a matéria no jornal que me foi trazido de Londres por uma amiga, Cristina.
Fiz estas anotações na época para começar a escrever sobre a questão dos patrocínios ao esporte; (meio) SIC do Financial Times, (por conta de minha tradução):
  • Empresa com nome sujo limpando o nome com esporte.
  • Ineos patrocinando futebol, F1 (Mercedes), ciclismo, corrida a pé, barco a vela.
  • No projeto da Ineos um esporte ajuda o outro com expertise específico e com seus centros de treinamento (interessante)
  • "A maioria não faz ideia do que é Ineos ou o que outro patrocinador faz, e o patrocínio não afeta as vendas no mercado químico, mas está jogando uma imagem positiva na companhia."
  • Questão ambiental.
Não faço ideia de como ficará estes patrocínios da Ineo daqui para frente. Fato é que o mercado do petróleo derreteu do dia para a noite. Aliás, ninguém faz ideia de como ficarão todos os patrocínios esportivos, dos atletas, das equipes e até mesmo dos eventos.
Para quem quer saber quem é a Ineos: Ineos se esforça para se tornar o maior produtor de petróleo e gás do Reino Unido.

Bom artigo para ser lido e bom momento para pensar sobre esportes, tão cruciais em nossas vidas: 
  • O que são de fato as empresas que patrocinam esportes, bens sociais e culturais na vida real? 
  • A importância destes patrocínios ninguém tem dúvida, mas qual o custo / benefício destas ações computando todos fatores envolvidos? 
  • Dá para ter um filtro para os patrocinadores? 
  • Como formar entre esportistas amadores e torcedores a cultura de apoiar empresas corretas e não comprar de empresas problemáticas? 
  • As empresas que patrocinam os esportes têm objetivos outros além dos óbvios?
O outro lado da moeda é o patrocinar um esportista de péssimo carácter e comportamento social. No ciclismo temos talvez o pior de todos exemplos, Lance Armstrong, que para quem não sabe não só foi excluído do ciclismo por doping como varrido de qualquer esporte por ameaçar pessoas com quem trabalhou (trabalhou?) e outras próximas. Duvido que os patrocinadores não soubessem de nada antes do estouro do escândalo. São inúmeros os casos de atletas que são péssimos exemplo para a sociedade e mesmo assim foram patrocinados. E as consequências sociais, como ficam?
Deslealdade e práticas pouco recomendáveis sempre fizeram parte da história dos esportes. Erros no esporte acabam sendo uma boa oportunidade para a população em geral discutir, portanto pensar os erros da própria sociedade e fazê-lo em paz. Não faça guerra, faça esporte é uma das melhores ferramentas de paz existentes. Garantido, bons resultados, em todos sentidos.

Não sei se sou contra ou a favor do árbitro de vídeo e outras tecnologias de precisão que diminuem o fator humano no resultado dos esportes. Aprendemos mais com nossos erros que com nossos acertos.
O charme secular do esporte está numa certa dose de imprevisibilidade.

Dinheiro pesado dos patrocínios está criando problemas para vários esportes, inclusive a F1. Para tudo tem limite.

Richard Denton, professor of marketing at Johan Cruyff Institute, takes an in-depth look at the Covid-19’s impact on the sport sponsorship industry and reviews past crises, such as the 2008 financial crisis or the 2001 terrorist attack in New York

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Covid é a...

Final de tarde era sagrado igreja e supermercado, nesta ordem. Ela saia ainda cedo de casa para preparar a igreja para a missa do meio dia. Assistia a missa, terminava os serviços, comia um lanche segundo dizia, de lá ia direto para o supermercado e só no fim da tarde voltava para casa com as compras, sempre o sorriso de mais que dever cumprido. O hábito não mudou com as restrições da pandemia. A igreja estava fechada para os fiéis, mas era necessário mantê-la cuidada, como sempre fizera nestes muito anos. Quando os filhos, um casal, ainda iam à missa viam a mãe cabeça abaixada nas primeiras filas a rezar e cantar. Um destes dias em meio ao sermão o irmão olhou em volta e viu que a limpeza não era tão perfeita como a que a mãe fazia questão de deixar em casa, mas ali era muita coisa para limpar, uma igreja antiga, cheia de entranças, capelas, decorações, santos, altar..., é compreensível.
Sábado de noite chuvosa e fria o irmão perguntou para a irmã se queria consertar o barulho do painel do carro dela domingo pela manhã quando continuaria o tempo ruim. Logo após a partida da mãe acordaram, tomaram café, ele pegou a velha caixa de ferramentas do pai que ainda dormia, e desceram para a garagem. Desde que mudaram para aquele condomínio a vaga dos carros da família sempre ficou no fundo, num lugar mal iluminado, que os filhos nunca gostaram e sempre pediram para ir nas reuniões de condomínio, mas a mãe, enérgica, era quem descia para as discussões. "Falou sobre as vagas? Conseguiu melhores?" perguntavam os filhos e silenciava o pai gordo que do sofá não saía para não perder seu futebol, e as cervejinhas, que se diga. A resposta sempre foi a mesma; que a reunião tinha tratado de muita coisa, que como sempre houve discussão e que era um ato de boa-fé não se preocupar com seus próprios incômodos quando estes fossem em benefício do outro. Assunto encerrado.
Desceram juntos, caminharam em silêncio até o carro da irmã ouvindo gemidos. Olharam um para o outro rindo, ela colocou o dedo nos lábios pedindo a ele silêncio e seguiram em frente cuidando para não fazer barulho ao andar. Abriram as portas do carro olhando um para o outro com vontade de rir, ele lentamente abriu a caixa de ferramentas, tirou a chave de fenda. "Não liga os faróis para não perceberam que tem gente na garagem. Vamos ver no que dá", disse a irmã. Mesmo com pouca luz começou a apertar parafusos e sua expressão foi mudando, ela se divertindo dos gemidos da mulher que dentro de algum carro. Começava o orgasmo. O som vinha baixinho e abafado, provavelmente por janelas fechadas, mas não havia engano, até porque cada vez menos controlado, cada vez mais gozado. "Eu conheço esta voz", disse o irmão. A irmã, controlando-se para não rir disse "é uma gata, não é gente". "Eu conheço esta voz", repetiu ele. "Fica quieto". E depois de outros barulhos, provavelmente uma batida forte de pé no painel ou na porta, no outro carro o silêncio se fez. Os irmãos ficaram imóveis esperando para ver quem e de onde sairia o casal. Ouviram as portas abrirem, um breve demorado silêncio, fecharem, o motor foi ligado, a frente do carro apontando e saindo da vaga. "Eu conheço este carro. Fecha a porta e vamos atrás" e a irmã fechou, já não tão divertida, nem tão excitada e curiosa. Parados e com pescoço esticado sobre o painel deixaram que o casal saísse com calma da garagem para não serem vistos. Não tinham que seguir de perto, nem precisavam, conheciam o carro e sabiam de quem era. "O padre não está aproveitando a pandemia para reformar a igreja?" perguntou a irmã.
A noite o jantar foi num silêncio sepulcral. O pai não estranhou mais entretido com o jogo correndo na TV. De qualquer forma preferiu não perguntar nada, como sempre. Vai que sai um gol. A mãe, sorridente, também não. "Deve ser coisa de jovens". Na hora de recolher os pratos contou que o coroinha tinha pegado a gripe e emendou "Espero que não tenha contaminado ninguém". Passados uns dias e a cara feia de seus filhos que não passava foi explicada com um "na próxima reunião de condomínio você vai trocar nossas vagas" afirmativo e definitivo. No dia seguinte a mãe mandou uma mensagem que o padre tinha pegado a gripe e que ela ficaria uns dias na igreja para não deixa-la abandonada. Na loja de móveis o pai soube, para seu espanto, que o padre tinha comprado a cama de casal mais cara e fugido com uma mulher. Almoço na mesa, TV desligada, contou a novidade. Os filhos riram. "O padre vai morrer de corona!" ironizou o garoto. 

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Paulo Salim Maluf, o herói da bicicleta

Paulo Salim Maluf, o herói de muitos ciclistas, é o perfeito candidato das bicicletas nas próximas eleições. Vejam as razões: Foi quem criou o primeiro órgão de promoção do uso da bicicleta em São Paulo, o Pró Ciclista, que nos anos de existência fez um bom trabalho, iniciou o sistema cicloviário da cidade, colocou leis no CTB, atormentou justamente a CET de então, pressionou Brasília... Maluf é o responsável pela construção do Minhocão, aquele viaduto sobre a av. São João que hoje é dos lugares mais agradáveis para pedalar e caminhar e pelo qual há uma luta popular para que seja transformado num parque suspenso nos moldes do High Line de NY. Fez e concluiu uma série de obras usando jeitinhos para contornar os problemas, alguns legais, e adversários, o que talvez tenha servido de exemplo para implantar as ciclo faixas que fazem a maior parte dos 400 km do sistema cicloviário implantado nos tempos de Haddad. Uma de suas fotos mais famosas foi tirada nos gramados de sua mansão dos jardins (México com Costa Rica) com Lula, os dois sorrindo, a alma de Haddad candidato à Presidência. Tido como populista de direita, colocado no posto de Governador do Estado pela ditadura militar, apoiou o PT, ao mesmo tempo não criaria problema com os bolsonaristas. Se Maluf, inteligente oportunista de primeira hora, fez o que fez pelo automóvel, a bola da vez daqueles tempos, imaginem o que não faria pela bicicleta, a bola da vez destes tempos atuais. Teria muitos votos, afinal para muitos não interessa como a partir do momento que a bicicleta seja privilegiada.

Não votaria, não votei, sinto profundamente que tenham demorado tanto para julga-lo, que nunca tenham recuperado o dinheiro, que ele só esteja em prisão domiciliar. Aliás, não votei e não voto em populista dito do bem ou mal. E dói muito saber que todos os julgados culpados aqui no Brasil ainda tenham o mesmo destino de Maluf. Todos. 

Por que colocar Maluf aqui? Porque por puro acidente comecei escrever o que está abaixo, parei para relaxar e rever o texto, saí para pedalar e acabei passando no Jardim Guedala, lugar agradabilíssimo para pedalar. Quem esteve lá sabe sobre o que falo.

Bem, de volta ao texto original: 

"Espero que um dia isto aconteça aqui (em São Paulo)" digitou referindo se ao que será feito em Paris, NY e em outras capitais do mundo para auxiliar o retorno à normalidade e controle da pandemia: incentivo maior ainda ao uso da bicicleta. Sim, eu, Arturo, também espero, mas que se faça bem feito, e aí é que está o nosso nó cego, aí é que eu duvido muito. Começa pelo emaranhado monstro que perdeu até o fio da meada que são nossas leis e termina por confundir técnicas de trânsito e transporte, passando pela capacidade. Vai pela tendência de muita boa gente de olhar tudo com os binóculos da ideologia. Vai pelo poder que alguns tem de fazer o que bem entendem e até melar o que foi bem feito. Vai pela Justiça entulhada de processos que olha o que não entende e dá o parecer que bem entende. Vai por não entender que lá é lá e aqui é aqui, e há uma monstruosa diferença. E assim vai...

Como estamos divididos em dois, como bons idiotas que somos, não interessa quem vá fazer, se é alguém que já fez bem ou mal feito, se já meteu a mão na botica, se jogou dinheiro fora, se implantou com erros grosseiros, se tem uma capivara enorme (processos na Justiça). A força maior é "se for fazer é quem se vai apoiar". O outro é o outro. "Tem que fazer! A bicicleta é a salvação", batem o pé. O outro lado da questão, mesmo que seja da própria questão, não interessa. 

Erundina teve a dignidade de reconhecer que enterrar (literalmente) o projeto do bulevar Juscelino Kubitschek foi uma burrice sem tamanho, mas na época foi ação ideológica. Parar o bulevar av. Paulista, como foi feito em governos de direita e grande e estranhas obras também foi estúpido. E aí vamos. Foda-se a cidade, fodam-se os cidadãos, foda-se a racionalidade, o que via de regra funciona é o "vale é eu gosto ou não gosto". É deprimente, mas os chiliques de Bolsonaro são bem brasileiros, um pouco fora da curva para dizer o mínimo, mas tipicamente brasileiros. "Quem manda sou eu" ou "Sabe com quem está falando?" é nossa deprimente sina. 

Bicicleta não é a salvação, é mais uma ferramenta, neste momento uma valiosíssima ferramenta – se for usada com inteligência e honestidade, algo que nós, brasileiros, estamos cientes que não é nosso forte. E, provocando: "ciclistas não são messias", o que tem muitos que gostariam ser. 

Estou de saco cheio de reescrever sempre a mesma coisa, mas infelizmente nem mesmo a pandemia nos faz parar e olhar para futuro de outra maneira. “Tem que fazer” (de qualquer jeito) para mim não é a resposta. "A Janette Sadik Khan veio e gostou!" Veio e gostou do que? Mostraram para ela o que? Ela falou com quem? Ela fala português e teve tempo de conversar com todos, inclusive os não ciclistas, como fez em NY? Pedalou no Jardim Guedala? Teve acesso as contas? Falou para que plateia?
Parei de escrever e fui pedalar. Acabei passando pelo Jardim Guedala, que é um dos absurdos dos 400 km do Haddad \ Tatto. Não passa mosca, está no meio de um dos mais ricos bairros de São Paulo e do Brasil, pura ‘pata negra’, aquele presunto dos ricos e famosos apelidados de “coxinhas” pelos ciclistas fanáticos e ideológicos. Ciclo faixa “Pata Negra”, que delícia! 
Jardim Guedala não tem movimento, não tem gente nas ruas, não é rota para nada, não liga nada a lugar nenhum. As casas são imensas, lindas, ajardinadas, as ruas arborizadas, cheio de seguranças. Tem um punhado que caminha no sobe desce da Praça Professor José de Melo Pimenta, um avenidão com grande canteiro central gramado, sendo observados de perto por seus seguranças particulares e só. Depois que este pessoal volta para casa não tem ninguém nas ruas, é o paraíso para pedalar livre. Não faz o menor sentido ter ciclo faixa ali, muito menos gastar dinheiro público. As ruas são largas, calmas, sem trânsito, com pessoas caminhando no meio da rua. Não faz nenhum sentido para quem possa ter a mais remota noção do que é responsabilidade social ou sensatez do uso da bicicleta. A cidade tem infinitas outras prioridades. É um dos exemplos máximos do que NÃO deveria ter sido feito e com isto concordaram até ciclistas petistas que apoiam Haddad e o PT. 

Acredito que aquilo não foi e não é dinheiro jogado no lixo, é outra coisa qualquer. Duvido que o dinheiro tenha ido para o lixo. 
Tendo dito isto e despejado meu profundo desgosto com o que foi feito e a forma como foi feito, depois de ter pedalado lá agora tenho a dizer: Não acredito! reasfaltaram, repintaram, e colocaram novas taxas deixando tudo perfeito. 


Moral da história: eu sou um imbecil.


Se conselho fosse bom seria vendido, mas deixo aqui o meu grátis. Apaguei-os. Quem precisa de conselho de imbecil? Desculpem, mas saio de cena. Deixem que façam o que quiserem, que façam o que bem entender com dinheiro público. Somos ricos, sobra dinheiro, são todos competentes e atendem a voz do povo. Fui 

Um dos textos que publiquei menos lido foi o Ouvir todos, inclusive os que parecem idiotas . Faz todo sentido

Mais fotos do Jardim Guedala









segunda-feira, 4 de maio de 2020

Mudanças familiares

Os encontros de família são um misto de prazer com uma pitada de tensão que varia conforme as posições de cada um, sempre família, eternamente com diferenças, não raro um conflituoso que por familiar se tem que conviver sorrindo por regra, levantando a voz por laços familiares. Um prazer em ver todo mundo que sempre gostou, ou não, familiares, amigos da família, primos próximos que via pouco, mas quando se encontram fluí boa conversa atualizando vidas distantes, ou não, que um dia ligadas umbilicalmente. 
A família cultivou um raro prazer pela comida sempre impecável, hábito cultivado como uma disputa sadia e deliciosa. Deixando para trás o espartano de vidas que lutaram muito para sobreviver resgatam as delícias dos antepassados que vieram do Velho Continente, como o que mais era novidade gastronômica naqueles tempos. A troca honesta de receitas definia quem era realmente íntima e de confiança. Aos outros as receitas sempre vinham incompletas ou faltando alguma sutileza, típico que quem sabe das magias do sabor.
União mesmo de todos quando os pratos eram distribuídos com raro cuidado na grande mesa e o ataque familiar autorizado. O momento do abre alas, dos que pegam o prato na não ficam na borda da mesa e, como se para irritar todos, não param a conversa afiada nem se servem e saem da frente. Há os que não largam nem seus copos nem seus lugares e ainda pedem aos de passagem que os sirva sem qualquer agradecimento, só com seus direitos pretensamente adquiridos. É a mais pura integração que dá sabor a pergunta se estão todos lá para se ver e conviver ou para comer e degustar. Cada um com seu prato e seu carácter. Encontros, almoços, jantares e até lanches inesquecíveis por um ou outro fato peculiar e principalmente pelo que foi colocado a mesa não só as conversas por trás dos pratos, mas os sabores delicados. 

Era 1982 e causava muita estranheza que alguém com aquele histórico de família, naquele nível social, chegasse a estes encontros sociais, de família ou não, pedalando, bem vestido e feliz. Os comprimentos e abraços no ciclista eram carinhosos, com sorrisos formais, e cercados de uma pitada de ironia na eterna pergunta "e a bicicleta..." Para ele, ciclista, por um lado divertida, por outro cansativa, parte da vida.

Sentados nas poltronas levemente iluminadas por abajures conversavam os primos trivialidades quando com copo numa mão e outra apoiando no espaldar da poltrona o tio parou e ficou ouvindo a conversa sobre trabalho, vida social, amigos comuns. Numa típica provocação de geração mais velha dentro de qualquer família o tio cortou as falas apertando suavemente o ombro do filho e disse olhando o sobrinho com sorriso provocativo "E como fica no trabalho quando você chega de bicicleta? O que o pessoal acha?" Sabendo ser o pai girou um pouco a cabeça como que querendo olhar a mão carinhosa, primeiro riu e depois embarcou na pergunta maldosa. Vozes sobem, alguém se levanta do sofá a frente e fala ainda mais alto "chegou a sobremesa".
1992, A mesma família, os mesmos primos, os mesmos prazeres, então com a bicicleta em plena moda, quando as palavras mágicas mountain bike estavam jogadas em rádios, TVs, jornais, mais um objeto de desejo. Os mesmos dois primos desenrolam suas notícias colocando suas vidas em dia. Alguém vem e senta quebrando a linha da conversa mole. Aproveita a oportunidade o primo, o mesmo primo que alguns anos ria das bicicletas, e pergunta na maior boa fé "Tô querendo comprar uma bicicleta, o que você recomenda". A gargalhada irresistível vinda das profundezas, assim como a cara de desaponto do primo, ecoou pela casa. Terminada a situação incomoda, que demorou um bom tempo e chamou a atenção de todos, o ciclista tomou folego, pediu desculpas pelo inevitável e fez perguntas sobre para que queria a bicicleta.

Não é sobre bicicletas, é sobre a cidade, sobre as vidas.

Morreu hoje, 04 de Maio de 2020, Aldir Blanc. 
Me faz lembrar quem eu fui e me é dolorido, mesmo estando feliz com quem eu sou.

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Disney das fantasias demite na real

A Disney demitiu todos funcionários de seu parque de Orlando. O que importa? É uma empresa como qualquer outra! Definitivamente não. O grupo Disney é símbolo muito forte de um desejo coletivo e não deve ser traduzido simploriamente como um produto do american way, mas como uma fábrica de fantasias de esperanças que resumem de uma maneira infantil, mas nada inocente, o desejo coletivo de boa parte da população mundial que buscam que suas próprias estórias, ou histórias, como queira, sempre cheguem a um final feliz.

Recebi a notícia como uma bomba porque imaginei que os parques da Disney seriam área intocável por sua simbologia. Em qualquer situação de guerra é necessário manter o moral da tropa.
E minha cabeça ficou dando voltas com esta história.

Meu vizinho ponderou que os funcionários dos parques trabalhavam em regime praticamente escravo, num trabalho muito duro, disciplinado, onde não se admitem falhas. Disney é americana e Orlando está nos Estados Unidos. A ideia do que é trabalho é muito diferente da que temos aqui no Brasil. Estados Unidos tem um sentido coletividade, de união, expresso na forma de trabalhar, aliás linha motriz dos filmes da Disney. Unidos venceremos. As leis trabalhistas são outras e lá ou aceita as condições de trabalho ou não tem trabalho, ou trabalha direito ou é demitido, ou cumpre corretamente o que foi acordado ou está fora e ponto final. As leis funcionam para todos e empresas e empregados têm que respeita-las, ponto final. Aliás, o trabalho duro e pesado de lá não é muito diferente de trabalhar num restaurante ou padaria aqui no Brasil, por exemplo. Com uma diferença: lá existe uma expressão, “deixar cair o lápis”, ou seja, o sujeito trabalha de 7 às 17 horas, por exemplo, e as 17:00 h em ponto larga o lápis / caneta / ferramenta e vai para casa ver a família, bem diferente daqui e nossas horas extras pagas ou não.

Meu tio Zico teve a raríssima oportunidade de fazer uma visita aos "porões", o "sub mundo" da Disney de Orlando e ficou maravilhado com o que viu. Taí uma visita que adoraria fazer e ouvi Zico contando sua visita com muita inveja. Não me lembro dele ter falado em escravos ou escravagismo, mas lembro da discrição do profissionalismo e da entrega de todos ao trabalho, o que faz toda diferença; e como faz.

Estive no parque Disney de Orlando e fiquei impressionadíssimo com a organização. Tudo funciona com uma perfeição invejável. A logística de fechamento do parque é uma aula magna sobre mobilidade. Fica se lá o dia todo e não se vê um funcionário com cara de sofrimento, infeliz, muito menos com cara de escravo. Eu sei, eu sei, coisa de contrato de trabalho; todos têm que sorrir ou minimamente ser simpáticos, eficientes. Não é assim na imensa maioria dos negócios de todo o mundo?

O colapso da Disney, mesmo que temporário, quebra um espelho de magias por que escancara que atrás de toda esperança pré coronavírus Covid 19 havia algum problema, para dizer o mínimo. Não poderia ser diferente, mas no caso da Disney a longa e cuidadosa construção da imagem trouxe distorções da realidade. Demitir funcionários tão específicos e treinados não deve ter sido uma decisão fácil nem agradável. Acontecer aqui no Brasil a demissão de toda uma orquestra sinfônica é duro de aceitar, mas demitir na Disney? Nossa! Onde chegamos.

Qualquer sonho se constrói com trabalho. Quanto mais trabalho, mais resultado. É milenar, o Budismo diz que não há liberdade sem disciplina. Quanto maior o bem social, maior é o trabalho por trás do resultado. Prazer e trabalho sempre estiveram intimamente ligados. O sonho vendido pela Disney é resultado de trabalho duro, muito duro, mais, é para quem ama o que faz, mas ama para valer.

O coronavírus Covid 19 e a parada do planeta está tirando debaixo do tapete um monte de situações. Depois dele como iremos conseguimos manter a separação abissal que existia entre o prazer e o trabalho? É, não faz muito uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa. Hoje até temos a cada dia mais e mais gente trabalhando no que gosta, mesmo assim é uma minoria. A maioria trabalha para poder comprar algo ou encher a cara com os amigos no churrasquinho. Fato é que na história do Brasil prazer era prazer, trabalho era trabalho, e quem confundisse as coisas, principalmente neste Brasil, que fosse se tratar. Terá mudado?

O sonho não acabou, nem pode acabar. A reconstrução dos sonhos vai demandar trabalho e será isto que dará valor ao sonho coletivo, e o meu é que seja coletivo, equidade. O que se tem que tirar desta pandemia é que sonhos não são ilusões, muito menos delírios.

A Disney vai voltar com todos seus simbolismos. Não só ela, mas todos os construtores de boas sensações, mesmo que momentâneas. A humanidade só continuará seu caminho, talvez para melhor se em cada criança for plantado um sonho, mas que sejam sonhos bons, realistas, factíveis e respeitosos com este planeta.