"O Valdeci está na
UTI" respondeu Tereza pelo telefone.
Banho quente acalma. Desliguei
a água, fiz a barba, liguei a água, vi a espuma desaparecer pelo ralo e
desliguei a água. Parado, cabeça baixa, olhando a água secar aos meus pés,
senti as últimas gotas da deliciosa água quente batendo no meu corpo. A
intensidade foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, gotas quentes espaçadas,
alternadas, parou. Fiquei imóvel no pensamento perdido por um bom tempo. Abri o
box, me enrolei na toalha em frente ao espelho, mas não me vi, só via
pensamentos rápidos, alguns desconexos e perdidos passando pela consciência turva.
Estranho como os olhos se voltam para dentro.
Sentei no computador, comecei
a digitar. Reli o texto passando a mão no rosto e me dei conta que não terminei
de fazer a barba. Que importa? Ia sair para fazer um pouco de exercício, mas
prefiro escrever. preciso escrever. Saio a tarde. Ou não saio. Sei lá.
A Rádio Eldorado pela manhã,
no final do noticiário, às 8:30 h, colocam uma música que serve de chamariz
para a programação musical que segue ou diz respeito a algum fato relativo à
música, ao compositor ou intérprete da música. Tocaram a Dionne Warwick
cantando Alfie do Burt Bacharach em homenagem ao aniversário do Burt. Nos
breves eternos segundos que a música tocava no silêncio da Carolina e Haissen
Abaki, apresentadores do noticiário, pensei que a Diane tivesse ido embora. Foi uma pedrada no meio da cabeça.
As músicas de Burt fazem parte de uma época maravilhosa de nossas vidas quando
inocentemente sonhávamos que realmente construiríamos um mundo melhor e mais
justo. Todos nós temos seu ponto de fratura, este quase foi o meu. Estamos
cansados, estou cansado, mas não dá para parar agora. Não são pedras no
caminho, mas respiradores, UTIs, covas.
"Eliane (mulher do
Valdeci) não para de chorar. Diz que não consegue comer. Não para de chorar.
Dei uma bronca, carinhosa, mas uma bronca" disse Tereza pelo celular.
Os presuntos estão cada dia mais próximos. Por aqui já tenho sete conhecidos contaminados, quatro passaram por UTI, e morreram dois, o irmão de uma figura bem conhecida e o pai do João. É, estão cada dia mais próximos.
Bem no começo da pandemia, quando tudo estava aberto, tomando sorvete conversei com uma família que a mãe, avó das jovens que acompanhavam os pais no sorvete, já estava em situação crítica, cheia de comorbidades. Entrei na conversa deles porque a família estava completamente perdida, desnorteada sobre o que fazer. "No hospital tem um setor de orientação para parentes e amigos de pacientes terminais. Vocês precisam entrar em contato, principalmente você" falei apontando para a filha da senhora terminal. Eles ouviram e agradeceram. Ninguém tinha falado de forma tão direta e clara sobre morte. Em um determinado ponto da conversa usei a palavra "presunto", percebi minha indelicadeza, ou minha imprudência, ou minha secura no trato de assunto tão cercado de simbologias. Tive que explicar. Não me convenci do pedido de desculpas não dito, mas implícito. "Presunto" para os não iniciados vai além da curva. "Nós nascemos, vivemos e morremos; ponto. Esta é a visão do Budismo, simples e objetiva". Isto fato, ninguém nega e ninguém aceita.
É da cultura de boa parte do Brasil não dar muito valor à vida. "Morreu, morreu, antes ele do que eu" está no ditado popular. Verdade verdadeira.
Morei por um ano em Olinda e
comecei a ir à missa com cantos gregorianos do início de noite na belíssima
Igreja do Mosteiro de São Bento. Monges afinadíssimos, boa acústica, uma
maravilha. Um destes monges me contou que entrou para vida religiosa porque já
tinha visto muita desgraça e muita morte. Em sua terra natal, cidade pequena de
sertão, nos fins de semana tinha forró num bar onde se dançava numa área
coberta, aberta aos ventos, cercada por muros baixos, festa muito animada. De
vez em quando saía uma briga que não raro terminava em morte. O povo pegava o
morto, colocava do lado de fora, voltava e continuava o forró. No fim da festa
cada um pegava seus mortos e levava para casa para depois ser enterrado. Era
corriqueiro.
Ninguém quer morrer ou ver o outro morto. Ou quer, dependendo da situação e da noção das consequências envolvidas. "Morreu, morreu, antes ele do que eu".
As entidades que representam a
medicina no Brasil acabam de definir regras para quem tem chance de sobreviver
e quem não terá. Até que enfim. Discussão e definição que deveria ter sido debatida faz tempo, mas morte é tabu "e não se fala mais nisso".
O drama maior será para os
médicos. São educados para salvar vidas. Não foram treinados para "isto" - deixar
morrer.
A verdade é que o Brasil vive há
muito com uma regra de quem morre e quem vive não escrita, mas
estatística. Norma não estabelecida no papel, mas de conhecimento geral e
irrestrito via programas macabros de rádio e TV de início de noite. Notícias
Populares na cabeça!
A diferença entre os "do
asfalto" e os favelados, os perifa, e os nortistas, é o costume de ver a morte
de perto, se não são os seus, o gado. Morre tudo igual, onde dá, onde está.
Morre, simples assim, matado ou morrido. Já viu de perto um presunto, já sentiu na mão a última vibração do corpo
já morto, viu o olhar da certeza que ali acabou? Não? Pois é, morreu. A gente
se acostuma, mas não sem um preço, não sem um preço, isto não, isto não.
Vai morrer às pencas. Eles infelizmente estão acostumados, é trivial, acaba não fazendo tanta diferença do dia a dia. Faz! As famílias estão se contaminando e muitos estão indo para auto isolando e assim não ter que enterrar filhos, país, tios, primos. Aí faz diferença.
Espero que caia a ficha deste povo quem os colocou nesta situação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário