segunda-feira, 4 de maio de 2020

Mudanças familiares

Os encontros de família são um misto de prazer com uma pitada de tensão que varia conforme as posições de cada um, sempre família, eternamente com diferenças, não raro um conflituoso que por familiar se tem que conviver sorrindo por regra, levantando a voz por laços familiares. Um prazer em ver todo mundo que sempre gostou, ou não, familiares, amigos da família, primos próximos que via pouco, mas quando se encontram fluí boa conversa atualizando vidas distantes, ou não, que um dia ligadas umbilicalmente. 
A família cultivou um raro prazer pela comida sempre impecável, hábito cultivado como uma disputa sadia e deliciosa. Deixando para trás o espartano de vidas que lutaram muito para sobreviver resgatam as delícias dos antepassados que vieram do Velho Continente, como o que mais era novidade gastronômica naqueles tempos. A troca honesta de receitas definia quem era realmente íntima e de confiança. Aos outros as receitas sempre vinham incompletas ou faltando alguma sutileza, típico que quem sabe das magias do sabor.
União mesmo de todos quando os pratos eram distribuídos com raro cuidado na grande mesa e o ataque familiar autorizado. O momento do abre alas, dos que pegam o prato na não ficam na borda da mesa e, como se para irritar todos, não param a conversa afiada nem se servem e saem da frente. Há os que não largam nem seus copos nem seus lugares e ainda pedem aos de passagem que os sirva sem qualquer agradecimento, só com seus direitos pretensamente adquiridos. É a mais pura integração que dá sabor a pergunta se estão todos lá para se ver e conviver ou para comer e degustar. Cada um com seu prato e seu carácter. Encontros, almoços, jantares e até lanches inesquecíveis por um ou outro fato peculiar e principalmente pelo que foi colocado a mesa não só as conversas por trás dos pratos, mas os sabores delicados. 

Era 1982 e causava muita estranheza que alguém com aquele histórico de família, naquele nível social, chegasse a estes encontros sociais, de família ou não, pedalando, bem vestido e feliz. Os comprimentos e abraços no ciclista eram carinhosos, com sorrisos formais, e cercados de uma pitada de ironia na eterna pergunta "e a bicicleta..." Para ele, ciclista, por um lado divertida, por outro cansativa, parte da vida.

Sentados nas poltronas levemente iluminadas por abajures conversavam os primos trivialidades quando com copo numa mão e outra apoiando no espaldar da poltrona o tio parou e ficou ouvindo a conversa sobre trabalho, vida social, amigos comuns. Numa típica provocação de geração mais velha dentro de qualquer família o tio cortou as falas apertando suavemente o ombro do filho e disse olhando o sobrinho com sorriso provocativo "E como fica no trabalho quando você chega de bicicleta? O que o pessoal acha?" Sabendo ser o pai girou um pouco a cabeça como que querendo olhar a mão carinhosa, primeiro riu e depois embarcou na pergunta maldosa. Vozes sobem, alguém se levanta do sofá a frente e fala ainda mais alto "chegou a sobremesa".
1992, A mesma família, os mesmos primos, os mesmos prazeres, então com a bicicleta em plena moda, quando as palavras mágicas mountain bike estavam jogadas em rádios, TVs, jornais, mais um objeto de desejo. Os mesmos dois primos desenrolam suas notícias colocando suas vidas em dia. Alguém vem e senta quebrando a linha da conversa mole. Aproveita a oportunidade o primo, o mesmo primo que alguns anos ria das bicicletas, e pergunta na maior boa fé "Tô querendo comprar uma bicicleta, o que você recomenda". A gargalhada irresistível vinda das profundezas, assim como a cara de desaponto do primo, ecoou pela casa. Terminada a situação incomoda, que demorou um bom tempo e chamou a atenção de todos, o ciclista tomou folego, pediu desculpas pelo inevitável e fez perguntas sobre para que queria a bicicleta.

Não é sobre bicicletas, é sobre a cidade, sobre as vidas.

Morreu hoje, 04 de Maio de 2020, Aldir Blanc. 
Me faz lembrar quem eu fui e me é dolorido, mesmo estando feliz com quem eu sou.

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