quinta-feira, 14 de maio de 2020

Misto frio ou quente?: chororô; Tia Milão. Robério

    A primeira rejeição amorosa resultou num chororô ao som de músicas meladas que durou quase um mês. Acordava, ia cabeça baixa para a escola, voltava, não falava nada, entrava na sala, ligava a vitrola, encostava na janela e perdia o olhar na vida normal que passava lá fora. Terminou quando, como sempre, estava ouvindo testa colada no vidro da janela mais um disco dor de cotovelo, sua mãe entrou, desligou a vitrola, olhou para trás ela vindo determinada em sua direção. "Chega, você sai desta casa agora e só volta quando parar com esta tristeza burra", disse olhos nos olhos. Deu as costas, saiu quase marchando, abriu a porta do apartamento, apertou o botão do elevador, voltou para dentro, pegou o filho pelo braço, puxou porta afora sem que reagisse, abriu a porta do elevador, o empurrou para dentro, tocou o térreo, fechou a porta do elevador. Ele ainda ouviu a porta do apartamento fechando e a chave girando. Andou sem destino sem perceber as horas ou o anoitecer, primeiro com raiva da mãe e a dor do amor negado, e com o tempo com o aumento da fome. E com a fome presente as imagens do amor negado foram se esmorecendo até se transformarem na determinada pergunta “o que tem no jantar?”. Meio envergonhado, mas muito esfomeado, voltou sem saber como seria recebido. Entrou pela cozinha para não ser percebido. A porta da sala estava aberta e todos estavam sentados à mesa. Sentiu o cheiro de comida bem feita, panelas no fogão, o ruído dos talheres trabalhando na sala no meio de conversas triviais. Parou no meio da cozinha envergonhado, sem saber o que fazer; e lá ficou. Ouviu em voz sempre doce da irmã “Tá esperando o que? A comida vai esfriar. Senta”. O jantar correu como sempre e a fome desapareceu. A dor de cotovelo foi sendo educada a cada refeição. “Tira os cotovelos da mesa. É falta de educação”, bronqueava a mãe aos risos dos irmãos.


    Tia Milão era uma mulher muito especial. Viúva, baixinha, cheinha, determinadíssima, sempre que encrencava alguma situação era ela a chamada, e vinha e resolvia. Não tinha tempo ruim ou mar revolto, ia lá e dava jeito, colocava as coisas “no seu devido lugar” como dizia, ponto final. Dentre estas habilidades estava socorrer todos na hora das tratativas pertinentes as mortes. Num vapt vupt resolvia tudo. Tinha prazer em contar as histórias e situações inusitadas, que naquela época eram comuns. Numa destas corria o velório no silêncio, tristezas e alguns choros, tudo segundo as regras e bons costumes, quando o defunto teve um espasmo após morte (espasmo cadavérico) levantando a perna e atirando flores para todos lados. Sobrou tia Milão no velório completamente vazio, flores e castiçais espalhados pelo chão de ladrilhos, cadeiras tombadas, portas escancaradas, uma delas ainda se movia lentamente, e queixumes horrorizados e algumas gargalhadas histéricas vindas da rua onde de onde fosse longe do caixão.  Tia Milão ainda tentou baixar a perna esticada e não pode, não teve forças. Deu meia volta, foi pelo corredor buscar o pessoal do velório ou da funerária, quem pudesse ajudar. Saiu para rua e foi recebi com um macabro espanto por todos. Pegou sua piteira, encaixou o cigarro, acendeu, deu um trago, e deu a ordem “Eles ajeitam e nós voltamos”. Assunto encerrado.


    Aqui e agora, o último texto publicado, foi pesado, é pesado. Ironia do destino, destas que não sabemos como ou porque acontecem e nos fazem lembrar o “yo no creo en brujas, pero que las hay las hay”, ou no “Hóme” lá de cima. Cansado, terminado e publicado o texto saí para relaxar com a bicicleta e acabei perdendo minha carteira que caiu do bolso na Diógenes Ribeiro, a velha Estrada da Boiada. Já de volta fui pagar a comida e bolso vazio, mochila nada, putz! Que dia! Subi na bicicleta e fui refazendo o caminho. Algumas folhas e objetos quadrados se transformam na carteira perdida. Imaginei onde poderia ter caído e fui seguindo em frente. Esperançoso passei por uns moradores de rua sentados na porta do supermercado e aos Céus prometi que se encontrasse minha carteira daria os R$ 50,00 que ainda tinha no bolso dos que retirara para pagar a comida. Olhei o céu estrelado. “Meio canalha meu pedido, mas talvez seja desculpado” confessei meus pecados para as boas almas que certamente nos cercam e Eles, talvez incluindo o texto publicado. Alguns quarteirões a frente o celular tocou, número desconhecido, e uma voz nordestina do outro lado falou "Seu Arturo?"; respondi sem pensar "Você encontrou minha carteira"; "Foi" minha felicidade ouviu. O nome do meu anjo da guarda: Robério. Só aqui no Brasil.

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