quinta-feira, 7 de maio de 2020

Covid é a...

Final de tarde era sagrado igreja e supermercado, nesta ordem. Ela saia ainda cedo de casa para preparar a igreja para a missa do meio dia. Assistia a missa, terminava os serviços, comia um lanche segundo dizia, de lá ia direto para o supermercado e só no fim da tarde voltava para casa com as compras, sempre o sorriso de mais que dever cumprido. O hábito não mudou com as restrições da pandemia. A igreja estava fechada para os fiéis, mas era necessário mantê-la cuidada, como sempre fizera nestes muito anos. Quando os filhos, um casal, ainda iam à missa viam a mãe cabeça abaixada nas primeiras filas a rezar e cantar. Um destes dias em meio ao sermão o irmão olhou em volta e viu que a limpeza não era tão perfeita como a que a mãe fazia questão de deixar em casa, mas ali era muita coisa para limpar, uma igreja antiga, cheia de entranças, capelas, decorações, santos, altar..., é compreensível.
Sábado de noite chuvosa e fria o irmão perguntou para a irmã se queria consertar o barulho do painel do carro dela domingo pela manhã quando continuaria o tempo ruim. Logo após a partida da mãe acordaram, tomaram café, ele pegou a velha caixa de ferramentas do pai que ainda dormia, e desceram para a garagem. Desde que mudaram para aquele condomínio a vaga dos carros da família sempre ficou no fundo, num lugar mal iluminado, que os filhos nunca gostaram e sempre pediram para ir nas reuniões de condomínio, mas a mãe, enérgica, era quem descia para as discussões. "Falou sobre as vagas? Conseguiu melhores?" perguntavam os filhos e silenciava o pai gordo que do sofá não saía para não perder seu futebol, e as cervejinhas, que se diga. A resposta sempre foi a mesma; que a reunião tinha tratado de muita coisa, que como sempre houve discussão e que era um ato de boa-fé não se preocupar com seus próprios incômodos quando estes fossem em benefício do outro. Assunto encerrado.
Desceram juntos, caminharam em silêncio até o carro da irmã ouvindo gemidos. Olharam um para o outro rindo, ela colocou o dedo nos lábios pedindo a ele silêncio e seguiram em frente cuidando para não fazer barulho ao andar. Abriram as portas do carro olhando um para o outro com vontade de rir, ele lentamente abriu a caixa de ferramentas, tirou a chave de fenda. "Não liga os faróis para não perceberam que tem gente na garagem. Vamos ver no que dá", disse a irmã. Mesmo com pouca luz começou a apertar parafusos e sua expressão foi mudando, ela se divertindo dos gemidos da mulher que dentro de algum carro. Começava o orgasmo. O som vinha baixinho e abafado, provavelmente por janelas fechadas, mas não havia engano, até porque cada vez menos controlado, cada vez mais gozado. "Eu conheço esta voz", disse o irmão. A irmã, controlando-se para não rir disse "é uma gata, não é gente". "Eu conheço esta voz", repetiu ele. "Fica quieto". E depois de outros barulhos, provavelmente uma batida forte de pé no painel ou na porta, no outro carro o silêncio se fez. Os irmãos ficaram imóveis esperando para ver quem e de onde sairia o casal. Ouviram as portas abrirem, um breve demorado silêncio, fecharem, o motor foi ligado, a frente do carro apontando e saindo da vaga. "Eu conheço este carro. Fecha a porta e vamos atrás" e a irmã fechou, já não tão divertida, nem tão excitada e curiosa. Parados e com pescoço esticado sobre o painel deixaram que o casal saísse com calma da garagem para não serem vistos. Não tinham que seguir de perto, nem precisavam, conheciam o carro e sabiam de quem era. "O padre não está aproveitando a pandemia para reformar a igreja?" perguntou a irmã.
A noite o jantar foi num silêncio sepulcral. O pai não estranhou mais entretido com o jogo correndo na TV. De qualquer forma preferiu não perguntar nada, como sempre. Vai que sai um gol. A mãe, sorridente, também não. "Deve ser coisa de jovens". Na hora de recolher os pratos contou que o coroinha tinha pegado a gripe e emendou "Espero que não tenha contaminado ninguém". Passados uns dias e a cara feia de seus filhos que não passava foi explicada com um "na próxima reunião de condomínio você vai trocar nossas vagas" afirmativo e definitivo. No dia seguinte a mãe mandou uma mensagem que o padre tinha pegado a gripe e que ela ficaria uns dias na igreja para não deixa-la abandonada. Na loja de móveis o pai soube, para seu espanto, que o padre tinha comprado a cama de casal mais cara e fugido com uma mulher. Almoço na mesa, TV desligada, contou a novidade. Os filhos riram. "O padre vai morrer de corona!" ironizou o garoto. 

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