sábado, 25 de julho de 2009

A bicicleta e a lei



Sábado, 25 de Julho de 2009

Tobias Heyemeyer
“As pessoas precisam parar de pensar como se fossem máquinas”
“As leis são feitas para que as pessoas possam conviver com as máquinas, como um elemento regulador”

Eric Ferreira
“A lei é boa, mas não é cumprida. Pobreza faz com que a população tenha desconhecimento da lei. Quem tem dinheiro usa bem a lei, e isto não é aqui, é em toda parte do mundo.
Lei não funciona porque não é cumprida.”

Reginaldo Paiva
“Todos somos pedestres em algum momento do dia, até o motorista que tem que caminhar até seu carro estacionado”.

a voz do povo:
“Há lei que pega e lei que não pega”

Eu:
Minha dificuldade aqui é segurar o “Orlando Furioso” que há dentro de mim quando falo sobre a questão das leis e seus resultados sobre nossa sociedade. Acredito que qualquer produto tenha que dar os resultados esperados e a lei brasileira e sua aplicação não oferecem o resultado esperado, muito longe disto. Dizem os conhecedores que é um bom produto, mas nossa realidade diária mostra o contrário. O fato é que há algo muito errado.

Converso e discuto muito sobre o assunto, que será tema de palestra que darei amanha no SESC Ipiranga. Ontem foi a tarde passei o dia conversando com Tobias; hoje Eric tem tido de uma grande paciência para tentar me acalmar e me colocar no eixo. A questão da lei, ou dos resultados sociais que temos, no Brasil me é assunto visceral. Infelizmente ai eu faça parte da grande torcida brasileira quando não canta vitória fica com raiva e torna-se irracional.

Eric me conhece bem e sabe que a questão não é o que penso, mas minha forma de comunicação, e que quase sempre quando uso a boca e falo exagero, tenho linguagem cruel ou imprópria para o que penso de fato.
Me sinto mal com tal comportamento.Meu porto seguro é a palavra escrita, que anoto, escrevo, digito, redigito, reviso muitas vezes até calibrar o tiro. Como aqui.
Sou brasileiríssimo, mas tive oportunidade de ter boa vivência com uma Argentina sempre tumultuada e propensa a resolver as coisas na exceção, na porrada. Aprendi então que o resultado de extremismo é geralmente ruim ou péssimo.
No fundo da alma tenho consciência que ter a lei como norte é a única solução para os males do planeta. E se a lei for ruim ou errada é necessário usar leis boas para derrubá-la e construir uma melhor e mais adequada. Exceção não dá, casuísmos e populismo barato também não.

A bicicleta e a lei

Como cidadão, ciclista e pedestre não gosto nem um pouco do que nos acontece. Como ciclista de metrópole não acho que o pessoal que está no meio do trânsito dirigindo seus carros, ônibus, caminhões, motos, seja maldito porque não se comporta ao pé da lei, no caso o Código Brasileiro de Trânsito. Será que seriam mais bonzinhos? Eles são o que são, jogam o jogo que está na lá. Talvez possa culpá-los por não procurar mudar a situação ruim que também os afeta, mas não por fazer algumas coisas que perante a lei são infrações. Um motorista europeu que freou num sinal de pare simplesmente perdeu a vida porque o caminhão que vinha atrás fazia como todos da cidade: diminuía, mas não parava por completo naquela esquina de boa visão. Esta história é real.

O que não me agrada mesmo é a forma como é tratada uma grande parte da população, aquela que optou por não usar o carro. E ai minha crítica recai sobre quem ordena, ou tenta ordenar, esta insanidade nossa de cada dia, que é o poder público. Mas também como culpá-los se só conseguem olhar o próprio umbigo? Eles sabem usar a lei e a usam a seu favor. Anos de pressão sobre os pescoços os fiz com um desvio de cervical típico de velho com osteoporose, a famosa cifose. Envelheceram, e não recebem o apoio da população para rejuvenescer e ter outros olhos para a aplicação da lei.

Eric diz sempre que se o governante decidir fincar posição a questão da bicicleta e do pedestre muda rapidinho. Dá como exemplo Brasília e sua campanha muito bem sucedida para zerar os atropelamentos, dentre outros. Se for cumprida a lei a coisa sai, anda, funciona, dá resultados. Minha experiência diz o contrário, mas não posso negar que a experiência de Eric com a coisa pública é muito maior e mais rica que a minha. O fato é que há uma coisa que pouca gente sabe que é o poder de quem faz a “assinatura de responsabilidade técnica”. Não é pequeno. Se o resultado final der errado quem toma na tarraqueta é quem assina, mesmo que tenha sido em nome do governo ou poder público. O assinante fica sozinho e o governo sai da reta, vemos isto com freqüência.

Não se pode culpar as leis, que se diga a verdade, porque elas são fruto de cada um de nós, dos que as escreveram, dos que as apoiaram, e dos que ficaram em silêncio. De todos, sem exceção. Geralmente a maioria é silenciosa e macabramente ausente o que torna as coisas mais fáceis para um punhado e dificulta justamente para esta maioria.

A questão da bicicleta é talvez um pouco pior porque ciclistas no Brasil é uma fatia muito grande da população, pelo menos 45 milhões/dia, a maior fatia dos usuários de um veículo, mas um povo que não consegue sequer devolver a bicicleta quando esta apresenta defeito ou quebra e arrebenta seu condutor, o que é absurdamente comum nestas pastagens. Pelo outro lado os que fazem barulho são poucos e não raro desafinados, o que os torna presas fáceis para gente experiente. Praticamente não há massa de pressão e os responsáveis pelo trânsito deitam e rolam usando a lei para ganhar o jogo. Que me desculpe, mas eles estão corretos e nós, ciclistas, estamos errados. Precisamos aprender a jogar o jogo.

Quando se pensa na bicicleta, o veículo, é necessário pensar em todo o processo, que começa na fabricação da bicicleta, passa por sua venda, manutenção, segue caminho com o ciclista que vai para o trânsito e lá encontra o poder público como regulador fazendo cumprir leis, terminando de completar a volta no relógio quando gera empregos na indústria. Há leis para cada um dos passos desta vida da bicicleta e do ciclista. Há leis, regulamentações, impostos, obrigações trabalhistas para a fabricação e o setor de vendas e manutenção; há o Código de Trânsito para o condutor, que passa por vias que são construídas e mantidas segundo a lei, e tudo isto influencia e é influenciado pelo mercado, que é regulado pelo poder público, gera empregos, impostos e etc... E assim voltamos ao início do círculo. Ou seja, para tudo há lei. Não é diferente com o carro ou em qualquer setor de nosso Brasil.

Muita lei para pouco cacique

Com certeza o único momento que se pode dizer que a lei é ruim e quando se vê a quantidade absurda de leis e regulamentações que temos no Brasil. O Serra quando assumiu a Prefeitura de São Paulo foi a público e disse que o Município tinha algo em torno de 14.000 leis e que bastaria umas 2.000 para administrar bem a cidade. A Câmara dos Vereadores está tentando limpar o que não presta, mas o trabalho é muito lento. Na mesma época foi divulgado que Brasil tem algo em torno de 35.000 leis criminais e 40.000 civis. É uma confusão danada que faz que se saia bem quem pode. Praticamente todos os mortais morrem afogados neste mar de leis. A lei do jeito que está é boa?

A idéia básica de qualquer lei é chegar ao equilíbrio, mas como toda lei é escrita por alguém esta mesma lei traz consigo uma visão, histórica ou pessoal. Sempre vai tender para um lado. É muito difícil estabelecer um direito igual para todas as partes. Não creia que há má fé, mas há uma parcialidade inerente ao ser humano. Todos os atuais Códigos de Trânsito, brasileiro ou não, receberam uma forte influência de pessoas ligadas ao automóvel. É o momento histórico. Se você conduzir o veículo bicicleta no estrito da lei, construída e instituída para o automóvel e motorista, descobrirá que é ruim ou impossível usar a bicicleta. A racionalidade da bicicleta é outra, seus caminhos são diferentes, sua cidade é outra. O mesmo vale para o pedestre.

O espaço público

A construção da sociedade brasileira está há muito voltada para o automóvel. A indústria automobilística foi competente, virou poderosa, transformou a seu gosto e com aprovação do povo, que gosta deste status quo. Os espaços urbanos foram deformados sob autorização de todos. A cidade brasileira, que normalmente tem desenho europeu, implantou um sistema de trânsito americano. Não pode dar certo. E no meio desta confusão esquecemos que somos antes de mais nada pedestres e agora não temos mais vez. Como diz Tobias “As pessoas precisam parar de pensar como se fossem máquinas”.

É comum ter residências onde muitos dormem num único, desconfortável e apertado cômodo, enquanto o carro tem sua exclusiva garagem com pelo menos 10 metros quadrados de área útil. E isto se repete nos espaços públicos, nas áreas comuns, na funcionalidade das coisas, no dia a dia. O uso dos espaços humanos sofre grande influência das necessidades do automóvel. Isto influência na lei de uso de solo e no próprio Código de Trânsito. Nós criamos a lei e sofremos suas consequências.

Quando o carro não cabe na garagem rouba-se espaço do pedestre na calçada fazendo-se aquela “bundinha” na grade do portão. O pedestre que vá para a rua. O sistema viário, por sua vez, é pensado de forma que o cruzar a rua a pé não atrapalhe o fluxo do trânsito de motorizados, isto quando há local correto para o pedestre caminhar. O carro passa por um asfalto que costumar ter boa qualidade e o mesmo não acontece nas calçadas. E assim vai. A prioridade não é a vida.

Transição

Qual o exemplo que o setor de bicicletas dá? Qual é sua competência? O que ele construiu nestas últimas décadas? Como ganhar espaço no que há de leis vigentes? Muitas foram criadas e mudadas para dar espaço à vida, mas a adaptação da sociedade a elas demora.

O Brasil está passando por uma fase de transição no que diz respeito a cumprimento da lei. Por um lado há pequenas mostras que nossa situação deve melhorar, pelo outro há um caos e uma total falta de respeito em relação à ordem social e institucional. Qual lado deve ganhar este jogo vital ainda não se sabe bem, mas creio que com o tempo e a exaustão geral pendam para o bem. Todas pesquisas científicas mostram que a maioria quer ordem e paz.

A lei e a condução da bicicleta

Nem sempre, ou melhor, praticamente nunca os condutores seguem o estrito da lei. O trânsito acaba se transformando numa espécie de jogo, com pequenas nuances próprias, que pode ou não ter a lei como base e no qual ou o condutor entra no jogo ou pode se dar mal. A intenção final de todo mundo é chegar em casa inteiro, então procuram jogar o jogo o melhor que podem e que estão treinados. Com o ciclista não pode ser diferente. Ciclista não pode ficar sonhando com condições perfeitas de trânsito só para ele. Este sonho é ficar fora do jogo. Isto não existe nem na Holanda onde há uma forma de pedalar típica para não colidir com outros ciclistas, com pedestres, carros ou até tomar um chão na linha do bonde, coisa comum. Até na Disneylândia há regras de jogo. Quem quiser sonhar que vá para cama. Quem quiser jogar o jogo entenda as regras.

Como jogar o jogo? O que está escrito na lei: usar refletores para ser visto, trafegar no sentido do trânsito, não pedalar na contra-mão, pedalar à direita da via, parar quando pedido pela sinalização, obedecer os sinais, e respeitar o pedestre. Porém se você pedalar bem a direita da via, encostado no bordo, como diz a lei, provavelmente se dará mal porque os carros vão espremê-lo contra a guia, o que provoca uma quantidade grande de acidentes. O ideal é definir seu espaço na via pedalando a pelo menos um metro de qualquer obstáculo que esteja a sua direita, e próximo das esquinas sinalizar sua intenção posicionando-se um pouco mais ao centro da via para mostrar que vai seguir em frente. Isto não é previsto em lei, mas é seguro. Ficar lambendo o meio fio é pedir para tomar fechada.

Pense no trânsito como um jogo de futebol. O time que jogar pensando só em não infringir as regras estabelecidas vai perder todas as partidas. Faz parte do jogo uma certa malandragem, jogar com malícia, buscar a vitória. Isto não significa jogar sujo, não saber quando fazer uma falta, quebrar a perna do outro sem querer revide, achar que qualquer contato físico é falta do outro. Jogar o jogo para ganhar não tem nada a ver com ter ataque histérico no meio do campo. Chilique é muito chato e ineficiente. Trânsito é igual, estão todos condutores no mesmo jogo e o outro não é seu inimigo. Aquela situação é só coisa da partida, do jogo, nada mais. Não faça drama e siga em frente sorrindo que você ganha.

A lei e os caminhos da bicicleta e do pedestre

Um dos símbolos mais absurdos do desrespeito da aplicação da lei está nas principais pontes de São Paulo, as que cruzam os rios Tiete e Pinheiros. Em várias só passa tranqüilo quem estiver motorizado, os outros que se danem. E em todas pontes de uma geração, a partir décadas de 70, são inacessíveis para ciclistas e pedestres. Muitas outras vias, só servem para motorizados seja porque só há espaço físico ou seja porque há placas que proíbem o trânsito de pedestres e ciclistas. A lei aplicada diz “você não!”.

As regras são claras. Da Constituição Brasileira, no TÍTULO II, Dos Direitos e Garantias Fundamentais, CAPÍTULO I, DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; etc... Ou seja, em virtude da lei máxima, pedestres e ciclistas estão excluídos de opções de vários caminhos lógicos e práticos.

Usar o bom senso

Volto um passo atrás e lembro que construímos uma vida cheia de vícios relacionados ao uso do automóvel. Da mesma forma que a garagem do carro é importantíssima nas construções, a cidade foi programada por usuários de carro para o uso do carro. A maioria destes, “mesmo sendo pedestres em algum momento do dia”, como diz Reginaldo Paiva, “pensa a vida como automóvel”, como diz Tobias.

De novo, é importante jogar o jogo, sem agredir a lei do bom senso. Os caminhos do automóvel podem ser ótimos para a bicicleta, mas muito perigosos, como no caso de avenidas expressas e estradas. Portanto não vale a pena pedalar ai. Como podem ser melhor para quem tem motor ir por um caminho mais longo ou supera subidas íngremes, que acabará sendo mais rápido. Para o ciclista em vez de dar a volta completa no quarteirão é muito mais prático pedalar uns poucos metros pela calçada – respeitando o pedestre. É contra a lei, mas é bom para o ciclista.

É lógico que há problemas com algumas leis. Toda regra de conduta social vai mudando com o tempo e se torna importante realizar ajustes, alterações ou mudanças para que o que está escrito no papel seja reconectado com a realidade.
A única forma que temos de sair deste impasse histórico que temos no Brasil e no mundo é através do caminho seguro que nos dão as leis. É um norte, que se estiver errado pode ser corrigido, mas pelo menos sempre será um norte, uma referência.

Para ciclistas, pedestres e todos outros que não sejam ou estejam usuários do automóvel é importante jogar o jogo, saber quebrar as regras sem se machucar e principalmente sem invadir o espaço do outro também. A solução da busca da vitória pela porrada, pelo “o outro que se dane”, pelo “eu tenho direito”, ou o pior deles “sabe com quem está falando?” definitivamente não funciona. A história tem provado isto por séculos.

Só vamos construir um futuro bom se for para todos e isto só é possível quando há um ponto de mediação, ou seja, leis boas que sejam cumpridas.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

“Pelo menos fez algo”?




Como assim “Pelo menos fez algo”? Como podemos permitir que qualquer ação incompleta ou precária possa ser considerada um avanço, uma realização? Onde fica nossa dignidade? Onde fica nossa vergonha? “Pelo fez algo” é uma frase que pode ser traduzida como “imbecil”. E para que os ânimos não se precipitem com o termo aqui vai o link do Michaelis para tirar qualquer dúvida: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=imbecil . Pense bem e com calma, “Pelo menos fez algo” é muito mais ofensivo que o termo “imbecil”, mesmo quando imbecil é usado de forma, ofensiva, bruta e pejorativa.
Quando se fala sobre melhorias de segurança e conforto para os usuários da bicicleta muito se fala, diz e repete “pelo menos fez algo”. Como dói! Bicicleta e ciclista é a categoria mais premiada com o “pelo menos fez algo”. Ciclista é um tipo de cidadão que pelo menos aceita qualquer coisa. E ai o resultado é satisfatório para todas as partes. Não é ótimo? Para o político pelo menos provavelmente valerá votos. Para os técnicos responsáveis pela assinatura do projeto o resultado pelo menos é uma vitória que “pelo menos” dá para disfarçar a absurda lerdeza e ineficiência da coisa pública. Pelo menos isto. Para a população no geral pelo menos parecerá um milagre. Pois fiquem de joelhos, que pelo menos esta é sua salvação.
Há no Brasil uma distorção do que é e para o que serve a coisa pública. Como há uma distorção do que é qualidade, do que deveria ser os efeitos das coisas públicas em nossas vidas. Falta noção mais refinada do que é coletivo. Há uma falta de noção do que merecemos de fato como grupo e principalmente como indivíduos. Aliás, a uma falta de noção do que nos é devido, a cada um de nós, e do que devemos. Do que me devem, do que lhe devem. Sim; do que LHE devem, ou seja, o que devem a você, sim você que está lendo estas linhas. Sim, eles devem a você. Eles que fazem parte da coisa pública tem a obrigação legal fazer bem, com qualidade e perenidade. Está na lei. Mas nada está perdido porque pelo menos para algumas coisas parece que fomos alfabetizados.
Ao que tudo indica os maravilhosos exemplos de coisa bem feita, de resultado, de qualidade, do melhor que temos neste país parece que simplesmente não servem de referência. São ilhas isoladas e porque não dizer inexploradas pela consciência brasileira. Um único exemplo? Que tal o Trans Mileniun de Bogotá? Como? Bogotá, Colômbia, aquela cidade daquele país que fala espanhol que hoje serve de referência internacional em revolução de transportes. E que tem em sua base o que? Vamos ver se você adivinha? Em Curitiba. A maior revolução urbana e de transportes do planeta, que é Bogotá, tem sua base na tecnologia brasileira, ou melhor, curitibana. Mas quem de nós brasileiros se interessa? Pelo menos alguns sabem e se orgulham do fato.
Coisa pública é de ninguém, é ruim, é precária? Não é esta nossa história, nosso cotidiano? Nós damos provas cabais diárias de falta de cidadania e individualismo. Pelo menos boa parte da população declara em alto e bom tom que o jogo é este mesmo: coisa pública é de ninguém.
O que parece correto
É absolutamente possível fazer o correto, fazer o durável, fazer o bem feito, fazer o que de fato tem que ser feito para a população específica que vai usá-lo, e de preferência fazer exemplo, fazer referência, fazer inteligência. Nosso passado prova isto. A coisa pública funcionou, nós tínhamos resultados bons, qualidade, usabilidade, eficiência, beleza...
Mas eis que um dia passamos a aceitar o “pelo menos fez algo” e confirmamos nossa aceitação elegendo os reis do “faz algo”, os reis de outrora, nossos algozes desde então e o ranço nosso de cada dia atual. Viva o Minhocão! Para quem não é de São Paulo fica a explicação que o Minhocão está metido no meio da capital paulista. O resto é para quem tem interesse e sabe das coisas.
A realização de qualquer coisa que vá mexer com a vida pública tem efeito ou irreversível ou reversível com um custo alto, para o bem ou para o mal. Um grupo social, a população de uma região, um bairro, uma cidade, um estado, um país, enfim, qualquer grupo muito numeroso de cidadãos, tem reações que podem ser comparadas com as de uma composição de trem em movimento. Se entrarem num desvio errado até parar o “trem” (aqui uma expressão mineira que quer dizer “a coisa”) e voltar para trás vai tempo, espaço e muita energia. Para evitar que estes desvios impróprios aconteçam é vital que tenha um planejamento baseado em experiências reais e na qualidade para manter o trem na linha correta. Esta é a função da coisa pública: manter o trem social na linha correta e conseguir os melhores resultados possíveis. Se não a história vai para um caminho errado e os passageiros do “trem” ficam cantando vitória porque “pelo menos não descarrilhamos”, mesmo com a composição tombada e muita gente.
Se não quer pegar o trem, siga a pé e depois de caminhar em calçadas precárias, ou inexistentes, ou simplesmente não ter onde caminhar, ou não conseguir cruzar uma rua, chegue em casa e pense “pelo menos cheguei”. Uau! Chegou?
A desconstrução do Brasil é o “pelo menos” nosso de cada dia. “Pelo menos” só morrem 35 mil pessoas ano em acidentes de trânsito, e “pelo menos” 45 mil de morte violenta, e Graças a Deus nosso problema é só uma marolinha.
Vamos lá, pelo menos tenha auto-respeito e auto-piedade!

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Mudança deliciosa


Fazia muito tempo que não fixava meu olhar por tanto tempo em alguma imagem, menos ainda que não deixava uma revista aberta ao lado da cama para ver um anúncio. Me senti como uma criança e só me faltou fazer pedidos para Papai Noel. Acredito em Papai Noel? Mas com certeza. Ver aquela simples imagem com duas bicicletas lado a lado, uma masculina e outra feminina, me fez um bem que é difícil de explicar. Antes de apagar a luz dava uma última olhada com carinho e aí era dormir com as esperanças de um anjo. Vai que Papai Noel reconhece.
Estou exagerando? Juro que não - digo com meu lado criança. A imagem das Coffee & Cream, dois modelos clássicos americanos típicos da década de 70 fabricados pela tradicional Schwinn hoje. Nada de alta tecnologia, nada de inovações impensáveis; só a beleza e simplicidade clássica. Precisa entender mesmo de bicicleta e arte para conseguir enxergar. Bicicleta para quem entende do recado, para quem está rodado e tem há muito mãos e bunda calejadas. É aquela coisa: quadro construído com tubos high tensil em diâmetro pequeno; pára-lamas e cobre corrente pintados em cores discretas, café para quadro e garfo, creme para o resto, praticamente sem grafismo. Guidão levemente curvado para trás tão cromado como o avanço curto e curvo de desenho retrô; selim clássico com molas; bagageiro cromado, freios ferradura (ai sim de alta tecnologia); pé de vela monobloco (ou sueco, como queira); sem marchas ou com 3; rodas 700 e pneus 36, o que era chamado de pneu meio esportivo. O conjunto lembra as bicicletas aro 27 dos anos 60 e 70, magrelas, discretas, rápidas, macias, eficientes. As duas, masculina e feminina, tremendamente chiques, remontam a um pedalar romântico, outras épocas, memoráveis tempos.
Noutra revista a mesma propaganda das Coffee & Cream está lá, mas quando se vira a página vem outra delícia visual. Que dúvida, será esta mais charmosa ainda? É uma foto de um cara pedalando uma típica “meio esportiva” Raleigh, clássica, muito clássica, exatamente como na década de 50. Era como ter um carro esportivo, um MG verde ou vermelho. Para quem não sabe o que é uma “meio esportiva” de verdade vale a explicação: é uma bicicleta aro 27 com desenho de estrada e uma geometria mais relaxada, de condução mais previsível, menos agressiva, que vem com pneus mais largos que uma bicicleta de competição e pára-lamas. A verdade é que algumas das meio esportivas vinham com um guidão curvado para trás e só algumas com a curva (guidão) típica de bicicletas de estrada.
Há um bom tempo atrás, talvez um ano, apareceram pela primeira vez as propagandas das Electra Amsterdan, uma evolução das Old Dutch, as “velhas holandesas”. Imponentes, chiquérrimas! A diferença do desenho do quadro desta Electra para as originais fabricadas na Holanda há mais de um século está posição do movimento central, que foi ligeiramente avançado para permitir que o ciclista consiga parar com os pés completamente apoiados no chão. É a chamada “Flat Foot Technology”, uma reinvenção da geometria que abre um espaço incrível para o crescimento do uso da bicicleta para aquela imensa parte da população que se sente insegura na hora de parar. Você pedala com a perna esticada e para com os pés completamente apoiados no chão. Na revista a propaganda não chama tanto a atenção, mas no site da Electra a excitação causada pelo que se vê é total. Aliás, o site é um arraso.
Electra lançou um tempo depois a seqüência para a Amsterdan: a Balloon. A diferença entre elas está principalmente nos pneus brancos e gordos. Brancos e gordos? Não só, eles têm uma tecnologia que faz com que rodem com pouca pressão sem que isto faça que o pedalar pareça que se está num caminhão. A Electra e a Bicycling dizem que a bicicleta roda como se os pneus estivem calibrados com 60 libras, mas o radar é extremamente macio. E daí, que vantagem Maria leva nesta? A bicicleta roda como tivesse uma suspensão sem ter nenhuma suspensão. Ops! Legal!
Mas convenhamos, o espírito infantil gosta mesmo de olhar figurinha. Mas (também) todo adulto tem seu lado criança. Bingo! Entendeu? Não?
Deixe-me ir um pouco mais para frente nesta história. Lime. Trek Lime. Você já pedalou um Lime. Ou qualquer bicicleta com Shimano Coasting? Câmbio automático. Você pedala e as marchas mudam automaticamente. Câmbio automático. Só vai entender a sensação quando fizer um teste com um Coasting. É absolutamente incrível. Para mim foi uma sensação muito parecida com a primeira vez que vi um câmbio funcionando. Era um Campagnolo básico, feito de braços paralelos em chapa de aço plano, muito simples, e descarrilhava a corrente numa catraca de quatro engrenagens e um rodar de uma suavidade impressionante. Meu primo Fabinho colocou a bicicleta de ponta cabeça e me mostrou como funcionava. Para mim aquilo era quase um milagre. Fiquei muito tempo girando os pedais e fazendo trocas de marchas. Pura magia.
A primeira Trek Lime que testei, aqui em São Paulo, era preta, aro 26, uma cruiser clássica, guidão tipo beach bike, freio contra-pedal, que de diferente tem cubrindo as pontas dos eixos das rodas umas pequenas calotas redondas, como as dos VW 1200 (Fuscas mais velhos). Como bicicleta é linda, mesmo que não fosse meu sonho de criança. Mas, basta ir até a esquina para entender o que é a mágica sentir as marchas mudando por vontade própria. Quem pedalou uma riu a não poder mais. É mais que divertido, é ridículamente fácil pedalar. O lado ruim é que o preço da brincadeira é muito alto para meu caminhãozinho. O único defeito está na minha conta bancária.
Mas o que está acontecendo aqui? Estão tentando vender bicicletas puxando pela criança que há em cada um de nós? Provavelmente não. As sensações que tenho têm como base vem de um tempo quando a maioria dos compradores de hoje sequer haviam nascido. Provavelmente seus pais sequer sonhavam se casar.
As propagandas destas bicicletas estão sendo veiculadas na Bicycling, a maior revista especializada em bicicletas do mercado americano e talvez do mundo, que hoje tem sua maior força no ciclismo de estrada. A Bicycling sempre bateu na tecla do uso da bicicleta como modo de transporte, até com projetos importantes de estímulo. Mas como qualquer outra revista o foco é o leitor e no caso é um consumidor sofisticado voltado para o ciclismo ou mountain bike amador. Então, o que estaria fazendo anúncios de Coffee & Cream, Raleigh One Way, Electra Amsterdan e Trek Lime numa revista voltada para outra forma de vida?
Um artigo publicado no início do verão pelo New York Times sobre “estilo de vida” e “moda” na própria cidade de Nova Iorque dá a resposta. O chique do momento para os novaiorquinos é ir trabalhar pedalando as Old Dutch, de preferência as autênticas holandesas. E o chique é pedalar com roupas normais: traje social, roupa de trabalho, roupas de estilo ou grife, tudo no melhor estilo nova-iorquino. Eles descobriram que pedalar uma bicicleta urbana faz você suar pouco, se comparado com pedalar uma bicicleta esportiva. Descobriram que não é necessário vestir “roupa de franga”, aqueles uniformes colados no corpo, próprios para ciclismo esportivo. Enfim, descobriram que no coração do “planeta automóvel” também dá para usar a bicicleta como modo de transporte; como qualquer europeu faz. Eureca!

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Qual a bicicleta correta?


Afinal, qual a bicicleta correta? Teria uma dificuldade tremenda para responder esta pergunta. Tenho 35 anos ininterruptos de pedal e 45 bicicletas, dos mais diversos tipos e modelos, e é muito difícil apontar esta ou aquela como predileta, até mesmo porque há um sentimento de pai para filhas com todas. É lógico que algumas marcaram para valer, umas pela qualidade, outras pela beleza, empatia e até mesmo pelo que elas representaram em determinado ponto de minha vida. O fato é que se conheço um pouco sobre bicicletas, ciclistas e sistemas viários devo praticamente tudo a elas. Rodar com cada uma me fez entender não só a personalidade da bicicleta em si, mas como ela se impõe sobre a maioria dos ciclistas e dá características ao seu uso e a cidade em si.
A maioria das que tive está hoje no Museu da Bicicleta de Joinville. Gostaria de ter tido mais, ter experimentado outras, aprendido mais ainda. No seu devido tempo terei que sentar e escrever um texto, uma espécie de teste, de cada uma para que o público possa fazer uma certa idéia de quem é realmente aquela “menina”. Espero que com isto percebam que uma bicicleta não é simplesmente uma bicicleta. Algumas são verdadeiras obras primas.
Minha Specialized M2 1991, com a mesma configuração da que foi campeã do mundo, talvez tenha sido a melhor de todas. Suas rodas Z21 Pro são um sonho de leveza e precisão, impressionante, coisa de puro sangue. O quadro não fica atrás, mas minha opção por um quadro 19 foi pensada quando tinha 35 anos e ainda pensava em competir (amador), sabia que minha pilotagem era técnica, boa na chuva, barro e terreno escorregadio. O conjunto era muito leve porque sou mais lento nas subidas. Foi montada e configurada para minhas características, mesmo contra recomendações, e com ela levantei minha taça de campeão dos velhinhos. Perfeita! Mas a idade chegou, as competições ficaram para trás e sair com ela na rua me dava a sensação de estar guiando um kart no meio dos carros. Vídeo game total! Muito divertido, mas pedalar assim é ficar brincando com faca de sushi. Despachei-a para o Museu e fui para uma full de primeira, mas uma boa suspensão traseira que “limpa” os erros e estica a margem dos abusos. Também muito divertida, mas me levava ao inconseqüente sem que perceba. Virou doideira.
Pouquíssimos têm a possibilidade de configurar uma bicicleta perfeita para si, com tecnologia de ponta, maravilhosa tecnologia. Boa tecnologia fornece segurança, confiabilidade e conforto, mas mascara a realidade porque acaba fazendo as coisas por você. Uma boa bicicleta conversa com o ciclista, tem uma relação de troca. Sei disto porque foi com as mais simples que aprendi a avaliar uma bicicleta e dar o real valor à qualidade. É com as mais simples que você entende qual é o peso da sabedoria e do conhecimento empírico inerente à história da bicicleta. Sem ter sentado, conversado, ouvido e sentido com muitas “meninas” básicas não creio que teria dado o real valor à qualidade.
Bicicleta tem alma, não tenha dúvida.
Das mountain bike que usei só na rua marcou uma JNA, um dos últimos modelos desenhados pelo Nelson, um gênio. Mesmo feita em aço e pesada, era mágica, previsível, precisa, com um rodar distinto, um doce de pedalar. Era mais uma aula de como um bom ciclista - projetista faz diferença. Reforçava o fato que um criador de bicicletas tem que ser um sensível e experimentado ciclista. Do contrário, o pedalar é simplesmente um girar de pedais sem graça. É algo que até o mais duro ciclista consegue sentir.
Depois de muito uso a JNA foi para o Museu e foi substituída por uma bicicleta com um quadro também de aço, mas com tubos finos cachimbados o que faz uma diferença muito grande no rodar. A bicicleta fica macia, mansa, tranqüila, o que faz que seu pedalar seja também mais tranqüilo. Infelizmente teve a vida encurtada por uma valeta aberta durante a noite. Esta menina marcou porque com ela comecei a fazer o caminho de volta para as bicicletas urbanas. Me fez voltar ao antes das mountain bike, quando pedalava umas bicicletas lentas e pesadas, ruins diria até, de uma categoria mais conhecida como “Barra”, mas que tinham a característica de ser muito macias e tranqüilas. Muito deste conforto se devia aos quadros de tubos finos e os pneus 26 ½, de diâmetro maior que os das mountain bike.
Ao longo do auge do mountain bike, entre 1988 e 1994, comprei uma série de femininas das décadas de 50 e 60 pensando praticamente só no Museu. Ficava pouco tempo com elas. Uma me impressionou pela delicadeza de seu quadro. Provavelmente italiana pesava absurdos 10 quilos, mesmo sendo inteira em aço. Qualquer outra bicicleta parecida pesaria pelo menos 15 quilos. Era necessário ter certo cuidado ao pedalar porque a “menina” tinha sido fabricada para ser pedalada por uma mulher pequena e leve, e com meu tamanho e força (que não é assim aquelas coisas...) ela mexia para valer. Logo em seguida comprei uma Road Máster 1962 que então já tinha rodado 32 anos sem ir para a bicicletaria. Encontrei outra feminina clássica azul clara, quadro fabricado aqui no Brasil provavelmente em uma fabriqueta qualquer e no início da década de 70, que tinha rodas 700, um pé de vela 165. O seu rodar era delicioso, um doce com calda de chocolate. Com seu pé de vela tão curto o sair era lento e as subidas tinham que ser vencidas no alto giro, mas ela me levava onde queria magistralmente. A previsibilidade do rodar, influência das rodas 700, era notável. Que menina!
Sempre gostei de rodas de diâmetro grande. Quem já pedalou uma aro 28 da maravilhosa geração Phillyps, uma Opel, e outras européias até 1950, sabe bem do que falo. São extremamente macias e guardam bem a própria inércia, mas são menos ágeis que as atuais 26 e 700. O aro 28 não é mais fabricado. Tem muita gente que confunde com aro 700, que é o 28 1.5/8, e de menor diâmetro. Hoje tem quem diz que elas são as aro 29, as “big foot”, mas também não o é. Nem uma coisa, nem outra. Aro 28 creio que seja o maior que tenha sido fabricado em larga escala.
Para entender e por ordem de diâmetro: hoje bicicleta de adulto começa no 26 das mountain bikes, vai para o 700 das híbridas e speed, depois passa para o 27 das ótimas bicicletas da década de 70, incluindo a Caloi 10. Aro 28 seria o próximo diâmetro, mas hoje temos as “big foot”, aro 29. São rodas imensas que dão muita maciez ao rodar e passam por quase tudo que deteria facilmente uma roda com aro 26. A bicicleta fica muito estranha. No meio destas há uma série de medidas hoje praticamente inexistentes. Quem tiver curiosidade veja a bagunça toda nas tabelas do Sheldon Brown - http://www.sheldonbrown.com/tire-sizing.html#fraction . Pedalei praticamente todas as medidas de rodas para adulto e para mim o aro 700 tem o melhor balanço entre a aceleração e suavidade. Para uso urbano é o ideal e talvez por isto seja a roda padrão da Europa.
O tamanho da roda e seu peso quase que impõe a você a forma de condução. A roda é a base da inércia de uma bicicleta. Uma roda de grande diâmetro e mais pesada é mais lenta na aceleração, mas é mais confortável. Estas características faz com que você pedale mais tranqüilo, com mais serenidade, o que no meio do trânsito obriga você a ser menos agressivo, o que por sua vez é menos estressante e acaba sendo mais agradável e seguro.
A redescoberta definitiva das rodas grandes veio quando Teresa telefonou para casa e perguntou se eu queria ficar com uma Caloi Cruiser feminina tipo “barra”, pseudo mountain bike, fabricada em 1989. Tinha rodas com aros em aço cromado que não freiam, e grandes pneus 26 ½ 2.1. Para completar pé de vela monobloco, sem marchas, e freio ferradura que também não freia. Pensando bem uma estrovenga, divina estrovenga. Sentia as pernas na arrancada, mas depois que ela pegava sua velocidade de cruzeiro e ditava a regra. Um pouco estranha e até desagradável a princípio, mas quando entendi sobre o que ela estava me falando fiquei apaixonado. O rodar sóbrio que ela me proporcionou fez com que meus conceitos sofressem uma reviravolta completa. Fazia tanto tempo que usava tecnologia de ponta que praticamente havia perdido o conceito básico do que é uma bicicleta na acepção da palavra. Usei-a por um bom tempo. Fiz passeios longos com amigos que saíram com ela e também ficaram impressionados com a personalidade forte da menina. Infelizmente era pequena e me causava dores nas costas ou teria sido a bicicleta urbana oficial definitiva.
O que a gente nunca imagina é que com o tempo o corpo vai mudando e nossa postura na bicicleta passa a ser outra. Não consigo mais me manter numa posição tão agressiva quanto no passado. A postura mais em pé praticamente virou uma necessidade da idade e um conforto para pedalar no trânsito. O físico muda e cabeça também. Como já disse brincar de “kart” pode ser divertido, mas o tempo faz com que olhar a paisagem seja muito mais.
Quando penso no pessoal que pedala nas praias, com aquele visual maravilhoso, vejo ciclistas calmos, tranqüilos. Não é só a questão do ambiente que faz isto, mas também a geometria do quadro que propõe um pedalar mais ereto e uma dirigibilidade mais estável e muito previsível. Quanto mais em pé está o ciclista maior o arrasto aerodinâmico, o que faz com a bicicleta dite um limite de esforço. Isto faz com que o ciclista
Hoje tenho consciência mais clara de minhas necessidades. Amadureci (será?) e cheguei a conclusão que com uma híbrida (rodas 700 x 38) e uma sem marchas sou feliz e estou resolvido. Até quando não sei, mas creio que este casamento seja mais duradouro.
Mas, afinal, qual a bicicleta correta? Para quem? Para que? Infelizmente poucos podem ter a oportunidade de rodar em tantas e tão diversas bicicletas como eu tive. Todas elas me ensinaram muito sobre quem é a maioria dos ciclistas que conheço, vejo na rua ou tenho notícias. E por causa disto é muito difícil responder qual a bicicleta correta. Para quem? Em que momento da vida? Para que uso? Em que topografia. Daí uma das mais importantes recomendações deste site, o Escola de Bicicleta: teste o maior número de bicicletas possível antes de chegar a sua opção final. E tenha a mente aberta para as mais diversas opções de modelos e tipos, incluindo ai tipo de roda. Se você pretende chegar perto da sabedoria jamais diga que encontrou a bicicleta perfeita.

Personalidade


O visual é inspirado numa moto? Talvez. Ou provavelmente. Numa daquelas de alta velocidade, compactas, baixas, agressivas, que aceleram muito rápido e deixam para trás um rastro de som agudo que ao mesmo tempo excita e perturba. Não para por aí porque seus criadores conseguem ter uma personalidade própria e acabam misturando rodas de 72 raios, coisa típica de motos choppers. O resultado final é uma bicicleta diferente, muito compacta, baixa, vistosa, chamativa. Os garotos que as pedalam fazem parte de um grupo social diferenciado e nunca desaparece na história. Sempre fez modificações para personalizar ao próprio gosto, mas em alguns casos a coisa vira acaba virando arte e a partir daí vira moda.
Como base há de tudo, contanto que não seja um quadro de bicicleta muito normal. E muito normal pode ser simplesmente pegar uma bicicleta básica com suspensão traseira, tirar o amortecedor traseiro e travar a traseira deixando o movimento central bem próximo ao solo. Muda toda a dinâmica da bicicleta, mas quem se importa? Dinâmica? Como? Estas belezas até tem alguma, mas ergonomia é muito difícil de pronunciar. Vale o estilo. E quem se importa, para baixo todo banco ajuda. Que seja. Entre as que passam pela praça central de Catanduva lá vai uma BMX modificada, uma Barra Circular branco pérola, e até uma Ceci 20, todas com suspensão dianteira de “canetas” (bengalas) longas e grossas, parecida com as de downhill, mas reposicionadas para ficarem rebaixadas ao máximo, praticamente ou completamente sem curso.
O rosto de orgulho com uma pincelada marota de maturidade dos meninos que circulam com estas bicicletas é de se notar. São vários, cada um com sua bicicleta assinada. Não vi nenhum subindo, mas vi vários descendo as ladeiras. Deve haver uma mágica aí e provavelmente se chama juventude. Um deles conseguiu o feito de descer a mil com a namorada sentada no cano. Nesta situação a bicicleta baixa e compacta praticamente desapareceu e o que se viu foi um casal feliz e falante voando pelo meio da praça. É lógico que ela se esforçava para não raspar os pés no chão. Não, não vestiam nenhuma roupafora do comum, não seguiam nenhuma moda particular, nem o casal, nem qualquer um dos vi pedalando estas “bicicletas”. A diferença está na bicicleta.
No litoral é comum ver meninos usando bicicletas modificadas, geralmente femininas, neste 2009 não raro são na cor cor-de-rosa, aliás um cor-de-rosa bem sem graça. Nenhuma bicicletaria sabe explicar porque vende esta “cor horrorosa” (sic); mas que vende, vende. Saem da loja com rodas com aros coloridos, com freqüência em cores que deixam a bicicleta mais feia ainda. Será que é para que não sejam roubadas? Sei lá? O fato é que os garotos pedalam cheios de orgulho. Os mais ousados simplesmente tiram o sistema de freio. Tiram ou quebra tanto que eles descartam? Provavelmente descartam a idéia de continuar a consertar o que não tem conserto, então vão sem freios. Ciclistas transviados? Não exatamente. São tranqüilos, não pedalam com agressividade, muitos levam jeito para ciclismo sério. Teriam que aprender a pedalar numa bicicleta ajustada para a ergonomia correta, já que estas “rosinhas” têm o selim lá em baixo, no talo, e o pessoal não raro freia usando o chinelo no chão. Freio havaiano, o máximo!
Em todo Brasil é possível encontrar uma categoria de donos de bicicleta que sempre existiu e continuará existir: os perfeccionistas. Não é um grupo grande, muito menos unido. São indivíduos individualistas que tem na bicicleta seu templo. A bicicleta é absolutamente limpa, brilhante, sem arranhados, em alguns casos cheias de detalhes como espelhinhos, refletores, buzina (chamar de campainha pode ser um pecado), paralamas, parabarros, bagageiro e muito comum, capa de selim. E com certeza o pezinho para manter a bicicleta bem parada e visível no meio da praça ou calçada. Perfeccionismo levado a beira da esquizofrenia. Quem já recebeu a difícil permissão para pedalar uma sabe que ajustes e lubrificação são impecáveis e não se ouve um ruído sequer, não importa quantos buracos haja pelo caminho. Há mil variações do tema, mas uma coisa não muda: todos donos são perfeccionistas e extremamente orgulhosos de sua preciosa propriedade.
“Leva tudo” é a categoria de bicicletas mais fácil de perceber até de longe porque praticamente todas vêm pelas ruas com som tocando música a altos brados. A bicicleta é personalizada com qualquer coisa que seu dono ache pertinente, mesmo que não tenha a menor função e até atrapalhe um pouco o pedalar. Em São Paulo uma destas, genial por sinal, foi inteirinha coberta com piranhas de cabelo, das mais diversas cores. Não sei bem quantas foram necessárias, mas deve ter acabado o estoque de piranhas de uma grande loja de cosméticos. Quer saber, ficou linda. Uma jovem de Santos cobriu toda sua Ceci com flores artificiais. A dona sempre pousa para fotos com sua “maria chiquinha” nos cabelos. Vi uma parecida na Europa, um pouco menos florida. Nesta categoria de “decoradores” uns se intitulam artistas, outros simplesmente querem se fazer notar, mas esteja certo que basta chegar perto e a conversa dispara.
Há os utilitários. Havia um catador de lixo que era completamente eclético. Sua bicicleta, ou melhor, veículo utilitário, tinha um guidão alto, muito alto, da altura da caixa dianteira que levava seus pertences. Os vários espelhos presos no guidão ajudavam a visão traseira e lateral, já que a caixa de recicláveis tinha a altura do ciclista em pé, ou mais alta. Ninguém que o viu passar pedalando conseguia entender como ele se equilibrava. Os que tinham alguma noção sobre estruturas ou bicicletas nunca entenderam como aquela coisa não partia ao meio. Olhando de perto era possível ver os remendos de solda no quadro. Um outro, em Osasco, resolveu a questão da carga de maneira bem mais comum e habitual: com um carrinho feito com o corpo de geladeira acoplado atrás da bicicleta. Isto não eximiu que a bicicleta tenha recebido um certo “tunnig”, por assim dizer, com latas de cerveja e refrigerante recortadas e muitos CDs. Não se via os tubos da bicicleta que mais parecia um monocoque de carro de corrida. Brilhava, como brilhava. Ora, o reboque era o reboque, um vulgar reboque lotado de tralhas.
Um destes ciclistas personalidade fez história em São Paulo: o Bill. Havia muitas versões sobre sua história, mas ao que parece simplesmente surtou e foi parar nas ruas. Apesar de angariar simpatias fazia questão de não se comunicar e com os poucos que falava misturava inglês e português, não exatamente inglês nem português, mas algo vagamente inteligível. Pedalava o dia inteiro vestido num macacão de piloto de Formula 1, com capacete e tudo. Prestou suas homenagens a Airton Senna. Sua bicicleta era completamente coberta por tinta a óleo pintada a pincel, toda na mesma cor, incluindo pneus, seguindo padrões dos carros de corrida da época. Algumas bicicletarias sempre o ajudavam até porque virava e mexia lhe roubavam a bicicleta e uma nova tinha que ser providenciada, sempre acompanhada das latas de tinta e pinceis pedidos por Bill.
Há mais uma categoria, a dos ricos, aqueles que têm bala na agulha para comprar bicicleta, capacete, sapatilha, roupas, e tudo mais do mais alto preço que o mercado pode oferecer. Estes crêem que é de bom tom se manter em grupo fechado, em vistosos e cobiçados pelotões que disputam entre si quem pode mais. Devem sentir grande orgasmo quando os simples mortais babam à distância. Mas a vida é cheia de ironias e eis que um dia, junto a um destes pelotões, acompanhou um simples mortal ciclista vestindo sandálias de dedo e pedalando sua Barra Forte. Com um pequeno detalhe que estava levando sua filha sentada no bagageiro para a escola. Ficou um bom tempo pedalando em silêncio ao lado dos ricos, que no plano vinham tranqüilos. Estes, impacientes com o ranger da pobre bicicleta, começaram a subir mais forte para dispensar o pé de chinelo. E ele que foi junto, subindo com filha e tudo, á mesma velocidade que os ricos senhores e suas máquinas maravilhosas, olhou para o lado e com o fôlego perfeito disse naturalmente: “Bonitas bicicletas”.