quinta-feira, 2 de julho de 2009

Personalidade


O visual é inspirado numa moto? Talvez. Ou provavelmente. Numa daquelas de alta velocidade, compactas, baixas, agressivas, que aceleram muito rápido e deixam para trás um rastro de som agudo que ao mesmo tempo excita e perturba. Não para por aí porque seus criadores conseguem ter uma personalidade própria e acabam misturando rodas de 72 raios, coisa típica de motos choppers. O resultado final é uma bicicleta diferente, muito compacta, baixa, vistosa, chamativa. Os garotos que as pedalam fazem parte de um grupo social diferenciado e nunca desaparece na história. Sempre fez modificações para personalizar ao próprio gosto, mas em alguns casos a coisa vira acaba virando arte e a partir daí vira moda.
Como base há de tudo, contanto que não seja um quadro de bicicleta muito normal. E muito normal pode ser simplesmente pegar uma bicicleta básica com suspensão traseira, tirar o amortecedor traseiro e travar a traseira deixando o movimento central bem próximo ao solo. Muda toda a dinâmica da bicicleta, mas quem se importa? Dinâmica? Como? Estas belezas até tem alguma, mas ergonomia é muito difícil de pronunciar. Vale o estilo. E quem se importa, para baixo todo banco ajuda. Que seja. Entre as que passam pela praça central de Catanduva lá vai uma BMX modificada, uma Barra Circular branco pérola, e até uma Ceci 20, todas com suspensão dianteira de “canetas” (bengalas) longas e grossas, parecida com as de downhill, mas reposicionadas para ficarem rebaixadas ao máximo, praticamente ou completamente sem curso.
O rosto de orgulho com uma pincelada marota de maturidade dos meninos que circulam com estas bicicletas é de se notar. São vários, cada um com sua bicicleta assinada. Não vi nenhum subindo, mas vi vários descendo as ladeiras. Deve haver uma mágica aí e provavelmente se chama juventude. Um deles conseguiu o feito de descer a mil com a namorada sentada no cano. Nesta situação a bicicleta baixa e compacta praticamente desapareceu e o que se viu foi um casal feliz e falante voando pelo meio da praça. É lógico que ela se esforçava para não raspar os pés no chão. Não, não vestiam nenhuma roupafora do comum, não seguiam nenhuma moda particular, nem o casal, nem qualquer um dos vi pedalando estas “bicicletas”. A diferença está na bicicleta.
No litoral é comum ver meninos usando bicicletas modificadas, geralmente femininas, neste 2009 não raro são na cor cor-de-rosa, aliás um cor-de-rosa bem sem graça. Nenhuma bicicletaria sabe explicar porque vende esta “cor horrorosa” (sic); mas que vende, vende. Saem da loja com rodas com aros coloridos, com freqüência em cores que deixam a bicicleta mais feia ainda. Será que é para que não sejam roubadas? Sei lá? O fato é que os garotos pedalam cheios de orgulho. Os mais ousados simplesmente tiram o sistema de freio. Tiram ou quebra tanto que eles descartam? Provavelmente descartam a idéia de continuar a consertar o que não tem conserto, então vão sem freios. Ciclistas transviados? Não exatamente. São tranqüilos, não pedalam com agressividade, muitos levam jeito para ciclismo sério. Teriam que aprender a pedalar numa bicicleta ajustada para a ergonomia correta, já que estas “rosinhas” têm o selim lá em baixo, no talo, e o pessoal não raro freia usando o chinelo no chão. Freio havaiano, o máximo!
Em todo Brasil é possível encontrar uma categoria de donos de bicicleta que sempre existiu e continuará existir: os perfeccionistas. Não é um grupo grande, muito menos unido. São indivíduos individualistas que tem na bicicleta seu templo. A bicicleta é absolutamente limpa, brilhante, sem arranhados, em alguns casos cheias de detalhes como espelhinhos, refletores, buzina (chamar de campainha pode ser um pecado), paralamas, parabarros, bagageiro e muito comum, capa de selim. E com certeza o pezinho para manter a bicicleta bem parada e visível no meio da praça ou calçada. Perfeccionismo levado a beira da esquizofrenia. Quem já recebeu a difícil permissão para pedalar uma sabe que ajustes e lubrificação são impecáveis e não se ouve um ruído sequer, não importa quantos buracos haja pelo caminho. Há mil variações do tema, mas uma coisa não muda: todos donos são perfeccionistas e extremamente orgulhosos de sua preciosa propriedade.
“Leva tudo” é a categoria de bicicletas mais fácil de perceber até de longe porque praticamente todas vêm pelas ruas com som tocando música a altos brados. A bicicleta é personalizada com qualquer coisa que seu dono ache pertinente, mesmo que não tenha a menor função e até atrapalhe um pouco o pedalar. Em São Paulo uma destas, genial por sinal, foi inteirinha coberta com piranhas de cabelo, das mais diversas cores. Não sei bem quantas foram necessárias, mas deve ter acabado o estoque de piranhas de uma grande loja de cosméticos. Quer saber, ficou linda. Uma jovem de Santos cobriu toda sua Ceci com flores artificiais. A dona sempre pousa para fotos com sua “maria chiquinha” nos cabelos. Vi uma parecida na Europa, um pouco menos florida. Nesta categoria de “decoradores” uns se intitulam artistas, outros simplesmente querem se fazer notar, mas esteja certo que basta chegar perto e a conversa dispara.
Há os utilitários. Havia um catador de lixo que era completamente eclético. Sua bicicleta, ou melhor, veículo utilitário, tinha um guidão alto, muito alto, da altura da caixa dianteira que levava seus pertences. Os vários espelhos presos no guidão ajudavam a visão traseira e lateral, já que a caixa de recicláveis tinha a altura do ciclista em pé, ou mais alta. Ninguém que o viu passar pedalando conseguia entender como ele se equilibrava. Os que tinham alguma noção sobre estruturas ou bicicletas nunca entenderam como aquela coisa não partia ao meio. Olhando de perto era possível ver os remendos de solda no quadro. Um outro, em Osasco, resolveu a questão da carga de maneira bem mais comum e habitual: com um carrinho feito com o corpo de geladeira acoplado atrás da bicicleta. Isto não eximiu que a bicicleta tenha recebido um certo “tunnig”, por assim dizer, com latas de cerveja e refrigerante recortadas e muitos CDs. Não se via os tubos da bicicleta que mais parecia um monocoque de carro de corrida. Brilhava, como brilhava. Ora, o reboque era o reboque, um vulgar reboque lotado de tralhas.
Um destes ciclistas personalidade fez história em São Paulo: o Bill. Havia muitas versões sobre sua história, mas ao que parece simplesmente surtou e foi parar nas ruas. Apesar de angariar simpatias fazia questão de não se comunicar e com os poucos que falava misturava inglês e português, não exatamente inglês nem português, mas algo vagamente inteligível. Pedalava o dia inteiro vestido num macacão de piloto de Formula 1, com capacete e tudo. Prestou suas homenagens a Airton Senna. Sua bicicleta era completamente coberta por tinta a óleo pintada a pincel, toda na mesma cor, incluindo pneus, seguindo padrões dos carros de corrida da época. Algumas bicicletarias sempre o ajudavam até porque virava e mexia lhe roubavam a bicicleta e uma nova tinha que ser providenciada, sempre acompanhada das latas de tinta e pinceis pedidos por Bill.
Há mais uma categoria, a dos ricos, aqueles que têm bala na agulha para comprar bicicleta, capacete, sapatilha, roupas, e tudo mais do mais alto preço que o mercado pode oferecer. Estes crêem que é de bom tom se manter em grupo fechado, em vistosos e cobiçados pelotões que disputam entre si quem pode mais. Devem sentir grande orgasmo quando os simples mortais babam à distância. Mas a vida é cheia de ironias e eis que um dia, junto a um destes pelotões, acompanhou um simples mortal ciclista vestindo sandálias de dedo e pedalando sua Barra Forte. Com um pequeno detalhe que estava levando sua filha sentada no bagageiro para a escola. Ficou um bom tempo pedalando em silêncio ao lado dos ricos, que no plano vinham tranqüilos. Estes, impacientes com o ranger da pobre bicicleta, começaram a subir mais forte para dispensar o pé de chinelo. E ele que foi junto, subindo com filha e tudo, á mesma velocidade que os ricos senhores e suas máquinas maravilhosas, olhou para o lado e com o fôlego perfeito disse naturalmente: “Bonitas bicicletas”.

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