terça-feira, 5 de julho de 2022

Vida e quase morte de Carlota Joaquina

Qual é o sentido da vida?

A belezura da foto é Carlota Joaquina, uma belíssima schnauzer que hoje deve ter uns 8 anos. Foi adotada e não se sabe quantos anos viveu trancada, pelo menos quatro ou cinco, numa gaiola servindo de reprodutora para um canil de Piedade, o mesmo que Luiza Mel teve que resgatar 1707 cachorros.

Quando chegou em sua nova casa não respondia a nenhum chamado, parecia um pano de chão. Com tempo, muito carinho e estímulo que ganhou de Tereza foi aflorando, ganhando vida, seu corpo recuperou-se, ficou linda, carinhosa, tornou-se uma cachorra alegre e feliz. Com ela entendi o significado de reviver, que é possível recuperar vidas quase mortas. A bem da verdade minha prima que está com Alzheimer também passa pelo mesmo processo: revive com os ótimos cuidados que vem recebendo, coisa infelizmente para poucos neste país.

Ver o outro reviver por um lado é uma alegria, e para quem gosta de pensar é um levantar poeira sem fim.

E vieram os primeiros desmaios Carlota e com eles o diagnóstico de um coração aumentado com má formação nas válvulas. "Pelo menos demos três anos de vida normal e feliz para ela" diz Tereza com muita tristeza.

Semana passada com muita dificuldade para respirar foi levada ao hospital veterinário e lá ficou por três dias e noites. Descobrimos que cachorro que não deita e respirando com pescoço esticado é porque está com líquido no pulmão, ou seja, está morrendo afogado.

No segundo dia da internação de Carlota peguei uma folha e escrevi o croqui para um texto que não tive condição emocional de subir no blog. Depois que Carlota voltou para casa tentei escrever em cima das anotações, mas foi impossível, a cabeça daqueles momentos angustiantes se foi. Humanos tem uma impressionante capacidade de superar situações negativas, mesmo que seja aos pedaços. Agora tento escrever, mas ainda não consigo encontrar o caminho. É muito a se pensar, os pensamentos passam muito rápido, são muito densos, tudo muito intenso.

Não, não há drama; é o que é.

Pela cabeça passou de tudo, da pergunta "qual é o sentido da vida?" até um "qual é o valor da vida?", nos dois sentidos, incluso o monetário. Entrou nestas contas a história de minha mãe que ficou doente por décadas e num certo momento teve uma internação em UTI com puro viés financeiro para o hospital; ou, a medicina como busines. Passou a história de minha prima com Alzheimer e o entender que é privilegiada. O que será do pessoal que não tem condição financeira para dar o tratamento adequado? É o que mais tem. De gente miserável que passa fome, dos absurdos que estamos vivendo neste Brasil, e porque não dizer no mundo, na África. Os beagles cobaia resgatados engaiolados numa indústria farmacêutica. Veio a lembrança da expressão de conforto que minha beagle Filó me olhou no meu colo quando a colocamos para dormir. Câncer na boca, coisa horrorosa, mesmo assim só foi autorizada a eutanásia só depois que Filó ficou 36 dias sem comer, sim 36 dias. Todos sabíamos que era irreversível, mesmo assim... Billy, um pequeno poodle preto mágico, de rara inteligência, que teve mais sorte, ou recebeu mais piedade, e foi colocado para dormir bem antes no colo de Tereza.

A pergunta central foi e continua sendo "Depois de tudo que Carlota passou no canil, quatro anos numa gaiola parindo, ela merece que se estenda seus sofrimentos, que sofra mais?" Minha resposta é não, não se deve estender a vida. A vida deveria seguir seu ciclo natural. Se Carlota estivesse na natureza já teria partido, mas não, aqui ela é pet, animal doméstico com tudo que isto implica no individual e no coletivo, incluindo no macroeconômico, na geração de empregos, na indústria do bem, na mesma indústria que faz tanto mal para o meio ambiente, para milhões e milhões de seres vivos, fauna e flora, micro-organismos e outros mais.

Qual é a finalidade da medicina moderna, estender a vida infinitamente ou dar qualidade de vida, conforto?

Animais domésticos são cruciais para estabilizar emocionalmente boa parte da população. O outro lado desta história é que enquanto o setor pet cresce sem parar, um dos negócios mais lucrativos, a proteção de sistemas de meio ambiente primários e secundários é depredado impiedosamente sem que a mesma população que tem pet use todo seu carinho, amor, ou o que quer que seja, para impedir o genocídio ambiental. Quanto se faz de doação perto do que dos gastos/mês com a manutenção de um pet? Bingo!

Carlota voltou para casa e ficou bem por algumas horas. Voltou ao estado anterior. O mais impressionante desta história é que ela olha para a gente pedindo ajuda, pedindo que façamos alguma coisa para ela se sentir melhor, como se em sua memória estivesse vivo os anos de martírio na gaiola. A bem da verdade nada diferente do olhar de minha mãe já em seus últimos dias de vida. Ou de minha avó quando pediu para não ser ressuscitada mais uma vez. Ou de Sérgio que paralisado por um derrame e chorando quando passou por mim numa maca rumo a seus dias finais. Ou de...

Qual é o valor de uma vida? Qual é o preço de uma vida? O que faz com que não se levante a discussão séria, neutra, proponente sobre a morte, ou o eterno dormir?

Ironia do destino Carlota está dormindo depois de ter passado mais ou menos uns dois dias em pé. Respira com certa dificuldade, olha para a gente com expressão agoniada. Todos os veterinários dizem que se ela come e bebe é porque está bem. Não está, definitivamente não está.

Olho para ela sentindo um profundo desconforto. Estou eu errado? Quero encerrar o meu sofrimento ou o dela? Os pensamentos simplesmente não param. Uma coisa é certa; a medicina deu um salto de qualidade imenso nestes últimos anos, muito em conta por ter virado negócio, mas a vida é negócio? Vamos salvar toda a vida do planeta? Se isto acontecer vai ser um caos.

Onde está o equilíbrio?



ABRAz - Associação Brasileira de Alzheimer
ir ao hospital veterinário
estou exausto emocionalmente
não consigo parar de pensar nesta situação (e vínculo com um contexto maior - tratar alguém com Alzheimer, minha própria vida, qualidade de vida...)
(lembro de minha mãe) caiu no sistema de saúde não sai mais
(deixa) moribundo ou (o sistema busca) salvar vida?
Carlota não tem solução. De qualquer forma não vai ter qualidade de vida, vai sofrer
(depois de tudo que Carlota passou - quatro anos numa gaiola - será que ela merece sofrer?)
Alongar a vida é preço religioso. Manter viva a força de trabalho depois da peste negra que dizimou a população europeia. Morte é falta de trabalhadores.
Quanto vale $ um internado (num hospital)? Qual é o percentual no ganho bruto dos hospitais com a manutenção - alongamento - da vida?

Lollia e o hospital que manteve, estendeu a permanência dela e de outros na UTI para cobrir os gastos com a nova aparelhagem? (história real que foi aberta por um médico da equipe e confirmada mais tarde por outros)

Caiu no sistema perdeu direito a sua própria morte (direito de vi ver ou morrer). Ninguém tem. Entrou faz parte do sistema (corporativismo e lucro)

Foram quatro dias muito pesados, muito pesados.

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