"Se pegar minha bicicleta eu mato você" falou a irmã para o caçula. Ameaça inútil de uma menina carinhosa com aquele capeta bem mais novo. "Pega a sua (bicicleta) e vamos dar uma volta na calçada". Rua parada, não passava ninguém ela desceu para o asfalto seguida pelo irmãozinho. Parou, desceu da bicicleta, olhou com cara de fera para ele e perguntou "O que você está fazendo no meio da rua. Não sabe que é proibido? Desce da bicicleta e coloca ela na calçada. Está de castigo!" Sem entender nada ele obedeceu. Rindo ela o chamou docemente "Vem cá", e ele veio. Ela segurava a bicicleta uma mão no guidão outra no selim. "Sobe que te ajudo. (A minha bicicleta) é grande e na garagem você não ia conseguir. Aqui vai, tem espaço". Ele quase deu um grito de alegria silenciado por dedo na boca. "Fica quieto, se souberem os dois vão pro castigo".
O tio se foi. A tia viúva foi cuidada pelos filhos que como primeira providência a fizeram sair da velha e charmosa casa e ir para um apartamento. Sempre foram um casal que se amou, isto ficava claro não em atitudes falsamente adocicados para o público social, mas nos cuidados que principalmente ele tinha com ela. Não foi uma perda pesada, mas situação que cada dia era mais clara; ele iria antes. Rapidamente adaptada a nova vida confortável do apartamento achou estranho que a luz não funcionasse, que o rádio e a televisão não ligassem. Telefonou para um dos filhos e pediu socorro. Prontamente foi até lá. Abriu a caixa de luz, tudo certo. Foi até o térreo conversar com o zelador e descobriu que a energia tinha sido cortada por falta de pagamento. Subiu e foi ter com a mãe. Ela ouviu atenta, como sempre, mas com uma expressão de pasmo. "Conta de luz, que conta de luz? O que é isto, tem que pagar para ter luz?" Assustado com o tom da resposta da mãe o filho entendeu a extensão do amor de seus pais. "Então me faz um cheque que eu pago". Mais perplexa ainda e já furiosa perguntou "O que é um cheque?"
A irmã, mulher de vida social intensa e convívio com homens proeminentes, não pensou duas vezes em cortar os cabelos muito curtos, colocar uma cinta muito apertada nos seios, e vestir um uniforme de campanha militar que comprou a peso de ouro de um soldado magro que alegou terem roubado sua farda. Inteligente, determinada, culta, de boa conversa, bom humor e gargalhada solta, depois de pronta e rir para o espelho foi atrás e conseguiu uma carona até o fronte. Com uns trocados na mão o caminhoneiro seguiu pela noite por caminhos livres de barreiras e quase ao amanhecer chegaram lá, ele, motorista, mais exausto do falatório da soldado do que das horas seguidas dirigindo sem parar. Com ela ninguém perde o sono. Errou o local, era um fronte, mas não o fronte. Ela desceu e agradeceu, ele também de ela finalmente ter descido. Passou pelo vigia num bom dia sem parar e foi ter com o comandante. Não enganou sua com voz falseada e pouco masculina, confessou as intenções, convenceu até quem não devia e para voltarem ao silêncio foi levada ao marido, um deles, que estava descansando da batalha distante. Acordou num susto ao sentir o toque único dos dedos dela nos ombros, um dedilhar de sonata de Debussy que sempre lhe acalmava nos momentos mais tensos. Tentou virar-se irritado da brincadeira de algum soldado dos que conheciam o casal há muito. "Senta" disse ela com sua voz definitiva, solta e sensual. Ele sentou-se sem olhar para trás, toco uma das mãos finas de pele fina e quente e retomou o seu trabalho. Estava exausto, atordoado, havia apagado por uns minutos, talvez horas, já havia escurecido e o barulho longínquo de tiros e bombas silenciara. "Que importa", esfregou os olhos, limpou as lentes dos óculos, ordenou os papeis sobre a mesa, e quando sentiu ela retirando as mãos dos ombros fez um movimento rápido para tê-los mais uns instantes. Quando sentiu o acalmado puxou uma cadeira e sentou-se ao seu lado. Ele pôs se a trabalhar. Amanhecia e entrou o comandante, chamou-lhe pela patente e nome, e os dois se levantaram, viraram se e bateram continência. "Quem é?" perguntou preocupado; sem dar chance ao marido responder ela em sua voz natural, firme, e decisiva respondeu "Soldado Lígia, senhor".
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