Primeiro: o que é liberdade?
Ontem fui até minha casa onde desde dias antes do decretado isolamento
está Cristina, que chegou de Londres para tratamento dentário e o casamento da
sobrinha e encalhou no Covid 19 daqui. Amanha volta para Londres onde mora faz
30 anos. Os três meses que passou isolada em minha casa, longe de marido e
filhos, foi para ela um bom momento de estar consigo própria. Perguntei como
tinha sido a experiência, ela falou pouco de si e muito dos filhos, da família
e marido. "Pensou sobre liberdade?" e ela continuou falando sobre
filhos, família e marido.
Tenho pensado demais sobre liberdade, uma palavra que está mais que
nunca em voga. "Como será a liberdade depois da pandemia?", tema
predileto em rádios e TVs. Comecei por olhar o que foi minha liberdade antes
desta confusão, uma revisão de vida a qual ainda não cheguei a uma conclusão,
exceto que me considero um abençoado. A vida que tive e tenho é de uma
tranquilidade..., o que de certa forma me dói um pouco. Senso de culpa cristão
provavelmente, mas não só. Liberdade é fazer acontecer?
Sentado no meu pequeno jardim conversando com Cristina me dei conta que
não é liberdade, mas liberdades, muitas, em muitos sentidos. Estou solto no
mundo, quase que completamente livre. Cristina tem as famílias e um extenso
grupo de amigas muito próximas com quem está praticamente todos dias. A
pergunta "liberdade" não lhe é tão contundente.
Hoje vou estar com ela para uma pizza de última noite antes da volta
para Londres. Deixarei um recado: "olhe mais para si própria, deixe os
filhos e a família voarem de si". Ela foi e é uma mãe e mulher de raro
valor, tem que começar a olhar para si própria, pelo menos deveria. É o que
resta a quem entrou no “senta!”: cinquenta, sessenta, setenta... Pelo menos é o
que nos leva ao sinônimo de liberdade: maturidade. Não é a mesma coisa, mas
serve bem.
Quem se ver no espelho enxerga seus demônios, os normais, os bonzinhos e
os que assustam. Abençoado é aquele que olha no espelho e se vê pleno. A
liberdade começa aí, a própria liberdade e a que os outros receberão de você em
consequência de seu encontro com sua verdadeira liberdade. Não há liberdade sem
disciplina, e não há disciplina sem autoconhecimento. Não há
autoconhecimento sem interação com a meio ambiente.
Sou um acumulador de memórias. Me dão a liberdade de voar sem escalas para meu passado, dos momentos divinos aos complicados. Tudo que tenho tem vida própria, coisa de Disney, como os móveis e utensílios do palácio da Bela e a Fera. Minha casa está lotada de memorabilias, desde dezenas de vidros de café cheios de pequenas lembranças, até um quarto cheio de brinquedos a vista, guardados ou escondidos, e até dois ursinhos, o meu e de meu irmão, tudo com seu significado e sua vida própria.
A liberdade do passado está relativamente bem resolvida. Algumas
liberdades que tive no passado não. Erros de escolha, falta de orientação, limites
não estabelecidos, besteiras típicas de um tempo passado numa sociedade perdida
em suas próprias transformações ininterruptas. São os meus demônios? São fruto
de uma busca incessante de liberdade dita coletiva, mas muito individual.
Liberdade eunuca.
Creio, repito – creio, que minha liberdade atual também está resolvida.
Penso, logo existo. Porque penso e não paro de pensar e porque não param de
falar sobre como será a liberdade pós pandemia, que ninguém sabe bem, é que me
meti nesta confusão. Trancado dentro de casa talvez não haja coisa melhor para
fazer do pensar em liberdade. Quem sou eu?
Sou livre e terei toda liberdade do mundo quando tudo voltar ao normal. Bom, e daí, o que faço com minha liberdade? Alguém tem uma sugestão?
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