terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A fluidez subliminar

Ontem tive um arranca rabo sobre onde pedestre cruza a rua e onde deveria cruzar, leia-se onde estão as faixas de pedestres segundo meu interlocutor. Situação mais que comum pela cidade, as faixas de pedestres tiram, ou querem tirar, o pedestre de seu caminho natural para levá-lo, ou tentar obrigá-lo, a cruzar na faixa de pedestre. Se o caminho é uma linha reta porque cruzar três faixas de pedestre esperando dois semáforos abrir para chegar no mesmo lugar? O conceito básico usado pelas autoridades e engenheiros de trânsito continua e continuará sendo dar fluidez ao trânsito motorizado enquanto a população, leia-se os instruídos e motoristas, continuar acreditando que na faixa de pedestre o pedestre cruza mais seguro. Faz sentido, cruza mais seguro, mas será que a verdade é tão simples assim? Da forma como está nem sempre é verdade.

Lícia foi professora de etiqueta numa faculdade de turismo. Numa classe de mais de 70 alunos ela perguntou sobre como eles se sentavam à mesa numa festa ou comemoração de família e imediatamente percebeu a cara de "não entendi" da maioria. Acabou descobrindo que por uma série de razões, inclusive a inexistência de uma mesa propriamente dita, simplesmente nunca sentavam juntos. Não faziam a mais remota ideia sobre o que Lícia estava falando. A etiqueta social tão necessária para um bom trabalho de turismo tinha que ser ensinada a partir da realidade deles, não de uma senhora de elite. 
Com trânsito é igual. Querer que tenham comportamento de europeu sem compreender o sentido daquela coisa costuma não dar certo.

A maioria dos pedestres que circulam pela cidade vem da periferia, onde em muitos lugares não existe sequer calçada. Fora do centro expandido de São Paulo as vias principais, onde passa o trânsito mais intenso e o transporte coletivo, ou tem o mesmo traçado de caminhos de tropeiros, leia-se estradas sinuosas de fazendas seculares que foram loteadas, ou estão em várzeas de córregos. Nos dois casos a prioridade total é para o transporte motorizado, mesmo quando há faixas e até semáforos para pedestres. A fiscalização é voltada para a fluidez do trânsito, ponto. Pior ainda: a responsabilidade da calçada é do lote lindeiro, uma estupidez completa que ninguém muda e que faz do caminhar uma corrida de obstáculos. Enfim, tudo deseduca o pedestre da periferia. E aí vai querer que este cidadão esquecido, desprezado, cruze a faixa de pedestre do bairro chique e todo sinalizado onde as autoridades querem e não no caminho mais curto e racional? Piada!

O número de acidentes envolvendo motociclistas nas cidades do nordeste é assustador. É comum vê-los pilotando sem capacete e autoridades e imprensa caindo de pau no descumprimento da lei. Hospitais estão cheios muito por causa destes motociclistas. "Tem que usar capacete! As autoridades têm que fazer valer a lei!" Desculpem, mas qual é a piada? Autoridade? É respeitado quem respeita, e respeita quem ouve, entende o outro, aceita suas peculiaridades, o que não é o caso. Com esta soberba das autoridades não vai dar certo, estão enxugando gelo. 
Correto seria ter dados confiáveis sobre as causas dos acidentes, então selecionar os principais erros cometidos pelos motociclistas e priorizar. Comunicar na forma e no linguajar local vai ser mais eficiente que uma autoridade impondo regras e leis que são entendidas pelos Europeus.

A educação brasileira é um desastre porque é completamente desvinculada da realidade de seus alunos. O trânsito brasileiro repete os mesmos erros.


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