- Como você quer morrer?
- Atropelado por um caminhão de lixo
- Caminhão de lixo? Para que?
- Assim até na hora da minha morte vou fazer meus amigos rirem. Imagine só no velório chega um com cara triste e pergunta "Do que ele morreu?" E o povo responde "De caminhão de lixo!". A risada vai ser geral.
Duas semanas depois da conversa um caminhão de lixo dobra a esquina sem dar seta e ele quase para debaixo das rodas. "Olha o que fala" pensou suando frio.
Lixeiro pode passar a pá e varrer os restos da rua? Uai, economizaria no velório e enterro.
Vou extrair um pré molar. É o segundo dente que perco por causa do bruxismo. O primeiro parti em quatro, este parti em dois, estou progredindo. E vem à cabeça todo tipo de pensamento, quantos piores melhor. Vai doer, vai sangrar, não vou poder comer por alguns dias, quanto tempo vai durar... E a morte de uma amiga lá pelos anos 70 vem à tona. Lembro da beleza radiante daquela jovem baixinha, corpo perfeito, rosto radiante de conversas inteligentes, mas sou incapaz de lembrar seu nome. Foi extrair um dos sisos, operação mais que trivial, e ficou na cadeira. Ela tinha uma má formação e o dentista não pode fazer nada a não ser tentar desesperadamente deter a hemorragia que jorrava sangue pelo consultório em golfadas até que a vida dela esvaísse por completo. Do telefone de disco a enfermeira em surto histérico aos uivos ainda tentou chamar ajuda, mas não chegaram a tempo. Nem o laudo do IML que revelou a má formação limpou o trauma do dentista.
Final da tarde sento eu na cadeira para extrair o pré molar. De fato a única preocupação é se tenho sorte e o dente partido sai inteiro. O que partiu em quatro saiu aos pedaços e foi um problema para a dentista. Fui proibido por todos de ir para o dentista pedalando, não pela ida, mas pela volta. Saco! vou ter que pegar táxis.
Não me preocupa o dentista. Hoje todos usam óculos de proteção. Em 1970 e poucos o dentista não só deve ter ficado com a cara toda ensanguentada, mas também cego por uns instantes.
"Olha a língua!" Melhor, olha os pensamentos negativos. Não se guie por eles; aprenda com eles.
Estranho dizer, mas agradeço ter sentido a morte do ciclista em minhas mãos na cabeceira da Ponte Cidade Jardim. Era um meio de tarde, vi a confusão de longe e logo o ciclista estendido no asfalto junto a sua bicicleta retorcida. Um pouco a frente um carro parado com seu motorista cabisbaixo sendo consolado por outro motorista. "Acabou de acontecer" me responderam enquanto parava a bicicleta e sentava no asfalto para ver como o ciclista estava. Seu pulso parou em minhas mãos e lá fiquei para acompanhá-lo na sua passagem. Era uma tarde agradável. Olhei em volta e aprendi ali mais um pouco do que é a vida.
Hoje de noite vou colocar meu pré molar debaixo do travesseiro para ver se nunca mais quebro outro dente.
Dentro de uns dias volto a pedalar, correr, e comer.
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