sábado, 14 de novembro de 2020

Santa cabra

 "Todas cidades não têm suas ovelhas de Deus. Pois então, a nossa tem a cabra de Deus". Não era uma cabra, mas um bode, coisa estranha para quem leva muita Fé em Deus e não no diabo. 

Desde muito cedo a menina puxava para igreja a cabra, cá para nós um bode, algumas vezes meio que empacada. Entravam, menina sentava-se na primeira fila e a cabra se acomodava ao lado da imagem de São Francisco. "Santa cabra, nunca emporcalhou a igreja". Menina e cabra cresceram juntas, a cada dia mais religiosa, a já adolescente. Nas procissões ficaram conhecidas pelo povo e não tardou pela região. "Santas, sempre vêm com São Francisco ao lombo da cabra". 
Uma tose mal curada fez com que a jovem trabalhasse muito para comprar um pequeno aparelho de som para seguir pelas ruas rumo a missa cantando suas ladainhas. Tocava baixinho, coisa de quem reza para si e os seus. Passaram pelas ruas rumo a missa, a procissão local, e as que duas vezes ao ano se fazia ao Santuário. 
Numa primavera chuvosa o bode, diga-se cabra, adoeceu e subiu aos céus envolta de um pranto silencioso da jovem mulher. Foi levada ao cemitério em carroça puxada por um burro velho que não parou de zurrar. Dobraram as pernas da cabra, diga-se bode, e prenderam no centro da carroça como ovelha de presépio toda ornada por flores. Terminados os preparativos que a própria jovem fez com esmero, deu um último olhar para sua companheira de fé, virou as costas, passou a mão acariciando todo corpo do burro até pegar o cabresto, dar um último suspiro, e acompanhada de pais, irmãos, familiares e amigos de fé iniciar a última caminhada. Passou pelo povo consternado pelo bode que toda sua vida fizeram de cabra e em nome da pureza santa nunca pode pular a cerca como pela "santa" jovem que sempre foi cordial e gentil com todos. 
Nas missas não conseguia levantar a cabeça e os olhos, nem se levantar ou ajoelhar-se como pede os ritos da fé; talvez sequer ouvisse o padre. Luto que nunca terminava e preocupava a todos. Que não viessem lhe falar; nada adiantava. Aos afagos em sua cabeça levantava os olhos fundos e nenhuma palavra. 
"Vão em paz e que Deus os acompanhe", e como sempre fazia esperou que todos saíssem, aquele dia um pouco mais. Levantou-se, voltou-se para a saída e deu com a bicicleta do padeiro parada aos pés de São Francisco. A muito custo, e uma bicicleta nova, o povo e o próprio delegado convenceram o padeiro de não dar queixa do roubo a bicicleta. Os pães ficaram no banco da igreja intocados e com o véu do luto. Conversaram com a jovem e envelhecida mulher que todos dias lustrava a bicicleta guardada no cocho da santa cabra, leia-se bode. 
"Mas você não sabe sequer pedalar! Fazer o que com esta bicicleta?" disse a mãe.  
"Aprendo!". 
O pai furioso com aquela loucura que já muito durava soltou gritos em tom ameaçador "Bicicleta não é coisa para mulher. Lugar de mulher é na cozinha. Deus não há de querer você nesta bicicleta. Vá pra seu quarto, amanhã dou fim nesta bicicleta".
Agarrada à bicicleta fez silêncio, acalmou a respiração, secou as lágrimas, se recompôs colocando delicadamente as duas mãos no guidão. Olhou com carinho nos olhos da mãe e da irmã mais jovem ao lado e só então respondeu ao pai.
"Meu bode era santo. Nunca cagou na igreja ou aos pés de São Francisco. Você sempre chamou meu bode de cabra, pois então. Peço desculpas ao padeiro, já deveria, mas meu santo bode me enviou esta bicicleta. Ele entendeu minha solidão, você não".    
Saiu de casa, encontrou outra morada. Voltou aos ritos da missa. E teve as bençãos do padre quando foi vista pedalando com roupas do candomblé e pequeno bode empalhado de chifres vistosos na garupa. Sua mãe nunca mais fez a buchada que o pai tanto gosta; e nunca se tocou no assunto.

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