Mais uma vez parou o maldito barulho infernal vindo do quarto. Alívio! A música vinda da rádio tocava distante e suave e o até deslizar do pano de pó sobre a estante foi percebido.
- O aspirador de pó quebrou.
Ótimo, pensou ele, finalmente silêncio.
- Ei, você ouviu? O aspirador de pó quebrou. Vem consertar.
Ele olhou o pano de pó com uma linha marcada de sujeira, quase toda estante brilhando, dobrou o pano e deixou-o no chão, apoiou a mão no chão e levantou-se sentindo as pernas adormecidas. Em pé esperou um pouco para sentir-se firme e foi ver o que acontecia.
- Você não puxou até arrancar a tomada da parede, perguntou com ironia antes de entrar no quarto.
- O aspirador de pó quebrou. A tomada está na parede; não tirei ele do lugar. Quebrou. Conserta que está quase na hora do almoço e estou ficando com fome. Quero acabar aqui antes de comer.
Ele ligou e nada. Desligou e ligou de novo. Nada. Mexeu no fio e o aspirador ligou e desligou.
- Quebrou o fio. É rápido. E saiu para procurar uma chave de fenda e alicate. Abriu o armário da lavanderia dobrou as pernas, sentiu um pouco os joelhos, e viu atrás da sua caixa de ferramentas a caixa de ferramentas que foi de seu irmão. Parou por um segundo olhando curioso, não se lembrava mais dela. Tirou sua caixa de ferramentas e colocou-a no chão, estendeu o braço até o fundo e pegou a outra. Estava leve, sempre foi leve, pensou enquanto ela surgia na luz. Esticou a mão e pegou um paninho e tirou o pó por cima, pelos lados e até no fundo. Sorriu com as lembranças que ela trazia. Sempre foi leve, só o essencial, ele não sabia consertar nada, só consertava quando ninguém consertava, pensou consigo lembrando com carinho do irmão. Colocou sobre a bancada e abriu. E no meio de meia dúzia de ferramentas básicas, uns pregos, parafusos, e outras coisinhas mais deu com a chave de fenda amarela.
- Achei! Achei! Ela está aqui! Achei! gritou em plenos pulmões rindo. Achei!
Ela veio correndo. Chegou na porta com olhar assustada e perguntou o que estava acontecendo e se ele estava bem.
- Estou ótimo. Incrível, achei, ela está aqui.
- O que? O que foi? Achou o que? interrompeu ela.
- Esta chave de fenda amarela. Eu sempre acreditei que a tinha perdido, estou falando de 1972, 74. Sumiu. Nunca imaginei que ele tivesse pegado e não devolvido.
- Por que não?
- Ué, você conhecia ele muito bem. Não tinha jeito para nada, só sabia ler, estudar, trabalhar. Fez um silêncio pensativo e continuou.
- O que terá feito com esta chave de fenda? A bem da verdade era do pai dele, mas sempre ficou na minha caixa de ferramentas. Quando desapareceu foi um pesadelo para mim, sempre me culpei pelo descuido. Só perdi duas ferramentas em toda minha vida, esta chave de fenda e uma chave 10 mm.
- Vai ver que está aí dentro. Olha bem, disse ela referindo-se a chave 10.
- Não está. Esta tenho certeza que ficou na garagem do prédio quando fui consertar a bicicleta. Tinha alguém comigo e ficou com ele.
- Tá bom. Agora pega a chave de fenda e vem consertar o aspirador que quero terminar para almoçar.
Ela virou as costas e se foi e ele permaneceu olhando com carinho e saudades a chave de fenda carinhosamente deitada sobre a mão espalmada. Distante ela parou, olhou para trás, percebeu o momento, voltou até ele, passou carinhosamente a mão nas costas dele e disse com voz aconchegante - Pega o alicate e vem.
Teve que pegar uma chave de fenda mais fina na sua própria caixa, colocou a de seu irmão no bolso e foi desmontar a tomada do aspirador. Sentou no chão, tirou a tomada da parede, e enquanto desmontava a mulher seguia passando paninho nos móveis, objetos e o que mais encontrasse pela frente. Desatarraxou o primeiro parafuso, abriu a tomada e lá estava o fio quebrado.
- Num minutinho fica pronto, disse sem ouvir resposta. Soltou os dois fios elétricos da tomada, cortou as pontas, e se levantou para pegar um estilete. Voltou em pouco tempo e olhou para ela que não parava de limpar. Sentou-se e descascou os fios.
- Bom achar a chave de fenda, mas porque tanta festa?
- Ferramenta é sagrada. Sei o que perdi em toda a vida; esta chave de fenda de cabo amarelo que nunca esqueci e a chave 10 mm Craftsman, um crime. O canivete de ferramentas da bicicleta que emprestei para alguém naquele passeio e não voltou foi numa boa porque estávamos nos divertindo e realmente acredito que não foi sacanagem. Era dos bons, paciência. Que façam bom uso. E uma bomba Zefal que sei quem pediu emprestado e sumiu. Me senti um trouxa. Mas trabalhando sozinho, com minhas ferramentas..., fora estas duas não perdi nada.
- Quatro a vida toda, não é nada. Esquece.
- Não é tão fácil assim. Quem sabe trabalhar, quem gosta de consertar, ajeitar, fazer, sabe que ferramenta é sagrada. Tem de cuidar, manter, usar direito. Quando faz besteira dói. Agora perder...
- Ok; achou. Senta lá na sala que já termino aqui e almoçamos.
- Você quer comer o que?
Pouco depois ela entra na sala. A mesa estava cuidadosamente arrumada. Ele, sentado numa cadeira e olhando sorridente a chave de fenda pergunta - Vai uma cervejinha gelada para comemorar? Coloquei no freezer para gelar... com os copos.
E brindaram.
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