Estou perdido no tempo dos outros. Precisam de ajuda, eu ajudo, ou tento, e ainda sinto dolorido que deveria fazer muito mais, mas não sei como, e meu tempo próprio se esvai. Preciso de tempo para estar comigo mesmo e quando tenho estou tão pilhado que não tenho, minha cabeça voa com os mosquitos que enfestam minha sala em busca de um calcanhar para pousar sem saber em qual, de preferência não os meus. Minha fuga tem sido abrir a porta, que traz mais mosquitos, cruzar o corredor onde bato na folhagem que agita os mosquitos, abrir o portão, vestir a máscara que sufoca, pedalar ou correr onde não tenha e não veja ninguém. Ainda tenho esta alternativa, mas volto para casa e os mosquitos estarão sempre lá imunes a inseticidas. Alongo empurrando a parede, meu suor pingando no chão, mente mais tranquila, mas com os mosquitos comendo meus calcanhares. “Por que não picam os outros?”
Penso em amigas e amigos que estão trancados em casa com seus pais e filhos desde o primeiro dia da pandemia. “Como aguentam?” Milhões passaram a Segunda Guerra Mundial enfurnados em cubículos ou casas destroçadas por bombas que transpassavam ventos gelados do inverno e cobriam do branco de neve o quarto de dormir. “Eles passaram, aguenta quieto”. Não sei o que ou quem eu teria sido no meio de uma situação onde simplesmente não pudesse colocar o pé fora de casa, olhar o céu, sentir o vento, ver a paisagem, suar... Ainda posso sair e correr, andar, pedalar, o que importa se estou cuidando de outros, descuidando de mim mesmo; não é um drama, é a vida, agora quem precisa são eles. Os mosquitos me comem, eu os vejo voando errático, pousando na minha perna, mas não sou tão eficiente para matá-los numa palmada.
"Você não pode mudar o mundo". Já ouvi isto várias vezes, a pouco ouvi de Lícia. Ela está certa. Ou estará errada? Não vou, eu sei, hoje tenho certeza; minhas ilusões ficaram para trás; mas não posso deixar os mais próximos para trás assim assim sem mais. Ou posso ajudar a mudar o mundo? “Matar mosquitos, posso?”, eles me infernizam meu silêncio.
De quem é o tempo? Insisto em olhar os relógios sem enxergar os ponteiros e sem conseguir organizar meu próprio tempo. Tic-tac. Improdutivo, mas sigo. Faço um pouco por mim agora, outro tanto depois, coloco aquilo no lugar, produtivo desconexo que quando deito não terminei, mas fiz. Encostado nos travesseiros escrevo bilhetinhos para lembrar o que fazer, organizar, mas se perdem no chão junto aos livros que aos poucos leio.
Vício, doença ou responsabilidade? "Primeiro o dever" foi dito e repetido para mim e hoje não sei se é carapuça, fogo que me queima por dentro, ladainha religiosa, se é funcional ou disfuncional? Qual é a responsabilidade, eu ou os outros? "Se não cuidar de si não terá condição de cuidar dos outros" tantas vezes já ouvi. Ok! Entendi.
Tenho uma prima com Alzhaimer que passei cuidar. Passo a passo vamos em frente. Longe de estar no estágio avançado de meu avô que afundou nas ondas de um mar impiedoso de altas cristas espumadas que engolem a proa com um vento gelado cortante, afundar, escorregar, subir, balançar que não para. Enjoa, desnorteia, arrebenta com os sentidos de vida, mas navegar é preciso. Eu talvez esteja sadio, ela não, vê-se pelo olhar vazio. Sua memória imediata está muito prejudicada, mas segue sendo uma mulher agradável. O passado distante está vivo, é trazido à tona como se vivesse hoje. Os detalhes são impressionantes, vivos, simplesmente vivos.
No meio do mar revolto, já apático com esta vida, jogado a uma cadeira de rodas, sentado longe da mesa de jantar onde estávamos, desandou a chorar e fui lá ver. Os outros seguiram jantando. "Meu neto, a única coisa que quero fazer é alguma coisa humanamente normal" disse com absoluta consciência olhando nos meus olhos e um segundo depois afundou nas profundezas de seu mar revolto e nunca mais voltou. Eu fiquei ali olhando aquele rosto que não existia, não vivia mais, mas de olhos vazios respirava firme e forte. Foi seu último retorno a superfície, seu último folego, sua última tentativa de viver. Acabou. Tive um silêncio interno brutal, rápido e interminável, lapso de tempo onde nos perdemos, acariciei a mão daquele morto, meu avô, que respirava apático na cadeira de rodas e voltei para a mesa para terminar o animado jantar de conversas, comentários, fofocas, pequenas cutucadas, alguns sorrisos, indiferença, vida que segue. E voltei para casa, dormi, acordei, trabalhei... a vida segue. A vida segue. Devia ser uma noite fira porque não me lembro dos mosquitos.
Dormi, acordei, fui ao banheiro, tomei café da manha... tic-tac.
Primeiro você, primeiro você.....se não cuidar de si não pode cuidar dos outros. Beijo
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