terça-feira, 28 de abril de 2020

Modernidade liquida, comorbidade certa


Velho, cartesiano, imerso e amante de leituras técnicas e científicas, consciente do alto risco de contaminação entrou e circulou pelo supermercado sem máscara ou outros cuidados. Poderia estar ali, naquele mesmo supermercado onde sempre pegou delícias e comodidades para sua vida, a saída para levar para casa a solução definitiva para seu pulmão exausto da longa maratona de três maços de cigarros diários. Agora é esperar. 

Ao lado do computador mais uma loteria para ser conferida. O papel branco com os números da sorte e códigos traz um jogo de imagens dos desejos do que poderia ser e do que seria bom, mas a leitura do jornal e as notícias na TV dizem que nestes tempos de guerra não mais será, não agora. Será? "O que se faz quando o que será tem grande possibilidade que não pode mais ser?" se pergunta sussurrando e sua companheira de tantos anos médios ouve lá na sala e pergunta em meio ao som da novela "Falou o que?". Não responde, olha para a loteria, arrasta o mouse para uma nova guia e pára em pensamentos, informações, preocupações, na vida, sua, de seus filhos e netos. O melhor dos presentes sonhados por tantos anos num único papel branco cai no vazio, passa como a sombra de nuvens que trazem a esperança para a lavoura, só esperança. A loteria da vida é a única certeza. Na TV que a mulher vê entram os anúncios e a chamada das notícias do jornal noturno que conta doentes e mortos. Não quer ouvir, mas ouve. Tira a flecha da nova guia e volta para o jogo de cartas. Sonhos são sonhos. Vão os dedos ficam os anéis. Qual é o valor dos sonhos? Que sonhos tem valor? Quem somos em nossos sonhos? Ele olha os números, respira fundo e seus medos clicam para fechar o computador. "Amanha eu vejo".  

"O sujeito tem algum valor por um tempo de vida depois é descartado" diz o homem de 65 anos sentado numa velha cadeira surrada de ferro e tiras de plástico colocada na calçada à sombra que evidencia a pintura gasta e descascando da parede da casa. Dá uma pausa na conversa com seu ex patrão que veste calça moletom desbotada e camisa social surrada parcialmente abotoada naquele calor seco e escaldante de fim de tarde. Parado no meio da rua, olhar perdido para um lado e para o outro, mãos nos bolsos, sem saber se fica para jogar conversa fora com aquele velho amigo que fala mole e olhos quase fechando na cadeira ou segue para o boteco. Os dias de suor no trabalho passaram sem deixar explicação aos dois e a todos de sua geração porque não servem mais. "Bons tempos aqueles".

A fortuna foi torrada no vício sego das comodidades as quais se agarrou desde sua infância sem levar em consideração o futuro. O olhar para as contas que não param de vencer preocupa, mas eterna a falsa esperança que erodiu a verdade ainda bate forte, vale mais que a realidade, como que se levando em frente tudo para um precipício consciente, inevitável; mesmo que inaceitável, inclusive para o horizonte dos filhos ainda estudantes. "Vai se ajeitar" repete em voz quase inaudível, sabendo que não irá. Os bons tempos não voltam mais. "Por favor um maço de Hollywood" e pega a carteira de couro magra e puida, abre, tira os trocados. "Alguma coisa mais?"; sinaliza não com a cabeça, se despede com o mesmo sorriso de sempre e toma o caminho de volta para casa. A velha empregada que nunca para de trabalhar logo vai servir o almoço. Esta é a hora do dia para sentar na poltrona puída e com cigarro aceso na mão amarela esperar. A janela está fechada, a fumaça opaca o céu azul, o ar fica pesado, o silêncio toma conta do ambiente, daqui a pouco chegam todos, sentam à mesa e almoçam olhando os pratos. "Me passa a água." Terminam, se levantam, vão cada um para seu canto, ele volta para a poltrona, acende outro cigarro e espera a empregada e o café. Foi assim com seu avô, com seu pai, com ele. Não será com os filhos, não pode, mas quem pode afirmar?

Na aula o professor explica "Vidro é um líquido de alta viscosidade". O distraído aluno levanta a cabeça, entende alta densidade, e porta afora passa a conversar com amigos e meninas sobre a "altíssima densidade do vidro". Não deixa de ser verdade, pelo menos num sentido figurado. Faz todo sentido suas notas de português. Quem conta um conto aumenta um ponto.

Modernidade líquida. Modernidade líquida?
Com certeza a modernidade liquida, sem acento nem assento.
Fato é que a comodidade líquida não escorreu pelo ralo. Tão pouco a verdade.

"É bom tudo isto. Assim acabam todas as classes sociais" dispara a adolescente que se aprofunda nos estudos para o vestibular. Doce ilusão! Vai nessa menina! O mundo gira e a Lusitânia roda.

Roda, roda, roda... um minuto para nossos comerciais
alô alô Terezinha, você está na Buzina do Chacrinha
Vocês querem bacalhau? Vocês querem banana?
Roda... roda...

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