O primeiro a notar é a altura do som com músicas caipiras que ecoa por toda o bairro. Se ecoa por todo o bairro algo deve estar errado. A festa é dentro do colégio particular e dentro do colégio deveria permanecer, mas não, como um aviso apocalíptico todo mundo tem que saber que dentro do colégio tem uma festa super animada, bacana mesmo, com crianças felizes dançando quadrilha caipira de São João.
Cruzou a portaria do colégio aí é que não se escuta mais o que a pessoa que está ao lado fala, a não ser que esta grite e que você responda aos urros. A questão é que a quadra onde a quadrilha está sendo dançada pelos guris fica longe, mas como a festa é animadíssima as caixas de som para ensurdecer a todos que por lá estão fica em cada e todos cantos do colégio.
Tomo um encontrão, olho para trás e vejo um pai carregando uma criança pela mão se distanciando como se nada houvesse acontecido. Mesmo que tivesse pedido desculpas pela ombrada que me deu, o que não aconteceu, eu não teria ouvido no meio daquela ensurdecedora alegria.
Indo para a quadra tenho que parar e esperar que pessoas se comprimentem e conversem alegremente, aos berros, no meio do único caminho disponível sem me dar passagem e sem se importar se estou lá ou existo. Delicadamente coloco a mão no ombro de uma mãe e a empurro delicadamente para o lado, ela dá um pequeno passo sem interromper sua conversa, e sem perceber que fechou a passagem, a única estreita passagem, para mim e a multidão que vem atrás. Danem-se todos, ela precisa conversar naquele exato local, naquela exata hora.
A quadra onde os disciplinados alunos dançam quadrilha, todos ao som da exata mesma música que se repete em moto perpétuo, fica a direita. A esquerda ficam os comes e bebes, e as brincadeiras, em barraquinhas encostadas nas paredes laterais das quadras abertas. No meio delas, embaixo de um sol escaldante, ficam as mesinhas para quem quiser sentar. Poucos se atrevem a ficar debaixo daquele racha-coco, muitas mesas estão sendo usadas, mas não resta espaço nas sombras e pais, tios, avós se acotovelam longe do sol. Óbvio que há potentes caixas de som na orelha de todos impondo a alegria de estar lá para ver seus queridos dançarem a quadrilha.
Quem gosta de festa junina sabe como é: olha a cobra, olha a chuva, peguem seus companheiros, lá vem o padre, lá vem os noivos. Nada disto, só a boa sanfona (e o sanfoneiro era bom mesmo) repetindo as notas do "São João, São João, acende a fogueira de meu coração...". Me questiono se será politicamente incorreto a cobra ou os noivos? Talvez o padre. Ou a tradição secular não se encaixe mais nos ditames atuais do socialmente aplicável. Então não para de tocar a música sem letra, sempre a mesma.
Crianças brincam com as prendas ganhas nos brinquedos. Bola na boca do palhaço. Argolas nos pinos. Argolas nos pinos? Uai? Não é politicamente incorreto? As novas prendas são dinossauros, transformers, rifles star wars, monstros... Opa, também tem bolas imensas que são jogadas para cima e vez em quando caem sobre os copos de um pai que sabe ser proibido reprimir a feliz criança.
Poucas crianças estão vestidas de caipira. Meu neto se recusou a vestir qualquer coisa que lembrasse que aquilo era uma brincadeira, ou estamos em épocas juninas. Olho para outras crianças e imagino que os pais passaram pela mesma situação. Pelo menos as crianças ainda sabem o que é brincar longe do celular.
Sento na sombra em frente a uma peteca que já foi chutada, pisada e sabe-se lá mais o que, e tem suas penas sofridas, retorcidas, perdeu sua almofada, está só no plástico que junta as quatro penas. Eu a pego do chão, do seu fim inglório, a jogo para o ar como uma peteca. Um grupo de crianças me olha com cara de espanto, não sei se porque peguei a peteca surrada do chão ou porque não fazem ideia para que serve aquela coisa.
Só não tem lixo por todo chão do colégio porque as faxineiras não param de varrer. Não sei como a peteca anda não tinha ido parar no lixo.
Conforme o calor vai aumentando as mesinhas vão se esvaziando e as sombras tumultuando. O som segue infernal. Chamam a turma do meu neto. A quadra onde corre a quadrilha é coberta. Ufa!
Entro, encosto na parede onde tem um banco de madeira daqueles longos. Ao lado tem dois pais guardando as prendas de um dos que estuda com meu neto. Estão sobre o banco e junto com a bolsa da mãe. O garoto vem e aos urros, mais estremados que o necessário pelo som ensurdecedor, ordena que a mãe não saia de lá ou vão roubar seus novos brinquedos. "E se bobear roubam mesmo" pensei.
A quadrilha começa, meninos de um lado, meninas de outro, todos de mãos dadas, mas generos separados no início, meio e fim da dança brincadeira. Será a nova quadrilha politicamente correta? Não entendi nada. Pelo menos a molecada está visivelmente feliz.
Quando o guri dono das prendas que estão sobre o banco relaxa e entra na brincadeira, e deixa de olhar para ver se mãe está lá vigiando como cachorro bravo, eu falo com ela e digo para ir ver o filho mais de perto que ficarei ali olhando tudo Ela agradece e vai. Pouco depois passa um garoto maior e olha com muito interesse as prendas, mas me vê, perde subitamente o interesse e segue em frente.
Terminada a quadrilha do neto ficamos um pouco no pátio aberto. Achamos uma sombra. Guilherme está mais incomodado que todos nós com o maldito som ensurdecedor. Levanta-se, vai até a caixa de som, olha por trás dela e abaixa o volume. Como não pensei nisso antes? Vejo outras caras felizes com a contravenção junina de Guilherme.
"Vamos embora" diz alguém. Na rua converso com um dos dois seguranças do colégio que é do Piauí. Falo sobre o volume do som e conto que já morei em Recife e Olinda. Ele sorrindo diz que festa junina por lá é outra coisa. E com outra alegria, penso eu.
No dia seguinte vou a outra festa de criança, desta vez num condomínio murado de edifícios altos, cheio de seguranças. No meio da festa acabam as cervejas e o pai pede que o ajude a trazer algumas do pequeno mercado que foi implantado lá, dentro do condomínio. Descemos, vamos para o pátio, e ao entrar no mercadinho para comprar as cervejas ele conta: "Acredite se quiser, aqui (neste condomínio fechado de classe média alta) eles (o mercadinho) têm tido 10% (do faturamento) de roubo". Não só acredito,, tenho certeza.
A classe média vai ao paraíso.
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