Um ponto de ônibus quase grudado ao lado de uma banca de jornal, uma calçada larga o suficiente para ter carros estacionados sobre a calçada sem atrapalhar os pedestres e ainda permitir mesas ao ar livre de dois restaurantes. Próximo ao meio-dia, pouca gente ainda caminhando para almoçar, dia calmo de sol frio, poucos automóveis circulando na rua, vez em quando passa um ônibus sem que percebam que parou no ponto. Nas mesas ao ar livre, exatamente na frente dos carros estacionados, já estão sentados os primeiros clientes, sete ao todo, distribuídos em três mesas de conversa em voz baixa.
Mais um ônibus se aproxima e para, abre a porta no ponto colado à banca de jornal, e em seguida se ouve o som típico abafado de um para-choque de plástico deformando. Todos olham no sentido do barulho. A SUV estacionada na calçada, em frente às mesas, deu ré e bateu na lateral do ônibus exatamente na altura da roda traseira. A mulher ao volante olha para trás, torce o ombro sobre o banco para ver melhor, volta a cabeça para frente e fica parada por um breve instante, engata a marcha e movimenta um pouco mais um metro e meio desencostando seu carro da lateral do ônibus. Todos sentados param de comer para ficar olhando, alguns dando risada e comentando o absurdo de como ela não conseguiu ver um ônibus bloqueando a sua passagem.
Os poucos passageiros na traseira do ônibus juntam se à janela. O motorista do ônibus desce e passa entre a banca de jornais e ônibus para ver o estrago. Um dos que almoçam levanta-se e vai até a traseira da SUV que parece intacta, assim como a lateral do ônibus. Volta para sua mesa, comenta com os outros que almoçam. Segue seu almoço e vê quando a mulher desce do carro e vai ter com o motorista do ônibus. Ela é grande, alta; ele bem menor que ela, gorducho e bem forte. A princípio a conversa corre bem. Ouve se um "Como o senhor para aí?" recebido pelos sentados com olhares cruzados de "como assim?". Desaparecem os dois atrás da banca de jornal.
A porta traseira do ônibus é aberta, desce o cobrador, vai para a rua, espera o próximo ônibus da mesma linha, faz sinal, o ônibus para, abre a porta, tem uma breve conversa com o motorista que chegou, embarca todos passageiros do ônibus acidentado que se vão.
Reaparece a mulher de trás da banca de jornais, vai para o carro já chorando e transtornada, falando alto que está atrasada e que tem que ir embora, que não aconteceu nada, não há necessidade de ficar lá. O motorista também surge de trás da banca e começa a fotografar os danos, ela percebe, desce enérgica do carro e marcha até o motorista transtornada. Em voz alta, próxima ao berro, repete que tem de ir embora, que ele tire o ônibus de lá, que não aconteceu nada, que não vai pagar nada, que a responsabilidade é dele, motorista, que parou atrás dela. O motorista mantem-se calmo e segue com o celular na mão agora tentando ligar para alguém. O pessoal que almoça entre uma e outra garfada acompanha e faz comentários debochados sobre a postura da motorista do SUV.
O motorista do ônibus desaparece seguido pela motorista transtornada e os da mesa ouvem gritos ameaçadores dela, que logo volta para o carro aos prantos e faz uma ligação que começa de porta aberta "Vou atrasar. Bati. Um ônibus parou na minha frente..." e a ligação termina de porta fechada. Pelo para-brisa é possível para os que almoçam ver o quanto ela está transtornada.
Abre a porta e volta para o motorista do ônibus e quase peitando ele grita ameaças. Um dos que almoçam se levanta, vai até os dois e pede que ela se acalme, que trate a situação com a devida civilidade. Ela para por um instante. Voltando para a mesa, quando está ao lado do carro é cercado por ela e interpelado; "quem é e que direito tem de meter-se no que não foi chamado". A resposta veio com calma: "Sou um cidadão. A senhora não tem o direito de falar com ele, apontando para o motorista, desta forma". Com uma expressão deformada pelo ódio ela ordena que ele se afaste. Os das mesas enfiam seus narizes nos pratos e comem.
Não demora muito ela volta a subir o tom e as ameaças ao motorista. Dentro do restaurante é chamada a PM quase ao mesmo tempo que o ônibus se move um pouco para frente, a motorista entra no carro transtornada, dá a ré, e vai embora. Um dos que almoçam se levanta e vai até o motorista saber se ele está bem. Ele agradece.
Brasil, Brasil, "Sabe com quem está falando?"
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