quinta-feira, 28 de abril de 2022

Pensamentos perdidos sobre turismo e cidades no Brasil - parte 1

Esta foto foi tirada na Estação Central de Trem de Milão, que é monumental, impressionante, só vendo pessoalmente para entender e acreditar. A foto foi tirada aproximadamente às 14:00 de um dia de semana na área de embarque. No meio da área de trânsito o povo fica esperando seus trens parado olhando o placar de partidas e chegadas sob e próximo aos arcos que dão acesso do hall central e a área de embarque. Quem chega tem dificuldade para sair até porque ninguém se mexe mesmo com um delicado por favor dito. Dane-se quem precisa passar.
Não me lembro deste tipo de confusão nas estações de trem ou aeroportos de Paris, Amsterdam, Londres, NY e outras. Berlim me impressionou muito com o grau de organização social que este tipo de situação demanda. 
A bagunça é causada pelos turistas? Em parte. A organização espacial não é boa? A Estação Central de Milão é descomunal, espaço não falta. A sinalização é mal posicionada? Igual a qualquer estação de trem. A bagunça é resultado de uma cascata de situações que extrapolam a área de espera de uma estação de trem ou terminal.

Estou escrevendo enquanto tomo café da manhã. Atrás de mim estão sentadas mãe e filha. As duas acabam de se levantar e passar por mim. O cheiro é inacreditável, forte, azedo. Deus, ó Deus, em teu amor supremo dai um banho nestas tuas filhas e fazei, em nome de tua glória, que lavem estas roupas! Mal cheiro dispersa aglomeração? Estas duas com certeza. Elas são simpáticas, comunicativas. Ninguém é perfeito.

O  dono de uma loja de brinquedos em Milão conversou longamente sobre as diferenças entre sua cidade e Roma. Segundo ele, os milaneses tem senso coletivo, fizeram um grande esforço para organizar a cidade, cuidam, mantém, o que, segundo ele, não acontece da mesma forma em Roma. O senso de propriedade dos cidadãos explica em parte. "Esta é minha cidade!" Milão é a cidade das feiras, congressos e convenções, reflexo dos cuidados que todos tem com ela. Caminhar por suas ruas é um prazer, mesmo em locais distantes da área turística; aliás vou dizer, nos bairros é mais agradável que no meio dos turistas. 

A confusão na área de embarque da Estação Central de Milão reflete a bagunça típica dos italianos? Itália funciona bem, mesmo com algumas situações que se pode chamar de bagunça. Milão é muito bem organizada, não se pode chamá-la de bagunçada, definitivamente não. Creio que o problema esteja em que os turistas compram a ideia de que na Itália algumas regras podem ser quebradas, o que é verdade.   
 
A Rodoviária do Tiete é grande e funcional, uma referência. Quando foi construída saltaram críticas de todos lados pelo seu tamanho. Com o tempo mostrou-se muito melhor e mais agradável que os aeroportos da cidade, e olha que no Tiete circula um público maior e teoricamente mais complicado que nos aeroportos.
Uma rodoviária é de todos e não é de ninguém, como se diz sobre a coisa pública no Brasil. 

"Suíça é um porre, mas tudo funciona" deixa a pergunta sobre o custo \ benefício que se tem que pagar numa sociedade para que a vida coletiva flua com um mínimo de qualidade. Remete a um questionamento mais profundo: o que se entende por qualidade. Qual é o ponto de equilíbrio que não leve a uma chatice tão grande que induza ao suicídio ou ao assassinato? Os maiores índices de suicídio estão nos países organizadíssimos, tipo os nórdicos e Japão. Não faço ideia do que acontece na Suíça. Sobre altos índices de mortes violentas nós, brasileiros, não precisamos buscar referências. 

Por lei a cidade tem que estar em completo silêncio depois das 21:00 h. Uma amiga vivendo em Zurique recebeu a visita da educada polícia porque ligou a máquina de lavar roupas no porão da casa depois disto. Absurdo? A normalidade é um bairro inteiro não dormir por causa de um bar aberto ou até um pancadão?  Tem meio termo, claro que tem, qual meio termo esta é a questão? Ou a opção coletiva. 
"Suíça é um porre!" ouvi inúmeras vezes. Eu não acho. Também não acho exagero uma bagunça de vez em quando.
Na estradinha que subia os Alpes para Zermatt tivemos que parar o carro para esperar que dois funcionários da estrada varressem umas terrinhas e folhas do asfalto. Bernard parou sem reclamar, esperou conversando até que recebeu a permissão de seguir viagem; agradeceu e fomos. Não tinha cone, bandeirinha, funcionário acenando com a mão, não precisava porque todos respeitavam o limite de velocidade e a distância entre os carros. Para mim, brasileiro, foi um choque e uma lição de vida.

Impossível esquecer minha perplexidade ao ver a roupa branca do açougueiro de Bern, Suíça. Foi em 1976 quando aqui ainda se vendia carme pendurada sem refrigeração por todas partes. Garanto que nem os médicos no Brasil usavam avental tão branco e imaculado. Limpeza, higiene, e outros cuidados são atos civilizatórios por que além de ser saúde preventiva que diminuem brutalmente custos, são fatores que estimulam muito o senso de coletividade para o bem comum. O avental ali não poderia estar de outra forma.
Zurique mudou, não é mais a mesma. A primeira vez que estive lá, em 1976, era uma cidade suíça. Hoje é uma cidade suíça com pitadas de ares globalizados. Gostaria de me aprofundar para saber no que esta globalização influenciou a organização social de uma cidade de tradições tão rígidas.  
Na Suíça tudo funcionava e segue funcionando como um relógio, suíço é lógico. A questão é hoje vivemos com um Swatch, suíço é lógico, mas de outros princípios. O tradicional relógio suíço virou artigo de luxo e os bancos não recebem mais dinheiro de origem duvidosa. Mudou todo jogo. Mudaram as cidades. O que pode, deve, o que não pode, não deve mudar? A qualidade não pode induzir ao suicídio; liberdade não é qualquer coisa que desestabilize a vida de todos cidadãos. Há um meio termo, melhor, o meio termo está aí, mas nos recusamos a vê-lo, aqui no Brasil por pura comodidade. 

Em Funchal, Ilha da Madeira, assim como em Las Palmas, o prazer foi caminhar com toda tranquilidade pelas ruas silenciosas, limpas, organizadas, seguras, poder tirar fotos com o celular despreocupadamente, cruzar as ruas sem se preocupar com o trânsito que para suavemente. Se vê cadeirantes, idosos velhos, sim idosos que de tão idosos são velhos, crianças pequenas, algumas que ainda cambaleiam em curtas corridas, pessoas com sérias deficiências de mobilidade, passando para lá e para cá sem preocupação de tropeçar ou cair em um buraco estúpido. O piso é em pedra portuguesa com ricos e precisos desenhos, o mesmo tipo de calçamento que tínhamos em boa parte do Brasil e que ninguém mais sabe fazer ou manter. Muito de vez em quando se vê um defeito, um quebrado, um remendo mal feito, mas a sensação que se tem é que não vão durar muito, que alguém logo consertará. Não vi um policial sequer.
A rua comercial de Funchal é agitada, cheia de gente caminhando, fazendo compras, sentadas conversando ou sós, sem grandes barulhos, uma ou outra criança ou adolescente quebrando a paz discretamente. Cheia de lojas, mas sem cartazes ou outros chamarizes que quebrem a construção da tranquilidade local.
Volto para o calçadão largo em frente a uma das praças mais lindas, talvez a mais linda que vi em minha vida, impecavelmente arborizada e ajardinada. Sento em uma das muitas mesas dos cafés dali, peço um misto quente e um suco de laranja e se quiser posso ficar horas ali simplesmente olhando o que passa sem ser importunado por ninguém, sequer pela garçonete. Passam madeirenses e turistas de todas origens, pesos, idades, muitos com peles bronzeadas, uma benção para está saindo do inverno rigoroso da Europa. Poucos americanos, praticamente nenhum chinês, e uns minguados e discretíssimos russos que falam baixinho para não serem identificados. Na mesa em frente tem um senhor mais ou menos de minha idade com pescoço e cabeça careca cor de pimentão - literalmente. Quando vi fiquei assustado. Pela cara de feliz dele vê-se um prazer completamente despreocupado e provavelmente esquecendo uma possível dor. Uma delicada menina inglesa vai de braços dados com seu namorado mostrando suas pernas de pele lisa e leitosa que em seus 20 anos de vida, se tanto, provavelmente nunca viram sol, nem debaixo do suave vestido de pano leve e discretamente florido. E aí vão os contrastes.

O calçamento entre o porto e as proximidades do centro de Gênova são precárias. A mala de rodinhas vai aos pulos. Cuidado para não terminar com os dentes no chão. Em vários pontos tenho que parar para esperar que os pedestres que vem passem ou não passo com a mala. As lojas são feias, algumas sujas. O trânsito passa correndo. Mais me aproximo do centro, melhor fica a calçada, mais silenciosa a rua, mais limpas as construções, mesmo assim a diferença para o calçamento de Las Palmas e Funchal ainda é grande. Vou pensando quando estas aparentemente simples diferenças das calçadas influenciam na qualidade de vida, nos ganhos, na estabilidade social, no uso do espaço público. Devem haver pesquisas, números, comparações, gostaria de ver para entender.
Dias depois penso que a preservação de trechos com calçamento irregular e aquela aparência faz parte da estratégia de venda da Gênova histórica, ou seja, dinheiro de turistas. Sem dúvida também é resultado da via elevada que acompanha todo porto. O que quer que seja, funciona com estratégia. Todo mundo adora e vive as vielas estreitas e o entorno da área histórica do porto. Para os turistas um prato cheio. O calçamento ruim entre o porto e o centro que não é longe fica como um alerta para da próxima vez o turista pegar um táxi, parte essencial da estrutura econômica da cidade. A mesma estratégia é usada na área de embarque da monumental Estação de Trem de Milão?  

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