quarta-feira, 4 de maio de 2022

Trabalho: sofrimento, penitência ou prazer perante Deus?

Acabo de voltar da minúscula loja de ferramentas que está na rua de cima. Tem praticamente tudo num espaço de 15 metros quadrados, se não tem ele consegue rapidinho. A opção é por qualidade dos produtos e atendimento. O dono trabalha sozinho, é de boa conversa, inteligente, educado, está progredindo. A cada dia tem mais mercadoria e em alguns dias é até difícil de entrar na loja porque as mercadorias estão empilhadas no chão. Pedi para entrar, cruzar o balcão e olhar como o é espaço depois de uma pequena porta. Não tem espaço para nada, só para usar o banheiro sentado enviesado, sentando com calma para não cair nada na cabeça. Mercadoria até o teto, tudo muito organizado. 
- Você não precisa de um espaço maior? perguntei.
- Preciso, mas não dá para pagar o aluguel. O ponto (que ele está) é muito bom, tenho que ficar por perto, mas os alugueis por aqui não dá para mim.
- E se tivesse um depósito perto?
- Eu teria que ter uma segunda pessoa trabalhando; aí não dá. Os meninos (os jovens) não sabem o que é trabalhar. Se (o cliente) pede um alicate básico, eles (meninos) têm que vir no computador pra ver o que é um alicate. Acham que trabalho é só salário, não tem interesse em aprender e querem ganhar bem imediatamente mesmo sem saber o que estão fazendo. Tentei até com um primo, gente boa, mas não deu certo. Não fazem ideia do que é trabalhar.

Tempos atuais? Definitivamente não! Está na extensa pesquisa do obrigatório livro "Calibã e a Bruxa" de Silvia Frederici. Farto em documentação mostra que desde lá pelos anos de 1200, Idade Média, a relação com o trabalho e o dito emprego não foi das mais simples. O pós Peste Negra que exterminou quase um terço da população europeia, e pelo que está no livro, o que gerou a primeira geração de nem nem; os que hoje nem trabalham nem estudam. O que vivemos hoje não é nenhuma novidade, é resultado de desequilíbrios sócio-econômicos-culturais-educacionais (burros por sinal). Não se pode negar que ainda temos traços escravagistas e que nossa educação é fraca, para dizer o mínimo. É provável que com as redes sociais algumas mazelas neste momento estejam mais aparentes e em alta, mas só uma pesquisa poderá afirmar ao certo. Fato é que nós, aqui no Brasil, temos mais um esculhambo: a despreocupação com qualidade. 

Em 1992 trabalhei numa fábrica. Uma das bicicletas que tinha que montar para treinar os vendedores veio faltando um parafuso. A diretoria me "autorizou" ir até o setor de "protótipos" para conseguir o parafuso. Cheguei lá e vi o mecânico perdido com a regulagem de um câmbio Suntour, diferente dos triviais Shimano. Dei a dica de como regular, conhecia o manual do produto, e é lógico que funcionou perfeitamente. No dia seguinte fui chamado à diretoria para dar explicações do porque ter "ofendido" o dito mecânico. Enfim, do que se conclui que conhecimento e interesse em ajudar pode ser visto como constranger, ofender, desabonar, prejudicar seu próprio ganha pão... Corporativismo: no meio de imbecis seja um imbecil ou ofende. Ofende?

Na reforma do apartamento de meu irmão uma das portas tinha que ter seu fechamento invertido, o que demanda a abertura de novos buracos, a saber, novos cortes para a fechadura e dobradiças. "Fica tranquilo que vou chamar um marceneiro experiente" me tranquilizou o simpático empreiteiro. No dia seguinte entro e dou com um senhor, um bosta, e não costumo me referir assim a quem quer que seja, usando uma chave de fenda para fazer os buracos na madeira, o que é um crime. Perguntei se ele não tinha formão e a resposta veio de bate pronto um "Você é Mauricinho, não sabe de nada e não vai me ensinar meu ofício", não com estas palavras, mas sem dúvida com este exato sentido. O dito marceneiro não sabe a diferença entre uma chave de fenda e um formão. Pior, não pode ser orientado ou sentir que foi chamada sua atenção, numa maldita cultura atávica do "eu sei" que arruína o Brasil.

Posso continuar contando casos e mais casos sobre trabalhadores, mas tenho certeza que cada brasileiro tem várias historinhas irritantes próprias sobre as mais diversas situações.

Não sei como estão hoje os índices de produtividade do Brasil, mas não são nada bons. Comparados a outros países, principalmente os mais ricos, nossos concorrentes diretos na economia mundial, que devem ser nosso parâmetro, estamos mal, muito mal, dependendo da região deste vasto Brasil estamos para lá de mal, péssimos. Deprimente.
Nossa produção de valor agregado é muito preocupante. Trabalhar talvez seja confundido com servir, serviçal, escravidão. Bobagem? Como definir o "eu tenho direito" tão enfático, atávico, frequente e intenso que temos por aqui? E aqui volto a importância da leitura da história das relações sociais que está no "Calibã e a Bruxa". Confesso que me incomoda um pouco a linha de pensamento de Silvia Frederici, mas não os fatos históricos ali relatados e muito bem documentados explicam bem de onde vem toda esta situação atual não só no Brasil. Repito, é leitura obrigatória. 

"Não sei quem foi o imbecil que disse que trabalho dignifica o homem, mas acho ele um idiota", disse a menina da recepção do restaurante.
Trabalho ligado a dignidade é coisa criada pela igreja ou por quem? Lendo aqui e ali ainda não cheguei a uma conclusão, até porque as análises ou são focadas no social, na política ou na economia, num paralelo a um "Marx ou não Marx, eis a questão". Um pouco cartesiano demais para meu gosto. E o psicológico, o genético, o instintivo, o nosso lado animal ainda latente do poder, da competição? Além de outros fatores que não vi ou desconheço o olhar da academia?
 
Sofrimento para mim é não trabalhar. Não consigo ficar quieto (genético) e tenho pânico de ser ou estar inútil (psicológico). Trabalhar é minha forma de integração social, que fora disto é bem precária. Até entendo os que não querem mais fazer nada e veem o trabalho como um sofrimento. De novo, a explicação bem convincente está no "Calibã e a Bruxa". O que repetidamente foi um sacrifício sentido como inútil vira um mal ou até um suplício, o que acontece com qualquer um que não consegue resultado em suas lutas diárias. 
Ser bonzinho e trabalhar pelo bem comum até onde sei é um mandamento de Deus, melhor dizendo, das religiões. Senso de coletividade para preservar a si próprio é outra coisa e foi o que construiu sociedades fortes. No meio desta confusão vale o bom senso, e bom senso se constrói com um mínimo de informação. 

Na minha frente há uma vastidão de mar. Comecei este texto no navio. Tenho tempo para pensar, um luxo. Em 1975, num navio cargueiro e no meio do nada do Oceano Atlântico, sem gente por perto, descobri nossa insignificância perante a natureza, o planeta e o universo, que para mim em seus mistérios é o verdadeiro Deus. O deus das religiões são a sombra de livros organizadores das sociedades. 
Sobre trabalho posso dizer que trabalhamos feito desesperados, não raro sem uma boa razão, e nos transformamos no câncer deste planeta. As garrafas pet que passam flutuando que o diga. Sair desta sinuca de bico é um drama. No fim das contas, trabalho: sofrimento, penitência ou prazer perante Deus? a bem da verdade tudo isto e muito mais.







 

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