segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Steve Tilford, primeiro campeão da história do mountain bike mundial

peço desculpas por não pedir autorização para a foto, mas há de compreender que Steve merece

Fazendo uma pesquisa sobre a primeira mountain bike de produção em série introduzida no mercado americano acabei dando com a notícia da morte em 2017 de Steve Tilford vítima de um acidente de automóvel do tipo "Jesus me chama". Faz uns bons dias e desde então simplesmente não tive condição de escrever o texto.

Steve Tilford e Trudi, sua mulher, estiveram duas vezes aqui no Brasil. A primeira vez em 1995 acompanhados de Todd Turner, do downhill; fui eu o responsável por recebê-los. A segunda em estada 1996 vieram acompanhados de Ned Overend, ainda competindo e já uma lenda do mountain bike; desta vez não me lembro quem os acompanhou, mas novamente estivemos juntos. 

A simpatia e a simplicidade de Steve e Trudi foram marcantes para todos. Não demorou muito para me fazerem sentir como se fosse um amigo de longa data. Confesso que tinha certa noção de quem ele era como ciclista: campeão americano de ciclocross e o primeiro campeão da história do mountain bike, ponto, o que em nenhum momento Steve fez transparecer. A imagem de Steve estava deslocada do que esperávamos; zero, nem um traço de "sou o bom, sou campeão".
 
Na primeira estadia chegaram à noite e no dia seguinte Steve e Todd teriam que dar uma entrevista na Rádio Jovem Pan, marcada para 14:00 h. Peguei os três próximo ao meio dia, entraram no carro e disseram que estavam com fome. Dei opções, falei sobre o tempo breve antes da entrevista, e eles quiseram experimentar o hambúrguer daqui, brasileiro. Levei-os a uma das boas hamburguerias e não só eles se deliciaram para valer com a comida como sem parar de conversar sobre tudo menos ciclismo, rindo muito, acabamos perdendo a entrevista na rádio. Na Specialized quiseram me matar, mas isto é outra história. Todd mostrou-se mais tímido, formal, fechado, mas muito simpático; e para minha completa surpresa mórmon. "Downhill mórmon? Esta não poderia imaginar." 
Steve e Trudi me marcaram como abertos, leves, despreocupados, cultos, vividos, curtindo o melhor da vida numa conversa rica, cheia de graça.

Depois da bronca por ter perdido a rádio, e que bronca, que começou pelo celular, passamos pela bicicletaria Pedal Power que também estava agendada pela Specialized, onde Steve e Todd foram recebidos quase como heróis ciclistas, só faltando fogos de artifício, mesmo assim continuaram sendo o que eram e nada mais.

A noite fizemos um passeio pela cidade. É o que mais me impressiona das lembranças que tenho de Steve e Trudi. Parecia que os tinha encontrado numa padaria e depois de uma agradabilíssima conversa eu tenha dito "A noite está agradável e tô indo dar uma pedalar por aí. Querem ir?" Vieram e continuamos a conversa. Jamais diria que ele foi um dos mais importantes ciclistas da história dos Estados Unidos e que Trudi pedalava uma barbaridade (desconheço seu currículo, mas sei que é bom).
Ps.: No meio do passeio o pneu do Steve furou. A velocidade da troca provavelmente inspirou a equipe Red Bull de F1. Ali entendi que Steve pertencia a um outro planeta. Teria demorado mais para encher o pneu se fosse com o calibrador do posto de gasolina, o que pode parecer um exagero, mas não foi. Queria ter cronometrado.

No domingo Steve e Todd fizeram uma corrida completamente absurda, debaixo de um temporal próprio para a Arca de Noé, que terminou literalmente com um palmo de lama tipo milkshake. Uma forçada de barra, uma irresponsabilidade sem precedentes que só aconteceu porque foi transmitida pela TV. Steve, 5 vezes Campeão Americano de Ciclocross, são provas completamente meladas, um barro só, disse que nunca tinha participado de nada sequer parecido. Todd Turner terminou apavorado com a possibilidade de contrair alguma doença de rato por causa de um corte na canela. Só quem viu as bicicletas depois da prova consegue entender o que aconteceu ali.

A paciência e a cortesia de Steve com o público antes e depois da estúpida prova sem sentido me impressionaram muito. Todd foi cordialmente profissional. Trudi ficou no canto dela, conversando descontraída com quem se apresentasse. Steve, exausto e desesperado para tomar uma banho desinfetante, atendeu a todos com uma gentileza rara.

No dia estava programado pegar Steve e Trudi para levá-los para Ilha Bela. Enfim férias! Entramos na Marginal Tiete com outra tempestade brutal, passamos um pouco do estádio da Portuguesa e trânsito parou. Depois de um tempo saí do carro para ver o que acontecia, mais a frente vi carros naufragados e a água vindo rápido em direção ao nosso carro. Foi das poucas vezes que por dentro entrei em pânico. Eles perceberam e me acalmaram. Disse para eles que se fosse o caso os colocaria para dentro do ônibus que estava ao lado, e de novo me acalmaram. A enchente parou na roda de uns dois ou três carros a frente. Ficamos presos lá algo como 5 horas ou mais, óbvio que sem água e comida, e neste meio tempo os dois decidiram que queriam ir para o aeroporto e voltar para casa, o que fizeram. Telefonei para a Specialized que ajeitou tudo. Entre o hotel e o aeroporto demoramos pouco mais de 8 horas. Era simplesmente impossível sair de onde encalhamos. As ruas em volta simplesmente submergiram. Eles não só não perderam a calma como mantiveram todo tempo uma conversa divertida e um bom humor notável.

Quando vieram pela segunda vez para São Paulo achei que eu seria um mero conhecido, mas quando os dois me viram sorriram, Steve me deu um longo abraço, mais um abraço carinhoso de Trudi, e ele me perguntou quando iríamos comer hambúrguer. Desta vez tivemos pouca chance de uma conversa longa, mas a toda oportunidade trocávamos piadas e comentários como se fossemos amigos de infância. As atenções maiores foram naturalmente para Ned Overend, o que em nada parecia incomodar Steve que circulava sorridente e solícito.

A partir daí trocamos mensagens de Natal, Ano Novo, e outras datas, sempre com textos carinhosamente elaborados. Fazia um tempo que não nos comunicávamos, que me lembre alguns anos antes de 2017, ano do acidente fatal de Steve.

Um caminhão deslizou na pista e tombou no meio da estrada. Steve parou e saiu de sua vã quando foi colhido por um segundo caminhão. Pelo que entendi o impacto foi tão violento que a vã literalmente transpassou o compartimento de carga do caminhão. O lado que Steve estava desintegrou, como se vê na foto.

Steve, meu caro, agradeço e muito a você por sua simplicidade. Se não tivesse visto a notícia trágica do acidente jamais teria descoberto o quão grande você foi. Como dizem os comentários de pessoas que conviviam ou competiram com você: "Steve foi um hippie que pedalava muito." "Era o melhor dos companheiros e o pior dos adversários." Estas duas frases, dentre muitas, resumem o sempre achei que um verdadeiro campeão deve ser. Você era e pela tua simplicidade eu jamais teria descoberto. Obrigado.

Campeões de verdade não deveriam morrer antes do tempo. E não morrem.
A forma de manter Steve vivo foi criar uma fundação: https://www.stevetilfordfoundation.org/ 

Confesso que nesta era dos falastrões vazios ditos mitos, salvadores da pátria ou heróis, a morte de Steve me pegou muito pesado. Difícil, muito difícil.
Trudi, espero um dia ir até aí para dar te um forte abraço. 

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