quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Fui suicidado

No Dia Mundial da Prevenção do Suicídio fui suicidado. Li um relatório que simplesmente descarta praticamente todo meu trabalho desde 1982. Na hora a leitura foi 'todo meu trabalho', sem praticamente. Enfim, passaram a borracha, ou pior, nem isto, sequer olharam. "Não me interessa o que você diz que eles fizeram errado, me interessa o que você fez que os levou a cometer o erro que te afetou", dizia Lollia, minha mãe. Uns dias depois numa troca de mensagens não só descobri que o dito documento era de fato o que parecia, como que para boa parte dos com quem trabalhei meu trabalho não existiu, ou de maneira menos dramática, alguém recebeu os louros com o meu. Nunca reclamei e não estou reclamando que tenham feito control C - control V, e nem queria porque acreditei piamente que um dia chegaríamos a algo próximo de nossa utopia, ou pelo menos da minha tão naife. Ledo engano. "Trouxa"! é o que me resta ao olhar para trás. 

No Dia Mundial  da Prevenção do Suicídio fui suicidado. Morrer não teria feito tão mal. Senti uma dor tão intensa quanto senti quando soube das mortes absurdas dos filhos de Miriam e Jairo. O conforto vem de ter vivenciado amigos passando pelo mesmo, não a morte dos filhos, mas um dia receberem o bilhete azul e descobrirem que depois de décadas de ótimos trabalhos passaram a não existir mais. Sensação estranhíssima ver zumbis sorridentes caminhando no Ibirapuera em hora de trabalho. Como vai? "Ótimo". Todos se refizeram, uns de verdade, outros num bom ou péssimo refúgio. Um deles em particular, dos melhores homens que este país teve, voando do 10º andar. Acabou, fim, sociedade descartável, depois de usado vai para o lixo. "Dá para reciclar?"

Acordei destruído. Por um momento não acreditei que conseguisse sair da cama. Meu médico pediu que eu desaparecesse. Quase não consegui. Mas cá estou eu. Como cheguei? Como lidei com meus pânicos, minha angústia? Brincando de classe média.

Tomei o café da manhã em casa e fiquei mais confiante. Saco cheio salva qualquer um. Ou termina com qualquer um. Depende. No meu caso o saco cheio de postergar a viagem chegou a um limite. Já era 9:00 h da manhã e fugir pedalando iria azeitar mais ainda meus atuais medos da saída de São Paulo e suas periferias e fritar minha cabeça no meio da estrada. Por mais que queira enganar tenho cara de dondoca de classe média e sou alvo óbvio.  

Se acordasse às 3:30 h como estava programado pedalaria passando para lá de São Miguel lá pelas 5:30 h ou 6:00 h, o que por um lado seria interessante porque veria mais uma vez os trabalhadores que cruzam pedalando o viaduto\ponte que sai de Ermelino Matarazzo e cai na av. Santos Dumont e Parque industrial Cumbica de Guarulhos. Reginaldo foi quem me apresentou esta massa de trabalhadores ciclistas invisíveis para autoridades e nós, a classe média chuchu beleza. A ponte\viaduto é estreita, praticamente não tem espaço para os pedestres e muito menos para os ciclistas, que cruzam por tudo quanto é canto, passarela enfrentando pedestres, asfalto de ônibus e caminhões, mão ou contramão. Mais uma luta remada, utopia naife de um trouxa, deu em nada. Duvido que tenham feito algo, deve continuar igual. A piãozada que se dane!

Voltando, além dos trabalhadores que se viram para chegar ao trabalho, têm assaltantes ou pelo menos quilômetros e quilômetros de histórias assustadoras de violência. Real ou não, pelo menos na escala, não estou mais afim. Vai que sou salvo para uma crente gorda, vestido de estampa sem graça solto escondendo meio colado às gorduras, cabelo preso em coque que parece grudento, recitando "Deus é fiel"; aí sim me suicido. Em Buenos Aires fiquei com uma 45 engatilhada no meio do olho (roxo por uma porrada do cano) e nem pisquei, não faz diferença, mas de crente me cago de medo. Hoje dentre outras razões as federais. "Quem tem cu tem medo".

Na noite anterior ainda luz acesa na cama tinha cogitado pegar um ônibus. É ridículo, mas entre ir para a rodoviária pedalando, comprar passagem, esperar o ônibus, fazer a viagem, descer na rodoviária e pedalar até o hotel dá praticamente o mesmo tempo de ir pedalando de casa até o hotel. Ok, uns 15% mais demorado, se tanto e se tudo sair bem. A esquizofrenia assassina do momento, sucesso maior que Agatha Christie, o tão falado Covid 19, e o tempo de viagem, no café da manhã definiram: alugar um carro. Sai muitíssimo mais caro que o ônibus ou ir pedalando, mas muito mais barato que pegar o vírus. Cálculo feito, sorriso no rosto, borracha nas mentiras não calculadas, viva o conforto do velho e bom automóvel.

E brincando de classe média sentei no meu Renault, coloquei um pendrive no rádio, big band, jazz, clássicos americanos, grandes intérpretes, e voltei ao normal. A classe média vai ao paraíso. Em duas horas e um pouquinho cheguei na porta do hotel, fiz o check in, entrei no quarto com linda vista, 8º andar, e isolamento acústico total. Nada melhor para curar a esquizofrenia momentânea e a depressão que não é só minha, mas pandêmica. Almocei árabe, com direito a uma pasta de alho divina. Meu isolamento social amanhã está garantido. Se alguém chegar perto pela frente eu abro a boca e sopro. Se se aproximar por trás sopro. Meus poros rescendem. O cheiro não difere.

Final de tarde saí para caminhar. Esta riqueza medíocre me salva. Meu médico tinha razão. Pelo menos suaviza a dor de olhar em volta e saber que fui mais um trouxa movido a inocência naife. Quieto olho em volta e peço desculpas aos mendigos que passam ou sentam para comer restos pelo que estou fazendo. Os meus vícios sociais, que não diferem da utopia geral, fazem que esta brincadeira vá custar algo em torno de 20 cestas básicas. Eu mereço?

Dia Mundial da Prevenção do Suicídio: suicídio é um direito individual. Aliás, não o suicídio em si, mas morrer como bem entender. Vida virou um business rentabilíssimo. Morrer, como na idade média, virou um péssimo negócio para o estabilishiment. Qual é o custo benefício entre vida e morte? Para os humanos e para o meio ambiente?   

Um comentário:

  1. Bom dia! merece muito mais do que imagina, fico muito feliz que foi de carro fez a coisa certa. Aproveite todos os momentos de paz beijo com carinho. Teresa

    ResponderExcluir