quarta-feira, 19 de outubro de 2022

Quadrophenia e as recordações da romaria

Peter Townshend´s Classical Quadrophenia está tocando de fundo. Prefiro o original, traz recordações de uma viagem de navio cargueiro para os Estados Unidos, recordação imediata da navegação tensa no Mississipi em meio a um tornado. 

A la loca. O que não fazer? Por que não fazer? E se fizer, no que vai dar? Que mal há em fazer? Um prato de arroz esquentado no micro-ondas e um resto de batata palha de saquinho já velha. "Este é seu almoço?" (Não deveria ser, mas) "Está bom, não se preocupe, é o que tem". Sol do meio-dia, calor, nada recomendável para sair pedalando sem destino, mas fui. Mochila nas costas meio cheia, nada recomendável para quem tem problema crônico de coluna, mas é o que tenho, vamos lá, abre o portão e se manda digo a mim mesmo. Pelo bom senso tem tudo para dar errado, mas vamos lá. Fui. 

5, 10, 15 km, os medos vão passando, a dor na bunda vai aumentando. O bom senso diz que bermuda acolchoada de ciclismo é mais cômoda que usar bermuda jeans com cueca de costura grossa. Estúpido! Já que fez a burrice de tirar a bermuda de ciclismo agora aguenta as consequências, cala a sensação de dor e segue em frente. Fui. 25 km, primeira parada, inteiro, feliz, livre. 
Brincadeira, só faltam mais 75 km. Tranquilo. Suco de melancia, sorvete, pipi, vamos embora. Sol torrante, uns km por dentro de Guarulhos, logo a Dutra sem sombra, pau!

Onde o bom senso limita a vida? Bom senso sim, mas mau senso existe? Upa! e como! Medos atávicos que julgamos bons costumes, bom senso, cada um tem o seu. Cá estou eu deixando para trás São Paulo, Guarulhos, a zona de conforto. Foda-se! Viva a vida. "Vivir a las medias es no vivir", aí está o bom senso, viver.
Zona de conforto não é exatamente um bom senso. Faz tempo que venho misturando as coisas, viver a vida, zona de conforto e bom senso, que virou discurso fácil para não tomar riscos; e não viver. 

Quadrophenia, quatro esquizofrenias. "Is it me for a moment..." (The real me).

A escada do navio amanheceu ora ficando plana ora um penhasco. Esperei que ela subisse e cruzei os degraus rapidamente antes que virasse parede atrás de mim. Fui até a torre de comando e vi a proa do navio mergulhar na imensa onda, o mar tomar o convés em espuma, senti o navio praticamente parar, levantar a proa que saiu das águas e subir lentamente a onda até o mar a frente desaparecer, proa apontada para o céu carregado em inúmeros tons de cinzas. Lentamente o navio fez uma gangorra, a proa a descer, o mar a reaparecer furioso para enfrentarmos a próxima onda, e afundarmos nas espumas. E assim passamos quase todo dia entre sobe, desce, escorrega, para, espumas e muito vômito, todos vomitando. Quadrophenia! Repeti uma vez com raro prazer a loucura num veleiro. Sinto falta. Non sense? Não, vida! Não existe vida sem possibilidade de morrer.

Vez ou outra a cueca se faz lembrar, e como. Só não está mais desagradável porque, bom senso, tenho disciplina para não pensar nela. Os romeiros que caminham vão ficando para trás, cada vez mais. Seus suplícios estão nos pés, os gordos no rala-coxa. Sol a pino, bom senso, vou tomando aos poucos água. Mais 40 km segunda parada, café, pão de queijo, pipi. Os romeiros por aqui já estão capengas, alguns tratando as bolhas dos pés. Não quero pensar na cueca. Contrariando o que imaginava estou surpreendentemente inteiro, e está calor, sol a pino, mas final de tarde a cada momento fica mais fresco, melhor para o cansaço. O bom senso sempre recomendou sair bem cedo, mas saindo cedo na hora que o cansaço bate o sol está a pino torrando. Faz sentido?

Romaria, ter fé, acreditar, cumprir os mandamentos. Dependendo da leitura pode ser ou não ser um bom senso.
"Comporte-se (bem)!" creio que foi o que mais ouvi na vida ou o que mais ficou gravado. Não é exclusividade minha, muito pelo contrário, de uma forma ou de outra todos temos o seu "comporte-se bem", freio fortemente gravado na testa ou nuca, depende. 
Até que ponto faz sentido entrar na romaria da vida, caminhar na fé coletiva, mais que a individual? Sim, faz sentido, todo sentido, o coletivo, respeito, dever, unidos, fé no conjunto guiado por certos dogmas. Unidos venceremos, unidos vencemos, mas em que termos? E eu?

Chego quase ao final desta pedalada, já noite e praticamente sem romeiros na escuridão, só eu que a bem da verdade não sou romeiro, mas tenho fé, a minha fé. Estou lá para ver e me divertir e apagar os pecados de mim para mim mesmo. 
Não enxergo quase nada, a estrada se estreita, breu ponteado pelos faróis que passam. Tenho que chegar à passarela mais a frente e cruzá-la vivo de preferência. Faz sentido. Não tenho medo. Me sinto livre e isto me despreocupa de tudo mais. Vivo! Faz ou não faz sentido?

"Navegar é preciso; viver não é preciso..."


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