segunda-feira, 19 de julho de 2021

Proteger a indústria nacional? Erro, especialmente no setor da bicicleta

Corre no Congresso uma proposta de projeto que cria barreiras para a importação de forma a proteger a indústria nacional. Espero que não passe por diversas razões, em especial porque se isto acontecer provavelmente o projeto de reestruturação de nossas cidades para a vida com as mobilidades ativas vai ser profundamente prejudicada.

Quem é novo, quem não pegou o "Brasil, ame-o ou deixe-o" da indústria nacional protegida da importação e não faz ideia das consequências que este isolamento trouxe para todos, população e principalmente para o setor industrial e geração de empregos a médio e longo prazo.

Quando se fala em bicicletas esta proteção dos importados foi uma das principais causas do Brasil deixar de ser o terceiro maior fabricante mundial de bicicletas para praticamente desaparecer do cenário, mesmo tendo uma das maiores populações de ciclistas do planeta. Não confundir a novidade que vivemos da classe média e alta pedalando com a tradição perene do uso da bicicleta pela população em geral.

Era muito ruim a qualidade da bicicleta que tínhamos antes da liberação da importação de produtos industrializados determinada pelo então Presidente Fernando Collor em maio de 1990. O Brasil vivia num oligopólio com Caloi e Monark controlando com mão pesada mais de 90% do mercado interno. Monark era dona do nordeste e norte do país, onde era muito difícil ou até impossível encontrar Caloi. Por sua vez Caloi tinha o mercado de São Paulo e redondezas.

Pedalar com bicicletas brasileiras das décadas de 70, 80 e início dos 90 era um constante ajustar e com frequência trocar peças. Eixos das rodas e do movimento central eram um desastre, um bom ajuste durava dias, se tanto, quando era possível ajustar. Renata Falzoni definiu em 1989 com precisão o que era pedalar uma bicicleta nacional daqueles tempos: "nhec nhec.. nhec nhec.. nhec nhec..."

Não foi a importação de destruiu a indústria da bicicleta no Brasil, mas a prepotência, a soberba, a arrogância, a incapacidade de olhar o futuro e aplicar qualidade aos processos, mais uma sucessão de outros erros crassos. Cheguei a conhecer a fábrica da Caloi e os problemas não eram muito diferentes dos encontrados em outras fábricas de outros setores industriais. Dizia-se que as Monarks eram melhores, mas esta análise tinha muito de paixão. Quando chegaram as primeiras importadas, mesmo as mais baratas, ficou claro que a palavra qualidade não estava no dicionário do setor brasileiro de bicicletas. Aliás, lembrando, a Urbano, fabricante de bicicletas populares (?) surgida em 1989 tinha números absurdos de problemas de produção e defeitos, mesmo assim vendia bem bicicletas frágeis e desalinhadas. Várias marcas nacionais seguiram o mesmo caminho. A Conthey, marca de péssima qualidade surgida alguns anos mais tarde foi digna de uma piada corrente entre os bicicleteiros: “Te contei? Você se fudeu!”

A salvação da indústria nacional protegida do “Brasil, ame-o ou deixe-o” teria sido uma mudança radical, não raro jogar no lixo até todo ferramental e comprar tudo novo. Em vez disto empurraram com a barriga até não dar mais. Posso afirmar porque vi, naquela época até o trabalho do ferramenteiro, o especialista em manutenção e ajuste de cortadeiras, prensas, fresas e tornos foi relegado a "dá um jeito aí". Vi máquinas de corte trabalhando com variações absolutamente inaceitáveis até para os diretores industriais daquela época. "Quer que faça o que? Não posso parar a fábrica". Traduzindo as palavras do diretor: o mercado comprador só tem idiotas que aceitam esta merda. E aceitavam com naturalidade, mesmo já existindo leis que o protegiam.

Os setores industriais do Brasil que tiveram menos problemas com a abertura da importação foram aqueles que já sofriam concorrência e os que tiveram respeito pelo consumidor. Mesmo assim o baque foi grande para todos porque o mercado mundial estava desbalanceado, principalmente pela política interna agressivíssima da China de produção e preços.

Hoje o jogo do mercado global é outro, difícil, mas possível, mais, desejável. Restringindo ao mercado de bicicletas, a Decathlon, principal marca de bicicletas na Europa e uma das mais vendidas em todo mundo, tem sua principal fábrica em Portugal. As portuguesinhas são ótimas, recomendo. Não conheço os números, mas deve ser bem grande, mais, com preços competitivos com os da China, sinal que o jogo está aberto.

Mas vão dizer que temos uma indústria nacional. Sim temos, mas de novo, a qualidade de nossa indústria está muito longe do padrão internacional, muito longe, longe mesmo. E não se enganem, muito do que é "Made in Brazil" é importado ou vem de linha de montagem na Zona Franca de Manaus, o que é uma outra excrescência que temos que corrigir. O que é dito que foi fabricado na ZFM é na realidade montado com quase tudo importado e só um percentual de produtos realmente "Made in Brazil". Me engana que eu gosto, Isto é outra história que está dentro da mesma história.

O Brasil não pode prescindir de um setor industrial forte e bem sucedido, mas isto não vai ser alcançado cometendo o mesmo erro do passado. Não é a proteção que resolve, mas saber competir, ser eficiente, ter os pés no chão.

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