Quem passava em frente ouvia sons irreconhecíveis, difíceis de definir do que era, que animal estaria naquele fundo de terreno com garagem de portão sempre fechado. Os empregados faziam que não ouviam as perguntas; o que varia diariamente a frente do palacete sequer levantava a cabeça para dar um bom dia que levemente sussurrado terminava em "até logo, segue em frente, não sei de nada". De dia a janela de vidraças sobre o portão da garagem raramente era aberta para pegar um ar. Dia de sol abriam e então os sons estranhos ficavam mais distantes, estranhos, vindo de trás do palacete, entrecortados pelo cacarejar da galinhada. Uns poucos vizinhos, incluindo o farmacêutico vizinho algumas casas acima, sabiam o que era, mas todos evitavam comentar ou falavam constrangidos da "desgraça".
A escada de entrada do palacete não era propriamente imponente, mas impunha respeito. Ficava na lateral da construção, a poucos metros da calçada e do portão de ferro que nunca se fechava. Dois degraus de mármore, e uma pesada porta de madeira nobre trabalhada em almofadas, dupla, que com certo esforço e girando lentamente abria a da direita, por onde se entrava no palacete. A frente surgia a escada de madeira escura e pouca luz iluminando seus 14 degraus que de baixo não deixavam ver para onde iria ou quem estaria esperando. Uns poucos eram recebidos do alto, a procurava para onde ir. Passada as portas ninguém ouvia grunhidos ou sons estranhos.
O guarda casaco espelhado ficava à esquerda, à beira do primeiro degrau da escada para o porão sempre apagado, buraco assombrado impossível de não notar que precedia as boas-vindas. Vencida os 14 degraus de um carpete que silenciava os gemidos da madeira o palacete se iluminava no vitral colorido do pequeno jardim de inverno. Vencida a escada a incerteza do visitante fazia olhar para a sala da direita, iluminada por duas grandes janelas e com um imponente piano de cauda, e para esquerda onde numa sala grande e profunda, bem menos iluminada pelas janelas com cortinas pesadas, se encontravam os donos do palacete sentados em grandes poltronas esperando serenamente o pedido de benção obrigatória a todos, a para uns poucos o ficar de pé e estender a mão sorridente.
Dia de missa saíam em comitiva, procissão familiar rumo à igreja, a maioria em seus carros estacionados na rua, um atrás do outro por ordem hierárquica casual. Nunca se viu as janelas sobre a garagem abertas nestes momentos. Uns poucos saíam mais cedo a pé para colocar a conversa e as fofocas pouco aceitas em casa em dia. Padre orgulhoso os recebia a discreta distância realizado, aguardando sem esticar a mão para pedir ou dar benção, sinal de respeito para que os patriarcas se acomodassem em seus devidos tempos na primeira fileira da direita.
A Fé, maiúscula ou minúscula, foi vivida, aceita ou levada por todos em nome da unidade familiar. Ritual o encontro nos jantares de meio da semana e no almoço de sábado. Em tempos quentes abria-se as duas grandes janelas da sala de jantar e fechava-se por completo vidraças e persianas da garagem, no mesmo nível e a poucos metros umas da outra. As refeições eram inesquecíveis, animadas, quantos mais viessem melhor. Do portão da garagem ouvia-se claramente as vozes e até os talheres tocando os pratos.
- Era uma menina, não era? Como chamava?
- Era uma menina. Não faço ideia de como chamava.
- Morreu com quantos anos? Depois ou antes dos avós?
- Acho que morreu antes... Morreu antes, mas não faço ideia de quantos anos durou.
O menino hiperativo saiu da brincadeira com os primos que corriam gritando pelo pátio e entrou correndo na busca do banheiro pela primeira porta aberta que viu. A sala bem iluminada, toda fechada por cortinas brancas e translúcidas, só com um grande berço, uma cama fechada por grades, solitária ao centro; e uma única cadeira encostada. Parou a corrida, deu dois passos temerosos, percebeu um movimento grande berço e estatelou frente a visão de uma menina estranhamente bonita e deformada que olhava o teto com sorriso que nunca tinha visto. A criatura de sorriso retorcido emitiu algo entre um gemido e grito e agitou os braços com suas mãos fechadas, o menino se assustou, mas não se moveu, continuou espantado e curioso. Alguém entrou na sala pela outra porta, não era a tia nem a mãe, não era ninguém conhecido, vestia branco e caminhou com calma na direção do menino, sem dizer palavra acompanhou o menino para fora. O menino demorou para voltar aos primos, as brincadeiras, a vontade de ir ao banheiro, mas voltou, correu, e para ir ao banheiro procurou com cuidado a porta correta.
- E a bisneta que também teve paralisia cerebral?
- Que bisneta? Do que você está falando? Não conheço esta história.
Mais uma gravides esperada por toda família. Avos contaram a boa nova a todos que podiam, até na fila do banco. E a criança nasceu, forte, sadia, mas com um pequeno problema. Todos perguntavam sobre as boas novas que eram dadas constrangidas, sem sorrisos, sem alegrias. "Bem, graças a Deus" sem mais palavras. A notícia do pequeno problema foi passada a uns poucos familiares e espalhada por todos em comentários e fofocas. Síndrome de down.
- Tenha Fé, soltou a prima no jantar.
- Maldito seja Deus! Maldito seja Deus! Sempre fui fiel a Ele.
Maldito seja Deus! levantou a voz com lágrimas escorrendo pelo rosto
retorcido de tristeza. - Não quero um neto assim. Pelo amor de Deus, não
mereço. Maldito seja Deus! Maldito seja Deus! Gesto
duro colocou as duas mãos sobre a mesa, fez um abismal silêncio com olhar alto
e perdido, sem enxugar as lágrimas tomou os talheres e voltou a comer. O jantar prosseguiu.
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