Muitos cientistas dizem que esta pandemia não será a primeira nem a última. Vamos ter que rever alguns conceitos sobre o viver agrupado? Já estávamos revendo, muito timidamente aqui no Brasil. A vida na cidade estava caminhando para colocar mais gente em espaços públicos e privados, o que terá que ser revisto caso as pandemias se sucedam e seja necessário continuar isolando.
E as cidades brasileiras como ficam? A vantagem que temos é que estamos bem atrasados neste "colocar a vida na rua". Em compensação nossas cidades tem sérios problemas relacionados a saúde pública que estão bem longe de ser resolvidos. Água tratada e esgoto só para começar. A desvantagem vem da perda de identidade de nossas cidades que nestas últimas décadas reforçou os guetos. Como chamar um condomínio murado senão gueto. Qualquer solução duradoura tem que vir do coletivo, mas temos um coletivo urbano?
Eu cheguei a ver cidades brasileiras. Quem é das gerações mais novas não viu, não sabe o que foram, não faz a mais remota ideia do foi este Brasil, das esperanças que tínhamos, todos, sem distinção, ideologia ou religião. Perdemos completamente a referência de suas histórias, origens, de certa forma de seu povo. Não tivemos crescimento, mas predação, inegável que com a silenciosa autorização de todos, sem exceção. Cidade brasileira hoje é como um shopping center: viu uma, viu todas. Varia um pouco aqui, varia um pouco ali, mas no fundo é tudo igual.
Passei muito tempo tentando escrever este texto sobre a cidade brasileira os efeitos da pandemia sobre ela e confesso que não consegui terminar, tanto por me achar incompetente quanto por ser o tema longo, cheio de detalhes. Pelo menos pensei. Tive que descer para o sul, Santa Catarina, para criar coragem de continuar e não sei se as coisas acalmaram ou ficaram muito mais confusas.
Fui para Joinville e de lá para Barra Velha pegar umas bicicletas do acervo de Valter Busto, ex MUBI. Dali leva-las para o novíssimo Centro Cultural Movimento, museu de motos e bicicletas que será inaugurado em Socorro, SP, dia 12 de agosto próximo.
Assustadora a transformação que Joinville vem sofrendo sem parar. Cidade rica, até um pouco mais de 20 anos era formada principalmente por casinhas típicas da região, a maioria com bons terrenos. Mudou de geração, que deram costas para as tradições e história daquele povo e sua cidade, e a transformação foi e segue sendo impiedosa, indiscriminada, brutal. Shopping center na cabeça! Como aqui em São Paulo, e provavelmente em todas cidades deste país, a especulação imobiliária está desenfreada. Fiquei hospedado num bairro de classe média alta e vi muito edifício novo construído onde não faz nenhum sentido. Esculhambação, baderna.
Lá por 2005 fui convidado a dar uma entrevista numa rádio joinvillense de grande audiência. Fiz um longo e carinhoso elogio para Joinville e alertei sobre as consequências de perderem o maravilhoso patrimônio histórico e a alma da cidade que tinham. A entrevista sequer havia terminado quando entrou um funcionário da rádio avisando que o telefone não parava com ameaças. Tive que esperar um tempo para poder sair da rádio. O mais triste de contar isto agora é que nesta estadia em Joinville ouvi de vários cidadãos que a cidade está deformada, que perderam muito e seguem perdendo para os empreendimentos imobiliários.
Esculhambação bem Brasil. Shopping center na cabeça!
É só patrimônio histórico? Saudosismo? Definitivamente não. O que tem que ver com a pandemia. Tudo. É difícil resolver problemas sem ter referências, portanto memória, e patrimônio histórico é referência em estado bruto. Especulação imobiliária selvagem foi responsável por crimes ambientais que hoje são vistos com horror. Pois bem, silenciosamente permitiram, todos, sem exceção.
Saúde pública só existe com auto respeito. Sem isto é individualismo puro. E especulações.
Hoje na rádio ouvi notícia que urge recuperar as nascentes urbanas, o que implica em dar jeito nas invasões de áreas de manancial, patrimônio público perdido. Hoje temos menos água nos reservatórios do que tínhamos na última crise hídrica. O que uma coisa tem a ver com a outra, crise hídrica com pandemia? Tudo! Questão de cultura, educação, civilidade, auto respeito.
E aí vem o que comecei escrevendo lá atrás sob o título "A cidade brasileira e a pandemia".
- Precisamos imediatamente corrigir as condições sanitárias das populações pobres e miseráveis.
- o problema da água já era grave e tende a ficar pior se não forem tomadas medidas imediatas, inclusive a de retomar nascentes e cursos de água, zerar o despejo de esgoto neles
- descentralizar a geração econômica; precisamos sair do discurso para torna-lo realidade o mais rápido possível
- plano diretor é necessário, mas se temos plano diretor e a cidade segue crescendo caoticamente o que está errado?
- não seria interessante fazer os futuros planos diretores ouvindo especialistas em saúde pública? Se isto já vem sendo feito onde está a informação?
Onde moro, Recife, o patrimônio histórico da cidade está mais preservado que na média pois as posturas municipais advogam por isso pelos menos desde a década de 1960. Aqui ainda podemos, numa caminhada de 15 minutos pelo centro e alguns subúrbios,vislumbrar a cidade dos séculos XVIII, XIX e XX. Obviamente há muita pressão da especulação, mas ela sempre encontra algum grau de resistência.
ResponderExcluirMorei em Recife e anos mais tarde em Olinda. O respeito da população por estas cidades é de alma, dai a preservação não só do patrimônio urbanístico e arquitetônico, mas principalmente o cultural.
ResponderExcluirMe ocorre um comentário do pessoal do sul: a geração mais velha se sentem europeia, mas quando estão nos seus países de origem são considerados brasileiros até porque a língua falada por eles preservada com tanto carinho aqui não raro é incompreensível para os europeus por ser arcaica.