sábado, 21 de março de 2020

Saúde pública: reurbanização para o drama da Rocinha


Com crise do corona se fala na rapidíssima propagação do vírus em favelas porque as condições são propícias: baixa ventilação e insolação das residências, alto número de pessoas vivendo e dormindo juntas num espaço exíguo, esgoto correndo a céu aberto, não raro falta de água encanada, lixo e entulho não recolhido e outros mais. No caso específico das favelas do Rio de Janeiro a situação deve ser mais trágica pelos problemas já existentes na saúde pública. Pior ainda na Rocinha, um dos mais altos índices de tuberculose do país.
Faz muito tempo que fico imaginando e sonhando como se poderia fazer uma reurbanização nas favelas para melhorar as condições de sanidade urbana e das moradias. As leis brasileiras praticamente inviabilizam uma intervenção como a que foi feita em várias partes do mundo e em vários momentos da história, principalmente porque favelas são construídas em áreas invadidas e normalmente não há posse legal do terreno. Por outro lado, e dificultando mais, há o populismo, de todas as linhas ideológicas (são ideologias?), da esquerda à direita, cada uma com suas intenções, todas asquerosamente populistas com certeza absoluta. Estes aproveitadores só sobrevivem se "proteger" estas populações pobres lutando com todas as forças para manter o status quo. O mesmo em relação à educação. Favelado, analfabeto, doente e outros horrores mais são um puta negócio rentável.

Problemas de insolação e ventilação não é uma exclusividade dos mais pobres. A baderna no urbanismo e construção civil brasileira é histórica e inacreditável, e os problemas se sucedem. Exemplo fácil fácil são os edifícios altos construídos a beira mar fazendo sombra nas praias e cortando a ventilação do resto da cidade. Copacabana que o diga, burrice brasileira que se espalhou por praticamente todas as capitais litorâneas. Daí para frente temos infinitos exemplos de aberrações. O título do El Pais, jornal espanhol respeitado como um dos melhores do mundo, diz tudo: “Tuberculose na Rocinha expõe o Brasil que estacionou no século XIX ; Favela do Rio de Janeiro tem uma das maiores taxas de incidência da doença no país.”

Para conter revolucionários, por razões militares e sanitárias, dentre outras, foi criada a Paris que hoje todo mundo ama. Georges-Eugène Haussmann foi o responsável por mandar abaixo a Paris medieval e abrir novas e largas avenidas, ruas planejadas, espaços abertos de uso público, os ótimos sistemas de captação de esgotos, de águas pluviais, de distribuição de água tratada que funcionam com eficiência notável até hoje. Criou novos parques, construiu novos edifícios, deu um padrão moderno e eficiente para a cidade e a vida dos cidadãos. Os trabalhos começaram em 1853 e terminaram em 1870, mexeu com a vida de muita gente, deve ter criado inúmeros dramas, mas deu resultado. A saber, Paris recebe mais de 25 milhões de turistas/ano, o que rende mais de 25 bilhões de Euros/anos, nada mal; só por aí já valeu.

Algumas favelas estão para ficar. É impossível e impensável tirar uma Paraisópolis, uma Rocinha, ou outra favela que já virou cidade. Aí não é mais uma questão de legalidade ou não, de posse ou não. Em São Paulo são mais de 1.700 ocupações irregulares, com quase 400 mil residências e 11% da população paulistana. No Rio de Janeiro são 763 favelas com algo em torno de 1.4 milhão de cidadãos, 22% da população carioca. Não dá para mexer em tudo, mas é possível fazer intervenções pontuais para ir minimizando passo a passo os problemas mais graves. Faz muito tempo uma grande favela que não tinha lazer derrubou barracos, em comum acordo, para ter um campo de futebol. Em Heliópolis, São Paulo, foram feitas várias melhorias, de pintura das fachadas, construção de escola e centro cultural, onde está a Orquestra Sinfônica de Heliópolis. Há precedentes de melhoras, é possível fazer.
Mas um detalhe: um dia a TV Cultura teve que pedir autorização ao chefe do tráfico de Heliópolis para conseguir gravar a orquestra. Em outras favelas seria para as milícias, e aí vai. Fui fazer uma vistoria na favela do Sapê e não me permitiram entrar. Voltei anos depois e fiquei feliz que a favela foi mandada abaixo e em seu lugar construíram edifícios bem urbanizados. Portanto, para fazer melhorias é necessário contornar problemas legais, populistas, ideológicos, interesses comerciais, e finalmente ou não, conquistar os donos do pedaço. Difícil, mas definitivamente não impossível. Basta querer.
Nós, brasileiros, se pensarmos de forma mais sensata e racional realizaríamos melhorias para a vida coletiva e individual. Para isto tem que entender que tudo tem seu preço. Lembro da gritaria que se armou com a demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, dois famosos treme-tremes de São Paulo, que ameaçavam cair ou pegar fogo, como aconteceu com o prédio Wilson Paes de Almeida em 1º de Maio de 2018. Se demole é um crime, se pega fogo também é acusado de crime, mas se faz bem pouco se fala.
Em alguns casos se faz urgente ação. Tivemos recentemente uma profunda crise de água e se falou praticamente nada sobre as invasões que degradam e poluem represas e nascentes, inviabilizando a água servida para dezenas de milhões. Temos que ir atrás dos que comercializam desgraças e de alguns políticos que apoiam a loucura.

Há entidades civis fazendo um belíssimo trabalho para melhorar a vida destas populações vulneráveis, mas isto não basta. É necessário que haja uma política de estado para realmente chegarmos a resultados de qualidade que sejam perenes. 
O primeiro passo deveria ser pegar todos que fizeram estudos e já tem alguma proposta, todos que tem informação e experiência com o problema, colocar todos juntos com urbanistas, arquitetos, historiadores, sociólogos, engenheiros, sanitaristas, médicos, defesa civil, Chefe da Casa Civil, Secretários, órgãos estaduais e municipais... e favelados ou vulneráveis - repito - e favelados ou vulneráveis, para estabelecer um cronograma de ações. E agir.

Qualquer que seja o resultado deste cornonavírus sobre as favelas, os mais pobres e vulneráveis deste país não dá para continuar fechando os olhos para a barbárie instalada. Mesmo que as previsões estejam todas erradas melhorar a condição de vida dos necessitados é melhorar a saúde de todos, sem exceção. É provável que venhamos aprender isto da maneira mais estúpida.

Nenhum comentário:

Postar um comentário