quinta-feira, 5 de março de 2020

A perda de identidade de Joinville

Numa das vezes que tive que trazer novas bicicletas para o Museu das Bicicletas de Joinville dei uma entrevista para uma das principais rádios da cidade e no meio dela fiz um pedido para que os joinvilenses não deixassem que sua maravilhosa cidade, uma das belas e singelas do país, fosse mandada abaixo repetindo o absurdo que acontecera em São Paulo. A conversa sobre a importância de se preservar o patrimônio histórico arquitetônico se estendeu e no meio dela eu, de frente para a janela do aquário (traduzindo: estúdio da rádio) vi um funcionário vindo com cara preocupada, abrindo a porta, entrando, esperando os anúncios que entraram logo em seguida, momento quando se corta o som dos microfones, e dizendo em alto e bom som: "O que você (eu) disse sobre preservar a cidade causou uma série de telefonemas e ameaças. O pessoal está muito bravo. Estão dizendo que quem sabe sobre Joinville é o povo daqui e que paulista não tem que dar palpite. É melhor parar". Tivemos que checar se não havia ninguém me esperando do lado de fora da rádio para ir embora.

Nos primeiros anos que passei por Joinville fiquei fascinado com as casinhas e construções de época que faziam da cidade uma delicada poesia sobre a colonização alemã. Em poucos anos vi uma trágica transformação na cidade, com demolições e deformações as mais diversas. O conjunto de casinhas de meia parede em frente ao posto de gasolina foram mandadas abaixo para a construção de um imenso supermercado tipicamente americano, o primeiro de outros monstrengos sem alma, mas muito lucrativos, que pipocaram com total apoio da população. Joinville estava fadada a perder sua alma, e perdeu.

Não conheci a Joinville cidade das bicicletas, quando ao apito das indústrias as ruas ficavam congestionadas de operários ciclistas. Seguramente era mais linda e delicada, quem conheceu não esquece.

Estive em Joinville nestes primeiros dias de Março de 2020 e saio de lá com uma imagem muito triste. Destruíram a cidade. Modernizaram a cidade, e dizer isto é mais ou menos dizer que houve um atentado terrorista que transformou a cidade em um nada, em mais uma cidade tipicamente brasileira, sem nenhuma alma, cheia de vitrines, fachadas com grandes nomes, propagandas de todos tipos e formas, quanto maiores melhor, um visual sujo, grosseiro, medíocre, um ambiente pesado, um nada. O trânsito é simplesmente horroroso. As calçadas nem digo. Mesmo descontando a severa crise que estamos passando o que está lá é muito negativo.

A maluquice é que em São Paulo se começa a dar prioridade para manter e restaurar construções de época, o que é regra na maioria dos países. Quando a novidade se espalhar por aqui no Brasil nosso passado já terá sido desintegrado. Infelizmente mais uma vez os bons exemplos deste país são desconhecidos, desprezados ou repudiados em nome de interesses menores, mesquinhos, sacanas ou muito medíocres.

Curitiba dá incentivos interessantes aos que preservam ou mesmo mantém a fachada original. Curitiba evoluiu e continua sendo Curitiba. Eu fico nos Ibis que construíram os edifícios atrás da casa de época, mantendo-as originais, que nos dois casos são usadas como restaurante e sala de eventos, numa delas também como recepção. Há vários exemplos de edifícios novos construídos preservando só as paredes da fachada original. É uma forma de manter a identidade e memória local.

Não pensem que por trás das antigas fachadas históricas que se vê em belas fotos da Europa tudo está preservado como na época da construção. Em Bern, Suíça, fiquei numa casa construída literalmente em 1500, sim, no ano do descobrimento do Brasil. É óbvio que trocaram o piso original, instalaram um banheiro interno, e fizeram outras muitas melhorias, mas o espírito da casa e sua história está lá.

O primeiro choque de cultura urbana que tive foi em Palm Beach, Florida, uma das cidades mais chiques e ricas do Estados Unidos. Nunca vi tanto carro caríssimo junto circulando pelas ruas. Depois, e mais chocante, foi o caminhar na rua das lojas mais sofisticadas e caras, todas sinalizadas com pequenas placas de um metro por cinquenta, se tanto, discretamente penduradas na frente de casas de época com suas fachadas cuidadosamente preservadas. O contraste foi chocante com o que eu estava acostumado, imensas janelas em fachadas completamente deformadas só para chamar atenção nos produtos expostos e iluminados. Palm Beach que eu vi era zero shopping center e nota dez respeito pela alma da cidade. Uma questão de cultura, educação. 

Entrei no The Plaza, hotel então seis estrelas na 59th com 5°Ave. de NY, esquina em frente ao Central Park, vestindo como um meio termo entre um hippie e mendigo, com o porteiro em impecável uniforme desejando um bom dia. Aqui seria barrado na porta, como ouvi mais uma história ontem. Ou seja, não tem nada a ver com riqueza, mas com cultura e o respeito que esta traz para todos, inclusive pobres. 

Não sei como vamos para esta violência generalizada. Uma coisa é certa, não será com cidades degradadas. Infelizmente copiamos modelos de evolução que são completamente obsoletos. A filosofia "shopping center" está entrando em colapso em todo planeta. Aqui seguimos nela.

Como nossas leis de preservação são mais espertas que o rei fica difícil preservar e acaba não sendo rentável. O resultado é sabotar, quebrar umas telhas, deixar entrar água, ficar deteriorada, ser invadida, pegar fogo e daí obter autorização para a demolição, isto quando necessária.

O gran finale desta história é a geração de entulho, que é um dos maiores problemas ambientais que temos.

A perda de identidade de nossas cidades, portanto de nosso país, é rentável a curto prazo, mas já vem apresentando seus altos custos, que devem ser maiores ainda num futuro próximo. "Que país é este?" diz a música. Que país será?

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