quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Você se olhou no espelho hoje?

A menina de 14 anos esperou os pais dormirem e sorrateiramente abriu a porta do apartamento e caiu no mundo. Voltou às 4:00 h sem que ninguém percebesse. Aventurou-se por quatro noites seguidas e continuaria se o porteiro não tivesse achado estranho e avisado a mãe, que, óbvio, entrou em pânico. Deu um esporro de ópera italiana, primeiro sozinha, depois junto com o pai. A notícia se espalhou pela família; pânico geral. Uma menina bonita de 14 anos circulando pela noite nestes tempos de Brasil Urgente e outros do gênero é de apavorar qualquer família. Saiu com o namorado que tem mais ou menos a mesma idade, mais motivo para preocupação. Fu? Não! Ufa!
Tudo tem um outro ponto de vista: ela agiu. Quantas meninas, e meninos, choram ou gritam no quarto acatando as ordens dos pais e vão continuar assim para o resto das vidas. É o que mais acontece. Ela agiu com toda imprevidência típica da adolescência, mas agiu, teve atitude. Ponto para ela. Agora é ensinar como agir, o que é atitude, positiva e negativa, e com calma racionalizar os perigos. Racionalizar os perigos. O histórico de escola dela é muito favorável, mas acabou a escola e as lições, que por muito inteligente mata rapidamente, fica o dia todo no celular, sabe-se lá com quem. Perigo! Entre celular e rua, as duas situações com seus perigos, prefiro a rua, mas não tenho ingerência. Depois de assistir o Café Filosófico com Julieta Jerusalinsky sobre Intoxicações Eletrônicas na Primeira Infância não tenho a mais remota dúvida que prefiro os perigos da rua. Ela está com um pequeno skate pendurado na correntinha de pescoço. Opa, ponto positivo, torcendo para que não se quebre. Ralados fazem parte da vida. Gostaria que fosse para a escola, que não fica longe, em skate, mas quem sou eu para autorizar. "As ruas são um perigo... blá blá blá..." depende de onde sejam as ruas e qual o nível de consciência da skatista. Educação, não medo.

Fiquei sabendo que o careca que pedalou 1.000 km subindo e descendo 5 montanhas dos Alpeninos franceses foi levado para pedalar no Centro de São Paulo e ficou maravilhado com a experiência. Imagine se tivesse visto o Centro que vi nas décadas de 70, 80 e mesmo 90. O que hoje se diz sobre o Centro de São Paulo é em parte verdade: está sujo, cheio de mendigos e sem teto, está muito deteriorado, muitas construções pixadas, largadas..., mas é o Centro, tem muita história, é muito interessante, tem construções belíssimas, continua valendo a pena.
No meio social deste pessoal que viaja para Europa com frequência ir pedalar no Centro é uma loucura, tão loucura quanto uma adolescente passar a noite na rua ou ir para escola sozinha em skate. Já viver num enclave, atrás de muros altos, portarias, seguranças, shopping centers, clubes fechados, casa de interior em condomínio distante da cidade e vigiado 24 horas, não é. Intoxicar-se escondendo-se nas redes sociais (redes sociais?) do celular também não. 
Diz se no marketing que notícia boa é repassada 3 vezes enquanto notícia ruim é repassada 83 vezes. O medo generalizado bem mais que real é estimulado. O negócio da segurança privada não para de crescer. "Olha o perigo! Cuidado!" vale ouro, é líquido e certo. 

Gostaria de ter o desprendimento de uma figura que vai pedalando para a academia de um shopping com uma MTB de titânio de encher os olhos, e lá a estaciona sem qualquer preocupação. Não faço ideia, nem quero fazer, como me sentiria caso roubassem uma das minhas tranqueiras. Por conta disto hoje tenho medo de pedalar em certos cantos da cidade ou de ir para estrada. Olha que no passado pedalei por praticamente toda São Paulo indo muito além dos limites então ditos "seguros" do Centro Expandido. Hoje vou preocupado, com muito receio, mas com certeza que é muito mais neurose do que qualquer outra coisa. Tudo está mais perigoso, é certo, mas quanto? É tudo isto que falam? A vida continua.

Seguindo as recomendações de um conhecido que era da polícia criminal evito sair nos horários e locais prediletos pelos ladrões e assaltantes. Também evito (aliás, não gosto, não me sinto confortável) roupa de franga (roupas de ciclismo e capacete) o que diminui o interesse na minha bicicleta. Neurose? Com certeza. Quando entro na estrada luto para desligar das neuroses e aproveitar a bela paisagem. Estou cada dia melhor.

Quando soube da história da menina fugitiva fiquei com inveja, muita inveja, inveja da atitude dela. Tenho inveja dos ditos inconsequentes, dos que partem para a vida com sabedoria para viver. Olho para meus amigos e sei que sentem o mesmo. Poucos foram os que tiveram atitudes que valeram uma vida, falo das verdadeiras. As compradas são divertidas, mas não valem mais que lembranças risíveis. 

Você se olhou no espelho hoje?

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