quarta-feira, 5 de abril de 2023

Abismo cultural

Não entendeu a foto acima? Olhe de novo. Não entendeu de novo?

Foi olhando vitrines e entrando em boutiques de roupas femininas que me dei conta, mais uma vez, do tamanho do abismo cultural que vivemos. É preciso educação, cultura, treino e capacidade para ver a diferença, está aí a sutileza. 

Soeur, esta foi a boutique que me fez voltar a pensar. Não é alta moda, não é roupa show, é roupa para o dia a dia, simples, mas muito chique. Nunca acompanhei moda, muito pelo contrário, nem sou paparazzi de vitrine, simplesmente descobri que algumas lojas, ou boutiques, tinham verdadeiras obras de arte, e, de novo, aqui não falo sobre alta moda, grandes nomes, preços malucos, mas sobre a sutileza da criação de alto nível, de qualidade, que vale a pena parar e ver com cuidado.   

Uma das ditas obrigatoriedades culturais de Paris é bater pernas para ver a moda, e se tiver dinheiro comprar. Comprar?


Galerie Lafayette, tradicional loja de departamentos, uma das referências de Paris e da França, um dos pontos de visita obrigatória para turistas, vive lotada. Todas as grandes marcas estão lá de roupas, bolsas, sapatos, perfumes, cosméticos... Chineses e árabes fazem fila para comprar o lançamento de uma bolsa de $ 8.200,00 Euros, simples assim. Cultura? Nada sutil.


A diferença é visível entre uma senhora discreta e sutilmente bem vestida, chique, e uma que não passa de um cabide de marcas caras ditas chiques ou cópias destas. Vendo duas pessoas com roupas semelhantes com certa atenção é possível perceber a diferença de qualidade entre as duas, uma sutileza que faz toda a diferença, pelo menos para quem se interessa. 
É com tudo, não só com roupas, sapatos, bolsas. O abismo cultural é patente, basta olhar.


Viajei muito com foco na comida, na degustação. Não fui atrás de restaurantes Michelin, que devem ser ótimos. Por exemplo, minha lista do que comer em Paris veio do respeitado chef e dono de restaurante Charlô, nenhum deles Michelin, todos restaurantes locais, dos parisienses, a maioria lugares simples. A lista me chegou as mãos por uma amiga e não foi seguida a risca, até porque descobrimos alguns que conseguem ser melhores. A diferença da escolha está na preocupação com a gastronomia, com o saborear, não com o deslumbre, o ir para contar história quando voltar. De longe a melhor refeição que fiz na vida foi em Alaçati, Turquia, num pequeno restaurante de 5 mulheres e umas poucas mesas. Cozinha de outro planeta, perfeita, delicada, sutil, memorável, incomparável. 
Minhas melhores experiências nesta viagem foram pequenos restaurantes de bairro, não tanto pela comida, mas pela frequência. Um deles, em Lyon, será pela vida memorável. Começavam a servir comida as 19:30h, até lá o pequeno restaurante, ou café, estava lotado de famílias vizinhas ao local. Bateu 19:30h todos foram se retirando, uns com seus filhos pequenos, outros com amigos, para a chegada dos que iriam comer, uma cena deliciosa que fez da degustação outra coisa. A bem da verdade o jantar foi bem gostosinho, com gosto da boa comida caseira.


Não é porque se está em Paris ou Lyon, dita a capital gastronômica da França que se vai comer melhor do que aqui, Brasil. Não é porque se está na Itália que tudo será delicioso. Não é porque está nos Estados Unidos que o hambúrguer será perfeito. O bouffe da padaria em frente ao Pão de Açúcar da Ministro Rocha Azevedo é maravilhoso, muito melhor que a maioria dos restaurantes de lá, muito melhor alguns restaurantes lotados que estão em volta. A questão é uns são considerados chiques e outros estão na França. 


França vive cultura, vive da cultura, vive pela cultura, vive na cultura. Estabiliza sua economia no turismo cultural. Cultura é ao mesmo tempo busines e um imperativo para o avanço seguro de todos e aí a diferença entre estas duas ditas culturas é abissal. Uma está nos levando para o abismo e a outra é a única saída para tentar evitar a catástrofe que nos avizinha. 
Não vou falar sobre o Museu Nacional do Rio de Janeiro ter torrado, dentre outras barbáries que pouco afetaram nossas vidas brasileiras, nem sobre o estado de nosso patrimônio histórico. 

Paris, a cidade luz, o centro da cultura francesa e um dos centros históricos da cultura mundial, recebe uma barbaridade de turistas que passam os olhos nas infinitas belezas que esta maravilhosa cidade tem de sobra. A maioria vai aos pontos turísticos que são muitos; os pequenos detalhes passam desapercebidos, mas estão lá por todas partes e de todas as formas. O olhar médio de um visitante de museu é de 8 segundos por obra de arte, sim, 8 segundos, afirma uma pesquisa realizada em importantes museus. Não duvido, me coloco aí. Isto é e não é cultura ao mesmo tempo. Claro que ao visitar um museu olhando de passagem tudo se leva algo para casa e para a vida, se leva alguma cultura ou uma poeira da cultura. Perde-se a sutileza. É quase impossível ver de perto a Monalisa de Leonardo da Vinci porque há uma montanha de turistas na frente, alguns só preocupados em fazer selfie. É cultura e não é ao mesmo tempo, mas para algo serve, nem que seja para autoafirmação do visitante. Poucos sabem que Leonardo da Vinci fez mais outras versões da mesma obra, mas que importa, o negócio é ver pessoalmente a Monalisa famosa no Museu do Louvre, uma espécie de condecoração para a vida, um diferencial entre os simples mortais.

Na TV passou um longo documentário sobre a criação do Museu D'Orsay, da revolucionária estação ferroviária construída em dois anos para a Feira Mundial de Paris de 1900, sua decadência, a decisão de aproveita-la e não demoli-la, o genial projeto e a detalhada reconstrução que resultou no maravilhoso museu que lá existe. O documentário de uma hora de duração é recheado de fotos, filmes, documentos, depoimentos e análises, numa riqueza concentrada que torna impossível desligar a TV, pelo menos para quem se interessa. Esta aí a sutileza. 
A TV francesa tem uns cinco canais que vão desde um besteirol mais elaborado, com viés educativo, até a divulgação de cultura refinada. Na BBC da Inglaterra a mesma coisa, "n" canais, não sei qual delas mais refinada, deve haver uma competição. RAI italiana, também, no geral um pouco mais popularesca, mas com pelo menos um canal com ótimos programas sobre a vida e a história do país. Provavelmente a mesma política cultural deva se repetir em outros países, na Alemanha com certeza. Lá, TV também é cultura é para valer, tem verba, incentivo, verba para produção; tem público, este é o ponto, tem público.

A França foi o centro da cultura e da modernidade na virada do século XIX para o XX. Um outro documentário na TV, Paris: Les années folles, conta a história da vida social em Paris nestes anos da Belle Époque, mais uma hora prazerosa em frente a TV, sem censura, mostrando o que foi, e toca gandaia aí, uma festa sem limites que faz o que acontece hoje ser coisa de criancinha. 

São inúmeros os documentários, longos, detalhistas, consistentes, sobre todos temas possíveis. A história contada como nunca antes. 


A Biblioteca François Mitterand, um conjunto de quatro edifícios monumentais, um em cada canto de espaço de 80.000 m² de cultura, deveria ser uma visita obrigatória em Paris. A bem da verdade são poucos os que voltam de suas viagens contando que foi a uma biblioteca. Uns raros entraram numa livraria.


Na entrega das bagagens do aeroporto uma senhora vestida com um conjunto de um dos mais caros estilistas franceses espera suas malas portando várias sacolas de lojas de grife. A cena é muito ostensiva. Escondida atrás de um óculos grande e todo brilhoso, também de alta grife, um rosto repuxado com lábios preenchidos, o famoso 'pico de pato'. Restou duvidas aos que não tiravam os olhos dela, que é exatamente o que ela queria, se tudo aquilo era original ou camelô. 

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