quarta-feira, 15 de junho de 2022

Comentários sobre a carta resposta dos ciclo ativistas à ABRAMED

Usando o mesmo procedimento da carta divulgada pelos ciclo ativistas uso o texto original para dentro dele fazer comentários. A carta foi divulgada no link https://aliancabike.org.br/resposta-abramet/ e é possível que o tenha sido em outros links e sites.
Mais uma vez reforço que sou contra qualquer tipo de "nós e eles", não interessa se é de direita ou esquerda, ou de quem quer que seja.
Trate bem até seus inimigos mostrou-se na história como a melhor saída para entraves, mesmo os piores. Diálogo sempre foi e continuará sendo a melhor saída.

A carta divulgada:

No último dia 03 de junho foi celebrado o Dia Mundial da Bicicleta, estabelecido em 2018 pela ONU. Nesta data há um esforço de todos os ciclistas e organizações em celebrar as conquistas e os benefícios do uso de bicicletas, mas também de cobrar por mais políticas públicas assertivas.

Aproveitando a data e a abertura na imprensa, a Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (ABRAMET) divulgou uma Nota Técnica sobre sinistros de trânsito envolvendo ciclistas no Brasil. Não contente com a publicação da Nota, a entidade médica pautou o jornal televisivo de maior audiência no país, espalhando desinformação e culpabilizando ciclistas justamente no Dia Mundial da Bicicleta. Um desserviço de grandes proporções.

Não é de hoje que entrevistas dadas por pessoas ligadas à ABRAMET me incomodam. Estranho que só agora os ciclo ativistas tenham reagido.

Uma investigação correta não culpa ninguém, só aponta causas e possíveis soluções para evitar novos acidentes. Não é o que ocorre neste Brasil. Mais, parece não interessar que assim seja.

No meio da bagunça que vivemos, num momento em que o "nós e eles" se mostra profundamente destrutivo para todo país, talvez, repito, talvez seria apropriado em vez de apontar o dedo para o "espalhando desinformação e culpabilizando ciclistas" ir conversar com a ABRAMET para ver o que está acontecendo. Enfiar o dedo na cara do outro só serve para o próprio público. Vale para os dois lados.

Não obstante a gravidade dos dados em si (aumento de 11% nos óbitos de ciclistas entre 2020 e 2021), a ABRAMET apresenta um diagnóstico superficial e distorcido, fatores de risco equivocados no uso de bicicletas e pontua recomendações para prevenção de sinistros sem qualquer embasamento técnico.

Quais são os dados sobre os acidentes? Onde estão as perícias técnicas? O que elas dizem? Quem tem estes dados? Qual a qualidade destas perícias? Não duvido da qualidade do trabalho de nossos peritos, mas guardo direito de por em dúvida a qualidade da estrutura de trabalho que eles têm, o que influencia e muito os resultados. O simples fato de uma perícia demorar horas para chegar no local a ser periciado já não é o procedimento apropriado. E, não sei se as perícias que temos tem laboratório apropriado para verificar a condição mecânica dos veículos envolvidos no acidente, o que seria o ideal. Também não sei como fatores relativos à engenharia de trânsito são avaliados.  

Na Nota, a ABRAMET afirma que:

“dos ciclistas não é exigido nenhum tipo de habilitação oficial, grande parte desconhece a legislação de trânsito e com frequência violam suas regras”.

Sem sustentar com dados estas afirmações, a ABRAMET comete o erro gravíssimo de omitir as principais causas dos sinistros e dos óbitos no trânsito, que são as altas velocidades, a imprudência de condutores de veículos motorizados e a falta de infraestrutura adequada nas cidades brasileiras. Omite deliberadamente o fato histórico de que toda a infraestrutura viária planejada e construída, nos últimos 120 anos, está voltada à fluidez dos automóveis, marginalizando ciclistas, pedestres, motociclistas e o transporte público – responsáveis por 2/3 dos deslocamentos nas cidades.

“dos ciclistas não é exigido nenhum tipo de habilitação oficial, grande parte desconhece a legislação de trânsito e com frequência violam suas regras”. O que a ABRAMET afirma é fato. Os investimentos para a segurança dos ciclistas continuam centradas na "infraestrutura viária planejada e construída" e não na educação e treinamento para a condução da bicicleta e circulação na cidade ou qualquer outra via. Violação de regras (CTB) é fato frequente
"Altas velocidades" e "fluidez dos automóveis" é causa óbvia de acidentes e desconforto para pedestres e ciclistas, nesta ordem, mais pessoas com deficiência de mobilidade, mães, crianças... o que não é citado nesta carta. Como se deve saber a redução de velocidade do trânsito também tem relação com acalmamento de trânsito, o que não é exatamente "infraestrutura para segurança dos ciclistas", mas infraestrutura para a vida de todos, incluindo ciclistas.
De novo, um discurso permanentemente acusatório só dificulta o diálogo e a abertura de caminhos para soluções.

Incluir motos junto com transporte público é complicado. Se moto está, deveriam estar incluídos táxis, vans de transporte... 

Também no mesmo documento, a ABRAMET sustenta que:

“Aqueles que se deslocam através de bicicletas têm oito vezes maior probabilidade de morrer em um sinistro de trânsito do que ocupantes de um veículo de passeio, sinistralidade superada apenas pelos deslocamentos a pé nove vezes e por motocicletas 20 vezes”

A obviedade de se afirmar que uma pessoa dentro de um veículo de 1 tonelada de aço tem menor probabilidade de morrer do que outras que estão apenas com o seu corpo no trânsito só reforça o equívoco da Nota da entidade médica. Se caminhar e pedalar, no Brasil, é 8 ou 9 vezes mais perigoso do que andar de carro, o problema não está no caminhar e no pedalar, mas em todos os fatores que tornam o trânsito brasileiro um dos mais violentos do mundo.

Por que não há mortes no trânsito na cidade de Afuá (PA), por exemplo, onde carros e motos são proibidos de circular? Uma obra do acaso?

O documento ainda aborda o uso de equipamentos como o capacete e aponta os trajes mais adequados, como indicações “para que o transporte por bicicleta se torne mais seguro para o condutor e todos os usuários do sistema de trânsito”.

A ABRAMET fala há muito sobre capacetes sem ter procurado e lido documentos científicos e oficiais de governos europeus sobre o assunto, o que coloca em dúvida os posicionamentos desta entidade sobre o uso de bicicletas como modo de transporte. As entrevistas que vi e ouvi dos membros da ABRAMET apontam, sem dúvida, um olhar míope. Em alguns momentos tive a sensação de um certo corporativismo. 

Onde não tem automóveis e só tem bicicletas é impossível que se tenha mortes por colisão com automóveis. Onde só tem pedestres e ciclistas circulando provavelmente devem acontecer atropelamentos (de pedestres, é óbvio) e outros acidentes envolvendo veículos (bicicletas, está no CTB), inclusive entre ciclistas. Ou será Afuá o paraíso na terra? 

Ora, mais uma vez a ABRAMET inverte um conceito básico da segurança viária já consolidado em nossos marcos legais, como o Código de Trânsito Brasileiro e a Política Nacional de Mobilidade Urbana, onde os veículos de maior porte devem ser sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pela segurança dos ativos.

O uso do capacete é uma escolha individual e evidências científicas apontam que ele é um equipamento importante para alguns casos de menor impacto (como quedas) e não em colisões com veículos motorizados em alta velocidade. Ainda que todos(as) ciclistas pedalem com armadura ou envoltos em plástico bolha, o trânsito continuará violento e os índices de morte continuarão os mesmos – inclusive para ciclistas. Mais uma vez é preciso reforçar: no trânsito, a culpa não é da vítima.

Algumas pessoas que assinam esta carta à ABRAMET até pouco tempo eram defensoras ferozes do capacete para qualquer uso, portanto apoiadores da opinião da ABRAMET. Ótimo que tenham mudado de opinião. Quem sabe a ABRAMET vindo a ser bem informada também mude de opinião não só sobre o capacete.

A determinação sobre quem é vítima só pode ser estabelecida através de uma investigação meticulosa e precisa. Volto a que infelizmente nossa perícia técnica trabalha em condições não apropriadas. Infelizmente não se consegue apoio e pressão para melhoria de condições da perícia técnica e dos legistas. Não se consegue apoio sequer dos mais interessados que a verdade venha a tona.

Levantamento da Aliança Bike, com base em mais de 2.500 laudos de criminalística de sinistros de trânsito em todo o Estado de São Paulo (entre 2015 e 2016), revelou que de 162 laudos de ocorrências que culminaram em morte de ciclistas, somente três casos (1,85% do total) a imprudência do(a) ciclista foi apontada como causa. No demais casos (98,15% do total), as mortes têm relação com infrações de motoristas como desrespeito aos limites de velocidade, conversões proibidas, alcoolemia, entre outros. Ainda, a falta de iluminação pública, ausência de sinalização e problemas estruturais nas vias também foram apontados como causadores das mortes.

Os dados são muito evidentes: a culpa das mortes de ciclistas não é dos ciclistas. Não é do não uso de capacete, nem da falta de habilitação para ciclistas. A culpa de quem é alvejado por uma bala perdida não está na ausência de colete à prova de balas. A culpa de uma vítima de estupro não está nas roupas que usa.


Desculpem, mas não entendi bem o "com base em mais de 2.500 laudos de criminalística de sinistros de trânsito em todo o Estado de São Paulo (entre 2015 e 2016), revelou que de 162 laudos de ocorrências que culminaram em morte de ciclistas"2500 : 162 = 0,095. Ok, entendi que a quase totalidade dos acidentes foi responsabilidade dos motoristas. Não houve caso com motociclistas? Quantos veículos particulares? Quantas SUVs? Quantos veículos grandes como vans, ônibus e caminhões? Quantos bêbados? Qual o diferencial de velocidade? Parecem detalhes, mas faz muita diferença na busca de uma solução. 
Quais são os outros detalhes sobre estes acidentes? Quantos e como influenciaram nos acidentes?
É de conhecimentos de todos que os dados sobre segurança no trânsito são pouco confiáveis. As distorções começam nos B.O.s e terminam no laudo final e decisão da justiça. Mais, 35% dos acidentes, mesmo com vítimas, não são reportados. E os incidentes, aqueles sem vítimas fatais?

Pelas razões acima apresentadas guardo o direito de questionar o que está afirmado acima. E voltando ao início quero lembrar que muito da irritação profunda da sociedade em relação ao comportamento dos ciclistas vem do que vem acontecendo nas ruas onde entregadores fazem o que bem entendem, circulam sem respeitar regras e não raro se envolvem em incidentes e acidentes com pedestres. Não é de estranhar o discurso dos membros da ABRAMET em relação aos ciclistas, dado que, imagino eu, eles também sejam pedestres e, também imagino eu, não sejam tão ciclistas quanto os que assinam esta carta.

Afinal, quem são os membros da ABRAMET?

À Associação Brasileira de Medicina do Tráfego, é preciso se atualizar sobre os dados, sobre conceitos básicos e conhecer a luta de décadas de quem busca um trânsito mais seguro, visando zerar as mortes e não justificá-las a partir da culpabilização das vítimas.

Culpar ou desculpar não serve a ninguém. "Nós e eles", melhor escrevendo "nós ou eles", só perpetua erros. Diálogo é a melhor saída.
Para terminar: pouco ou praticamente nada se fala sobre educação e não há saída desta balbúrdia que vivemos que não seja pela educação, que aliás começa pela informação correta, precisa.  
O uso da bicicleta como modo de transporte mostrou ter uma função social e urbana muito maior que simplesmente a questão do transporte ou mobilidade, mas estas qualidades só são alcançadas com equilíbrio, que é exatamente uma dos benefícios que a bicicleta oferece a seus usuários. 
Por incrível que possa parecer "os outros" são tão humanos quanto qualquer ciclista.

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