A casa estava sempre aberta para receber quem chegasse para os almoços, os de conversa boa para qualquer gosto, os quietos, os ouvintes e até os chatos. Arroz, feijão, verduras, uma carne e o luxo da batata palha feita na hora que era para poucos, uma espécie de selecionador de quem era quem. Sentar-se a mesa também separava os que eram considerados da casa com os sempre bem-vindos penetras. Na conversa ia de tudo, menos futebol que só mui raramente era citado. Proibido só política, a não ser fatos risíveis por qualquer um, os de cá e os de lá. Havia certo cuidado também com as fofocas da e sobre a família, a bem dizer de quem quer que fosse. Línguas venenosas eram ouvidas, risadas dadas, e por aí se encerrava a questão. Não escapavam as notícias do trabalho recheadas de fofocas, estas sim fofocas das boas e estimuladas. Aos amigos tudo, ou pelo menos o maquiavelismo necessário para o momento e o conviva com quem se troca palavras.
Quem não ia para a mesa ajeitava-se onde podia, mas em outra sala ou ambiente. A sala de jantar era justa para os que ficavam a mesa que ali se sentava e ficavam, e para o aparador encostado na parede ao lado da porta com as tigelas fumegantes. A conversa da mesa convenientemente esfriava ou delicadamente mudava de tom dependendo de quem ia se servir, como se daqueles tronos saíssem o destino julgado dos que estavam na casa.
Ria-se muito, este é um dos segredos de casa de portas abertas. O outro é comida quente, farta e cheirosa, isto todos sabem. Piadas, comentários maldosos, cutucadas eram comuns, o que de certa forma servia como uma espécie de porteira de burro. Não havia fazendeiros sequer sitiantes, ninguém que fosse da terra, mas todos sabiam que de burro o burro não tem nada. Num dos almoços foi feita a pergunta se alguém sabia por que burro é usado para se referir aos estúpidos. Burro é muito inteligente, respondeu alguém, mas recebeu esta alcunha porque é mais inteligente que cavalo e volta e meia, completou outro, acaba não obedecendo todos comandos. Não adianta cochichar nada naquelas orelhas quentes e duras que ele não desempaca pincelou outro conviva. Ficaram em silêncio por um instante meditando a seriedade da questão e alguém disparou uma gozação sobre cochichar na orelha do português da venda e riram. Outra história veio à baila.
- Cheguei em Lisboa, entrei num taxi e perguntei ao motorista "O senhor poderia me levar para o endereço tal?" "Boa tarde. Sim, posso" e continuou parado. Eu disse "Então vamos. Porque estamos parados" e o português respondeu "O senhor perguntou se eu poderia e não se posso". Eles são completamente literais.
- E levou (para o hotel)?
- Levou, mas quando chegou lá estava bravo com meu "poderia". Ainda me passou um sabão falando sobre nós, brasileiros.
Gargalhada geral. Uns sentados na sala levantaram-se foram lá ver o que se passava, uns riram junto sem saber bem sobre o que se tratava, outros pela obrigação social que o bom prato de comida oferecido demandava. Houve os que mesmo de longe ouviam atentos e riram sem deixar suas garfadas. Força do hábito. Mineiro come quieto.
De longe, sentado no sofá com o prato na mão, veio um comentário mais aprofundado depois que todos se acalmaram. Fala um pouco mais alta, em tom de quem resmunga, citou a literatura portuguesa. Poucos da mesa ouviram, menos ainda foram os que levantaram as orelhas para prestar mais atenção e quem sabe responder. Quem estava sentada no mesmo sofá enfiou mais ainda a cara no prato e passou a comer boca cheia olhar vago para a porta da cozinha que se vi lá no fundo da casa. Como ninguém ouviu, insistiu nem que fosse para ser ouvida pela companheira que estava no sofá. Chatos devem serem ouvidos. Com estes treinavam a paciência. Alguns eram verdadeiras aulas de cultura e sabedoria, outros de imbecilidade, e ainda há os chatos chatos que é bom dispensar rapidamente, mas ali era almoço de casa aberta a qualquer um, e que se respeitasse isto.
O convívio com chato tem data e tempo limite ou se enlouquece, mas a casa estava sempre aberta. a qualquer um inclusive os chatos. Chatos têm que vir em parcelas para serem digeridos, mas com habilidade o espírito do almoço controlava bem situações fora do esperado, chatices a bem dizer. Sabiam que a chatice expõe muito de um lado interessante da vida, como o caminho que não se deve seguir ao se comunicar com os outros. Muitas vezes são chatos por irremediavelmente atrelados à realidade do dia a dia, ao raso da vida. Dizem que na vida há dois tipos de conversa, a dos que só falam de pessoas e os que falam sobre outros assuntos. É a forma, a intensidade e a dose que define a chatice. Não importa, a casa estava sempre aberta e mesmo o que poderia ser uma chatice se transformava em boa conversa fiada, sem sentido talvez, mas interessante, tanto que não raro nem o bom cheirinho que exalava da cozinha não parava o falatório.
- A comida está servida e vai esfriar. Por favor continuem a conversa com o prato na mão; demandava a sempre sorridente dona da casa.
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