Mãos saíam abanando das janelas do ônibus que ululava em coro monossílabo o grito de guerra do time que jogaria mais tarde no Pacaembú. Dois ônibus, inúmeros torcedores uniformizados e entulhados no meio de trabalhadores e gente do povo, num calor e suor agressivamente festivo pronto a explodir. Da janela ao lado do cobrador, de uma destas mãos voou certeira uma laranja no peito da senhora que descia a avenida pela sombra das árvores. Sem entender o marido ouviu o barulho seco e surdo, a viu curvar-se, ajoelhar-se e desandar a chorar de dor mal respirando. O sinal fechou e os ônibus pararam cheios de festa. Ela gritou para o marido com ódio do fundo de suas dores apontando para o ônibus.
- Pega o filho da puta! e vendo a laranja no chão, a sujeira na blusa e vê e o vermelhão que queimava saiu correndo atrás do ônibus que parado pouco a frente. Na esquina três PMs conversam. Um vê o homem correndo para os ônibus e batendo enfurecido na lataria. O PM o afasta do ônibus e pergunta o que houve. Os dois outros PMs se aproximam. Enfurecido aponta para sua mulher que caminha rosto transtornado e os PMs agem.
- Abre a porta e desliga o motor; pede um PM ao motorista enquanto o outro para a frente do ônibus mão estendida e fecha todo trânsito.
O PM entra no ônibus seguido pelo marido. Acabou a festa, não se vê mais torcedores fanáticos, mas jovens em camisas do time assustados, em silêncio e alguns de cabeças baixas comprometedoras. Alguns trabalhadores que voltam para casa olham para os PMs como que pedindo para tirar toda aquela turba dali para seguirem na merecida paz para o trabalho ou suas casas.
- Quem foi? Quem jogou a laranja na mulher? fala com voz firme e alta, sem grito, o PM. Não há resposta.
- Quem foi? Repete agora num completo silêncio. Vê-se na cara dos trabalhadores um olhar de medo do que poderá vir a acontecer.
- Vocês não vão calar? Não vão passar a vergonha de ver uma mulher agredida e silenciar? fala forte o marido. O PM segura firme no seu braço e manda ele ficar quieto. A mulher chorando com seu peito muito vermelha entra pelo corredor, só alguns olham. O outro PM a contém. Silêncio, constrangimento, medo, raiva, indignação. Nem uma palavra.
O marido fica ao lado dos garotos que estão sentados no meio do ônibus grudados na janela, visivelmente expressam culpa. Um deles, petrificado, aperta as cochas como escondendo algo redondo que se pode ver. O marido para ao lado e fala sobre a agressão. Silêncio total.
Os PMs andam lentamente pelo corredor. Silêncio total.
- Ninguém se acusa, ninguém denuncia. Não podemos levar todo ônibus para a Delegacia.
- Como assim? Olha o estado de minha mulher! diz apontando a blusa suja e o vermelhão redondo que até de longe emana dor.
Todos passageiros olham para frente. Só ouve se os motores e uma buzina do trânsito parado. Silêncio conivente. Olhares mortos. Silêncio. O PM passa os olhos sobre os garotos uniformizados. O marido acha que sabe quem é, e provavelmente deve ser. O PM com sua prática diária tem certeza; está na cara, mas não pode fazer nada, não tem autoridade para tanto, não tem lei que o garanta, e até pelos companheiros de farda não fará. Assim é, ponto final.
- Motorista, por favor, abre a porta de trás. Vocês, diz apontando para o casal, nos acompanha, por favor. Descem em silêncio. Na calçada o PM cercado pelos dois outros PMs se explica.
- É a lei.
Abre o sinal e seguem os ônibus em silêncio com o trânsito. É assim.
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