No cruzeiro para Genova notei um casal de negros que sempre ficavam meio de lado, meio esquecidos, sentados numa mesa vizinha. Seus companheiros de mesa deviam ter outros horários, nunca os vi por lá. Nos primeiros dias da viagem ficamos sentados no almoço com quem era designado sentar pelo navio, um casal classe média da Nova Zelândia que falava um inglês difícil de entender. Com eles e com a mesa mais próxima a conversa insossa sempre, o que era de se esperar de casais daquele nivel social em viagem pelos mares. Para eles tudo era deslumbrante, nada além do que vivenciaram em outras viagens, lugares maravilhosos segundo cada um, filhos, netos, a vidinha do dia a dia, e principalmente sempre voltando ao ponto de quantos cruzeiros cada um ou casal havia feito, uma competição pela maior estante de troféus.
Almoçávamos cedo, dos primeiros a entrar e sentar no restaurante. O casal negro também. E ficávamos sós, cada um em sua mesa. Começamos a trocar conversas a distância, mas perdíamos parte do falávamos pelo tagarelar alto de outras mesas. Pedi e trocamos de mesa. Sim, se deve pedir ao metre, é tudo muito organizado, ou o que seja.
Cariocas, eles são cariocas, casal carioca, bem carioca, conversa livre de quem juntou para estar lá, gente que não diz, mas está deslocada, meio perdida, pronta para o que vier. E lá se foram as curiosidades de ambas as partes, sem preocupações com limites, mas guardando limites. Desbocados, mas com cuidados, conversa de botequim. Onde moram, filhos, trabalho, para onde vão..., todas as perguntas triviais, mas agora cheias de curiosidades mais profundas. O resumo poderia ser: como é o planeta de vocês?
Chegamos a Genova e nos cruzamos uma última vez empurrando as malas pelas calçadas esburacadas. Agradeci mais uma vez o livro que ele me deu, de sua autoria. Quis marcar um jantar, mas a viagem deles era corrida, toda estabelecida previamente. Confesso que senti. De volta ao Brasil li o pequeno livro de sua autoria. Forte. Histórias com final não feliz. Gostei, só senti tê-lo ganho já no momento do desembarque. Tivesse lido durante a travessia teria muito a conversar.
Aeroporto de Montreal.
Cena um:
- Você vai tomar expresso aqui?
Estávamos no gate, com tempo para o embarque.
- E por que não?
Foi um melhores expressos que tomei na vida. Um não, dois. Vale a lembrança.
Cena dois:
Terminado o segundo e delicioso expresso, que não faço ideia porque tão bom, fomos nos sentar um pouco mais distante, fora da confusão criada pelos ansiosos. Sentamos nas duas primeiras cadeiras da fileira. Logo em seguida vem um senhor acompanhado por quatro homens um pouco mais jovens e sentam ao lado. Caixa de instrumento musical com eles, pergunto idiota se são músicos, e a partir dali começamos uma conversa sobre vida de músico, família, viagens, como se nos conhecêssemos há tempo. No som do aeroporto avisam sobre o embarque dele que se despede e vai.
Em NY, já no quarto do hotel, malas ainda fechadas e TV já ligada nas notícias para pegar embalo no inglês. E a cara do senhor com quem conversei no aeroporto de Montreal entra sorridente em tela cheia, Chick Corea, show de ingressos esgotados em Boston.
Voo para Roma. Diabético sento na última fileira, poltrona do corredor, próximo à água e ao banheiro. Ao meu lado um senhor e uma senhora que não abrem a boca. Ela se atrapalha e ofereço ajuda em inglês, acabo descobrindo que é brasileira. Ele coloca o mapa da viagem na telinha e gruda os olhos nela da decolagem até a aterrisagem. UAU! Na parca comunicação acabo sabendo que ele é juiz de comarca de cidade média grande e ela orgulhosíssima de não fazer nada na vida a não ser ser orgulhosíssima do marido, homem muito respeitado em sua cidade, segundo ela, meio perua, agitada, desesperada com a perda de seus óculos "muito caros". "Deixei na loja onde comprei esta bolsa", diz remexendo tudo.
Onze horas de viagem, decolamos, não importa como eu tente engrenar numa conversa para passar o tempo, não há forma, dali não sairá inteligência. O que mais me espanta é que há um abismo de vivência entre nós dois. Não me sai da cabeça que um respeitado juiz de uma cidade relativamente grande possa julgar algo com menos estofo do que tenho. Lembro do jornalista da Rádio Bloomberg que conheci em Nashville, um sujeito de conversa rica, pensamentos claros, objetivos, um dos poucos que ficou no ar no pós 9/11, mas quando perguntei o que conhecia de Europa ele respondeu que só esteve na Espanha por uns dias como turista. A resposta, dada como a coisa mais normal do mundo, para mim foi espantosa. Como pode um dos respeitados jornalistas dos Estados Unidos ter uma visão clara de seu próprio país se praticamente nunca saiu dele. Como pode um juiz julgar alguns processos se o nariz dele nunca desgrudou do código civil?
Na primeira fileira, lá longe, na outra ponta de onde viajo, levanta o alto Demétrio Magnoli. Comento com o juiz, que não faz ideia de quem se trata. Acho estranho, mais que isto, meio deprimente. Não o culpo, sou tão ignorante quanto.
Encontro com Magnoli na porta do banheiro. Trocamos breves frases. Incrível, ele conheceu meu irmão. Espero que um dia tenha a sorte de parar e conversar. A questão aí será controlar minha admiração e respeito para fluir a conversa.
Roma. Sou levado a um jantar na casa de um respeitado diretor teatral. A conversa é muito rica, ouço quieto dentro de minha ignorância. Final de jantar entram numa discussão sobre política, todos de esquerda, mas cada um em sua esquerda, ou em seu discurso conveniente para a situação e para o anfitrião. Ninguém cruza as palavras do outro, ninguém levanta a voz, as posições são colocadas na mesa com civilidade. É uma troca de ideias. Como foi bom. Só o tiramissu não valeu a pena, mas foi caro, eu que levei.
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