quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O ódio como princípio

A briga entre os dois foi num crescente até virar uma carnificina judicial. A cada movimento de um, mesmo que inocente e inconsequente, seguiu-se uma reação enlouquecida e consequente do outro, numa batalha judicial sem fim, não por um resultado que colocasse fim às dores próprias, muito menos do outro, mas provasse a todos os não involvidos quanto era grande o ódio pelo outro e como este seria destruído.
E um dia veio de um amigo a pergunta: "Bom, e daí, quando você conseguir exterminar, o que vai fazer de sua vida?" Não houve resposta, mas um profundo silêncio. Levantou um pouco a cabeça, mais permaneceu em silêncio doloroso, com olhar perdido e aí, confuso, respondeu com voz engasgada: "Como assim?".

O ódio como princípio governou a humanidade por toda a história. Mesmo o surgimento da imprensa e com ela o espalhar dos conhecimentos a situação pouco mudou. Pouco ou nada interessa buscar conhecer um pouco das razões do outro, ou bem mais complicado, das próprias razões, muito mais simples, fácil e imediatista é continuar sendo quem sempre foi. O culpado sempre é o outro que não sabe nada.  

Você sabe com quem está falando? Impossível dizer quantas vezes ouvi esta ameaça, poucas direcionadas a mim, 'n' impostas a um terceiro sempre mais frágil ou pobre. Deprimente. Quando dita com todas letras ou quando insinuada.
O ódio como elemento de poder, eis a questão. Sociedade com resquícios escravagistas. Manter o poder a qualquer custo, nem que seja no blefe.
A frente um senhor de vestes simples que desceu do ônibus vindo da periferia joga um plástico no chão. A jovem que vem atrás pega no chão,  dá uns passos rápidos, toca no ombro do senhor, que se vira.
- O senhor deixou cair isto, diz ela estendendo o plástico para ele.
- É lixo, pode jogar no chão, responde ele
- Tem uma lixeira logo ali, diz ela desgostosa 
- Joga aí no chão,  minha filha, que lixeira pega.
- Mas o lixo é logo ali...
- O menina, você sabe com quem está falando? responde ele muito irritado.

Chove torrencialmente, os semáforos apagaram. Um funcionário da CET e um homem novo conseguiram soltar o nó que havia se formado e o trânsito no importante cruzamento da avenida voltou a fluir. Todos respeitam os dois que ensopados tentam ajudar. Mas vem um carro bonitão, não respeita o homem, passa perto e quase atropela. O homem xinga e gesticula. O carrão freia, engata a ré, chega perto, abrem-se as portas e descem dois que aos urros se dizem policiais. Caminham ameaçadores em direção ao homem. Passam por senhor muito bem vestido, bela capa inglesa e guarda-chuva na mão.
- Ou vocês dois entram no carro e desaparecem, ou vão terminar dando uma voltinha comigo, e não vão gostar, diz ele com voz calma, firme e baixa.
Os dois param, olham assustados, dão meia volta, entram no carrão e somem.
O homem que ajuda no cruzamento vai agradecer, o senhor com a mesma voz impassível pede que ele volte para casa e tome um banho quente.
- Você já ajudou muito. Cumpriu seu dever.

Todo domingo tinha uma pelada no campinho da USP. Nos reuníamos, contávamos as novidades, dividíamos para lá e para cá e começava a diversão. Um outro um pouco mais afoito, uns poucos levando mais a sério e Sílvio (nome fictício). Homem educadíssimo antes de começar a partida, cheio de gentilezas, formalidades, mas bastava começar a partida e demora se transformava num monstro, no jogador mais desagradável possível. Jogava muito bem, com certeza dos melhores, e olha que no timinho de amigos jogavam ex profissionais de times grandes, Palmeiras inclusive. Foram muitos domingos desagradáveis, terminada a partida e cada um para seu canto sem que ninguém falasse uma palavra para o estraga prazeres. 
Um dia ele realmente passou dos limites e quase partiu para a agressão física. Foi peitado por um dos jogadores que colocou as mãos para trás e disse que ficaria só na conversa, que se ele, Sílvio, quisesse que o espancasse, mas não reagiria. Silvio picou a camiseta do desafeto e saiu de campo para nunca mais voltar. 
Meses depois descobrimos que ele foi jogar com o pessoal que jogava a sério, em campo oficial, tudo jogador do Desafio ao Galo, zero brincadeira. E, triste, descobrimos quando um dos ex profissionais que se divertia junto com a gente o viu, de fora do campo, ele ser espancado por 21 dos que estavam na partida, ou seja, todos dos dois times, o de Sílvio e o outro. Acabou na UTI. Quem o viu diz que voltou aos seus dias, ou momentos, de extrema gentileza e educação.

Como frear uma pessoa que tem um ódio incontrolável? 
Depois da cadeira voadora fica a pergunta: como distinguir ódio incontrolável de canalhice aproveitadora completa?
  

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