Passando pela garagem algo chama a atenção do despreocupado pai. Ele diminui a passada, olha para os dois carros que estão lá como foram estacionados. Tenta entender o que chamou a atenção e nada vê. Volta a caminhar, sob a pequena escada e antes do último degrau para novamente e fica pensando. Dá meia volta, caminha para a porta da garagem e olha com mais atenção ainda não entendendo o que está errado. Percebe a falta de uma bicicleta no gancho, a sua bicicleta. Onde deixei? pensa, e sai caminhando pelo jardim da casa procurando. Volta para a garagem, entra, olha atrás dos carros, abre uma porta, procura, nada. Sai da garagem, volta para o jardim, fica parado por uns minutos na boa sombra. Pensa, tenta lembrar onde poderia tê-la deixado, não consegue lembrar, tudo o que lembra foi ter voltado pedalando, entrado em casa com compras, ter deixado as sacolas do supermercado sobre a mesa e... pendurado a sua bicicleta. Volta a garagem, fica parado, imóvel, entre os dois carros olhando para as outras bicicletas penduradas na parede sem entender o que fez com a sua.
Chama com voz acentuada a sua mulher, depois o pai, a mãe e sogra. Ninguém viu a bicicleta. Brincadeira deles? Não parece que estejam brincando, mas irritado e intrigado ele desconfia. A brincadeira está ficando desagradável. Onde está a bicicleta? Questiona os filhos pequenos que brincam no jardim. Ninguém viu. Sai a procura dela por todos cantos, por todos os cômodos da casa, sala, quartos, banheiros, parte para suposições absurdas, abre armários, olha debaixo das camas. Nada.
Os cachorros não latiram. Estranho. Vai até o portão de entrada, anda pelo muro, procura um rastro, uma mancha, sujeira, marca que denuncie o roubo, alguma planta quebrada, grama amassada, nada. O pai pede para ele se acalmar, sentar um pouco e tomar uma água, um café. Pare um pouco que logo vai se lembrar onde deixou a bicicleta. Ele obedece e se acalma. A família está em volta e não para de fazer perguntas, levantar suposições e dar sugestões. Ele se levanta mais irritado e enquanto se afasta sai pedindo para pararem. Vai para a sala, senta no sofá, liga a televisão e fica lá, quieto, respeitado pelos seus. Não demora muito se levanta e vai para fora da casa e procura com mais cuidado pelos muros. Acha uma marca ali. O pai diz que aquela marca sempre esteve lá. Não adianta, ele, o ciclista, tem certeza, foi por ali, levaram a bicicleta e levaram para o vizinho, e de lá foram para rua. Na parede do vizinho, velho amigo, não há qualquer coisa que indique que a bicicleta tenha sido carregada por ali.
No dia seguinte o filho mais velho, pré adolescente, está sentado quieto na cozinha para tomar café. O primeiro a sentar para o café da manhã? Estranho. Estou bem, ele responde ao pai com um sorriso maroto. Os dois tomam café da manhã no habitual silêncio, o pai estranhando o comportamento do filho. Meio tempo chegam as outras crianças, uma adormecida e de mal humor, a outra falante, desperta, ativa, que não para de provocar seus irmãos. O pai pede que peguem suas mochilas da escola ou vão se atrasar.
Saem para a garagem, o pai destrava as portas do carro, falta o mal humorado, o pai dá um grito, o garoto aparece quase arrastando a mochila. Todos no carro, o pai dá a partida, engata a ré, manobra com cuidado e para no meio da rua se perguntando o que está faltando, o que está estranho. O mais velho, sentado ao lado do pai, pergunta rindo "o que aconteceu?". O pai, olhar perdido, responde "nada, vamos embora", e segue em frente sem entender o que está diferente.
Deixa os meninos na escola e volta para casa. Tomar banho, fazer a barba, vestir a roupa de trabalho, o de sempre. Entra na garagem, estaciona o carro, fecha a porta, entra em casa e se prepara, ainda intrigado com a forte sensação de estranheza. Pronto para o trabalho, entra no carro, coloca a chave no contato e congela o olho nas bicicletas. Estão todas lá, inclusive uma que está pendurada no lugar da sua. Olha com mais atenção, não é a sua velha e surrada bicicleta, é uma nova, linda, a bicicleta que queria comprar.
Desce do carro, vai acordar a sua mulher, pergunta a ela ainda sonambula que diabos é aquela bicicleta nova. "Não sei. Não fui eu". Ela se levanta da cama e vai com ele ver o que acontece. Ficam os dois parados na garagem olhando a bicicleta nova, linda. Ele procura os pais e a sogra. Ninguém sabe como aquela bicicleta foi parar lá. Ele não entende nada, acha que estão brincando. Que seja. Hora do trabalho. Entra no carro e vai.
O mistério permanece até o dia seguinte. Café da manhã, a mesma coisa de sempre, mas o mais velho, pré adolescente, quieto e com um expressão inusual. Peguem suas mochilas ou vocês vão atrasar. Entram no carro, o pai liga o motor olhando curioso e feliz para a nova bicicleta. Dá a ré meio desatento. O pré adolescente chama a atenção dele, "para de olhar para a bicicleta ou vai bater o carro". E não se contendo pergunta para o pai "Gostou dela?". "Muito, mas nem sei se é minha", responde. "Vai sentir falta da sua velha?". O pai intrigado responde que sim, vai sentir saudades, mas tudo na vida um dia termina.
A noite, com todos já dormindo, a mãe senta com ele no sofá e conta o que aconteceu. O filho mais velho descobriu que o pai de um amigo sonhava com a velha bicicleta do pai. Ele pegou a velha bicicleta que o pai do amigo tanto queria e trocou pela nova que o pai sonhava. O pai, pasmado com a atitude do filho, não saiu do sofá até conseguir pensar o que faria, como levaria a inevitável conversa. Pelo rosto com leve sorriso feliz...
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