Azis Ab'Saber, respeitadíssimo geógrafo aqui no Brasil e mundo afora, um dia soltou uma pérola que dizia mais ou menos que bicicleta não servia para São Paulo porque a topografia da cidade era muito acidentada. Coisa de quem não pedala. Não demorou muito ele corrigiu enfaticamente afirmando o óbvio ululante para ele próprio: é possível pedalar em boa parte da cidade. Se o Azis, uma figura incrível, com uma história de feitos impressionantes por esta cidade, estado e país cometeu um deslize destes, porque as autoridades, e aqui incluo os ciclistas que ajudaram a construir nosso sistema cicloviário, não podem falar besteiras? Poder podem, mas por serem ditos especialistas não podem, ou pelo menos não devem. Pega muito mal.
Minha resposta é simples e direta: Azis Ab'Saber falou como um cidadão comum que se transportava em automóvel, e no meio de um tiroteio sobre introduzir ou não a bicicleta como modo de transporte no Município de São Paulo. Ora, ciclistas são ciclistas, e de ciclistas espera que se comportem como ciclistas, ou minimamente que disfarcem suas limitações.
Voltei a puxar um passeio do Saia na Noite. Quando nos reunimos para sair da padaria veio a pergunta clássica: para onde vamos? E eu respondi: não conto. Por puro respeito ou temor a minha loucura calaram. Um pouco mais para frente pedi para eles escolherem se queriam ir para lá ou para lá, e dei uma brevíssima explicação sobre a topografia dos locais possíveis. Um pouco mais a frente um amigo veio a mim e disse que sua mulher estava enferrujada. Pedido claro: por favor, pouca subida. Eu defini sem mais aviso, eles foram rumo ao desconhecido.
Final do passeio, 33 km percorridos, sendo uns 5 km com uma subida mais acentuada, e algumas leves, nada complicado, pedal cuidadoso para inicio de ano e enferrujados. Até a mulher de meu amigo subiu pedalando. Ou seja, 28 km planos, acompanhando córregos.
O pequeno grupo era formado por mulheres que já pedalaram muito pela cidade, mas muito mesmo, e em vários grupos de pedal. Nunca tinham feito este trajeto, sequer sabiam onde estavam. Ótimo! É assim que deve ser. Um dos milagres que a bicicleta oferece é descobrir o desconhecido da cidade.
E aí a besteira dita pelo caríssimo Azis fica num mesmo plano que os que projetaram o sistema cicloviário de São Paulo. A primeira visão que ambos têm da cidade é a de um motorista, não de um ciclista. A cidade do automóvel não necessariamente é a cidade do ciclista, e vice-versa.
Quem cruza a cidade sem um olhar mais detalhado, criterioso, é míope. Ops! Se havia uma coisa que Azis tinha é um olhar profundamente analítico sobre a cidade, aliás olhar invejável, quem conhece o trabalho dele respeita, mas falo aqui do Azis pensando a bicicleta a partir do olhar da cidade como passageiro de automóvel, a bem da verdade passando pelos mesmos caminhos que os ciclistas insistem em fazer, melhor, são levados a fazer.
Por diversas razões as autoridades e os ciclistas que ajudaram a implantar o que está ai só confirmaram que pensam que ciclista deve se comportar com a mesma mentalidade de um motorista que pedala. A bicicleta caminha em paralelo com o automóvel, concorre com ele, o mesmo caminho, a mesma cidade.
Óbvio que alguns trajetos têm que ser os mesmos para ciclistas e motoristas, mas alguns, não todos. Aí entra a diferença entre a cidade do ciclista e do motorista, diferença esta que os guias, os chefes das tribos, não sacaram.
O primeiro grupo oficial de passeio organizado saiu da Praça Charles Miller em uma noite de 1988. Eu estava lá. Foram levados para pedalar no Centro de São Paulo e terminaram a noite extasiados com a beleza do que nunca tinham visto: centro velho e centro novo.
Seguiram-se vários passeios por caminhos desconhecidos da maioria e mais espanto com o que a cidade oferece, a cidade dos ciclistas, e dos pedestres, e da escala humana.
Ainda na padaria, antes de sair o passeio, o pessoal estava reclamando do número de passeios que saem na disparada, vão sem parar, sem olhar para os que estão atrás, e em uma especie de furia que pare o trânsito dos automóveis para o pelotão passar, se os últimos não conseguirem, que se virem. Lei do mais forte. Caiu alguém, que se vire, o passeio não pode parar. Vai quem quer, chega quem pode.
O coletivo?
A cidade é um coletivo, ou não é? Ou é um veículo particular?
A cidade vive quando seus humanos olham para e por ela. E também é por isto que a bicicleta se tornou tão importante: ela dá tempo para o cidadão que pedala ver e entender onde está.
Como você pedala? Por onde você pedala?
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