Veja só como são os tempos; no meu terceiro ano de faculdade passei a estacionar o carro a mais de um quarteirão do portão de entrada, na época, começo dos anos 70, era um absurdo de longe. Uma amiga daquela época dizia "O mundo está perdido!" (Mal sabia eu e todo mundo como estaria mesmo.) Foi aí que comecei a ir pedalando, o que era considerado um absurdo maior ainda por todos, porteiros, professores, alunos, amigos e família. Os que eram da minha classe nunca fizeram um comentário, só me olhavam enviesado, mas talvez eu deixasse uma pontada de inveja porque estacionava quase dentro da classe.
Nos fins de semana pegava minha namorada e rodávamos horas a fio pela cidade sem destino com as janelas do automóvel escancaradas. Ar condicionado não existia neste país tropical, então era quebra vento mesmo e muita suadeira, talvez mais que pedalando.
Nas noites mais quentes saia "queimando gasolina" por ruas e avenidas só para ouvir rádio. Como era bom meu carrinho, como me diverti com ele, como ele me deu apoio nas horas tristes.
A nova geração não faz ideia do que seja brincar de submarino, namorar dentro do carro a beira mar. Hoje não dá mais porque nem lugar para estacionar vai conseguir achar. Uma vez caiu uma tempestade daquelas, e quando chovia os vidros irremediavelmente embaçavam. Também não era difícil molhar alguma coisa no motor e o carro morrer. Aproveitando tudo isto, eu estava com minha namorada no cruzamento da avenida Faria Lima com Rebouças quando despencou um toró daqueles, os vidros embaçaram. Os dois apaixonados a mil, eu olhei para ela, fechei de vez os vidros, embaçou por completo, liguei o pisca alerta como se o carro tivesse quebrado, abaixamos tudo o que podia os bancos, e transamos divinamente ali mesmo sem ser incomodados. Bons tempos. Hoje? No mínimo iriam pendurar um saco de balinhas no espelho.
Muitos anos depois, já apaixonado pelo mountain bike e pela minha namorada que pedalava maravilhosamente, nesta ordem ou ao contrário, fomos pedalar com um grupo na Trilha do Verde. Chegamos um pouco atrasados e tentamos alcançar o pessoal. No meio do caminho e no entusiasmo decidimos desistir da perseguição e, muito melhor, experimentar uma transa selvagem no meio da mata. Saímos da trilha, fomos para o meio do mato. Quando ela estava completamente nua, em pé, ouvimos chegando a voz de dois amigos descendo a montanha por uma trilha paralela. Passaram a mil a poucos metros de nós de onde estávamos. Ela congelou, ficou imóvel, e provavelmente por isto não foi vista pelos dois que seguiram em frente conversando. Passado o susto tivemos um orgasmo de gargalhadas.
Ela até hoje sente falta daquela bicicleta, a que ficou deitada para transarmos.
Outro dia fiz uma conta de quantas bicicletas tive pela vida, todas com suas memórias. Doei 42 bicicletas para o MuBI, o museu de Joinville, enquanto estava sob responsabilidade do Valter Busto, fora muitas outras que não foram para lá e acabaram nas mãos de amigos. No total devo ter tido umas 60, ou mais. Pedalei todas mais ou menos, todas com suas histórias. Gostaria de estar com elas em casa sob meus cuidados. Hoje só tenho 7 ou 8 comigo e espero que seja até que a morte nos separe. A bem da verdade minha preocupação é que fim elas terão depois de eu me for. Se as tratarem mal subo do inferno para infernizar quem quer que seja.
Sou nostálgico quando vejo os carrinhos que tive. Variant 69 azul calcinha, Chevette 76 Pais Tropical caramelo, Chevette Hatch azul marinho, BMV - Brasília meio velha creme, e meu amado Uno 95 azul marinho, o mais prático, racional e funcional de todos. Não, não os teria guardado, é irracional. Carro com pouco uso quebra, e pela praticidade da bicicleta praticamente não saio mais com carro. Hoje, quando preciso ou alugo, o que é muito mais barato e divertido, ou pego o Honda Fit emprestado, que é um projeto maravilhoso.
Antes de todos estes tive um buggy Glaspac preto 1.200 com quem me diverti um bocado. Ele terminou desmontado, sim, desmontado. Um primo que conhecia carros me ajudou a comprar, mas avisou que teria que consertar algumas coisas, em particular o motor que vazava óleo pelos tuchos, típico dos VW muito usados. Meu pai, já separado, disse que desmontasse que ele ajudaria a remontar, o que não aconteceu. Mas tem duas histórias deste buggy que valem.
Eu estava paquerando a Tina. Um dia perguntei se ela queria dar uma volta no buggy e ela entusiasmada topou. Quando chego para pegar ela aparece linda, uma boneca (como dizíamos na época), mas chiquemente vestida com uma roupa clara, nada apropriada para um passeio num "conversível". Perguntei se queria se divertir, ela disse que sim sem imaginar o que aquele adolescente pós adolescente tinha em mente. Fui direto para um imenso terreno baldio empoeirado. Não, não perdi a paquera, muito pelo contrário. Ali devo ter perdido a sogra quando recebeu a linda filha marrom dos pés a cabeça. Nunca perguntei se deu para lavar o lindo e sexi vestidinho de alças bege claro cheio de florzinhas.
Não conseguia dormir e decidi sair. Era uma noite fria de inverno, o buggy já estava meio desmontado, sem o para-brisas. Vesti um casaco militar da Segunda Guerra Mundial que estava na moda, coloquei o capacete, e saí pelas ruas. Quando passei o Estádio do Pacaembu tive a brilhante ideia de descer o gramado, uma rampa inclinadíssima que dá na Praça Charles Miller. Subi na calçada, apontei o buggy para o 'penhasco' e quando a frente abaixou e pude ver a praça, e não dava mais para voltar, dei de cara com quatro viaturas da Rota, a mais temida das polícias, estacionadas lá em baixo. Não dava mais para parar. Enquanto o buggy foi escorregando gramado a baixo os PMs olhavam com cara de "não estou acreditando", e eu pensando "se não tomar um tiro aqui e agora nunca mais tomo". Cheguei lá em baixo, passei ao lado de todos os pasmados, dei um boa noite não acreditando que não iriam me prender, e não prenderam, acredite se quiser.
O Ciro pegou a direção do buggy, Eduardo sentou ao lado e eu fiquei sentado atrás segurando no santo antônio (barra anti-capotagem). Ciro entrou rápido no banco e enquanto esperávamos passaram duas meninas lindas que atearam fogo nos sonhos do Eduardo. Ciro voltou, fomos atrás para paquerar e as meninas sequer olhavam para o lado. Uma hora eu mandei o Ciro deixar a direção para mim, o que fez a contragosto. Eu subi na calçada e passei a perseguir as meninas, para o espanto delas e dos dois coiós que estavam comigo. Elas gostaram da brincadeira, pararam para conversar, eu ofereci para levá-las para casa, elas aceitaram e lá fomos nós. Acabei amigo de Marcela, conversa ótima.
Anos mais tarde passei para a bicicleta. Foi divertido até quando nós quatro tomamos uma chuva de pedras. Não tinha onde se abrigar. Estávamos voltando - rapidinho rapidinho - da Represa de Guarapiranga, tentando fugir da nuvem preta que pesava sobre todos, mas não deu. Quando estávamos na calçada de onde era a fábrica da Monark o mundo veio a baixo com uma chuva de pedras a princípio risível, rapidamente massageante, logo um tanto dolorida. Aceleramos com a pista da Marginal Pinheiros cada segundo mais cheia e chagamos debaixo da ponte Morumbi já com tudo alagado. Ríamos assustados com a a fúria do clima. Não demorou para o toró parar. A chuva continuou e ensopados saímos debaixo da ponte, nos afastamos do alagamento na Marginal. A volta foi memorável, ensopados, mas bem, sem resfriado subsequente.
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