Da forma como vem sendo usado o automóvel virou um sério problema, a bem da verdade um dos inúmeros sérios problemas que enfrentamos, ótimo exemplo aqui. Virou um vício? Se não virou pelo menos é fomentado como tal. Uma pesquisa num dos países nórdicos apontou que 27% dos ciclistas se pudessem só andariam de automóvel. Até entendo porque deve ser duro pedalar naquele gelo. Da mesma forma que o uso da bicicleta cresceu muito na pandemia em razão do distanciamento social, a indústria automobilística deve estar feliz porque a pandemia também fez com que o uso do automóvel seja justificado pelo mesmo distanciamento imposto pela pandemia. A ocasião justifica o vício, o que é muito usado como álibi para inúmeros outros deslizes destrutivos.
A cidade do automóvel não é novidade, não nasceu com a indústria automobilística. A saber, largura de vias e túneis foram padronizadas tendo como base a dimensão própria para uma carroça puxada a cavalo. Se fizessem uma pesquisa sobre modo de transporte antes de 1850, o início do fim da era dos cavalos, provavelmente todos diriam que prefeririam ir numa carroça ou num cavalo, nesta ordem, do que seguir caminhando em ruas empasteladas de bosta de cavalo.
A padronização do espaço das vias baseada no transporte equestre, portanto das cidades e dos espaços públicos, continuou na construção de ferrovias, com o tamanho dos vagões e tuneis, depois nas vias para automóveis. A bitola e a distância entre trilhos de trem nos primórdios da ferrovia variava para proteger interesses particulares de cada companhia, mas com o tempo provou-se um contrassenso econômico e estratégico e tudo foi padronizado, o que se provou muitíssimo mais produtivo, portanto lucrativo.
Cidades e estradas receberam o mesmo padrão de medidas que ainda usamos hoje baseado no espaço necessário para a circulação de cavalos e mulas. Com certeza é impossível fabricar equinos para atender interesses individuais, e mesmo um cavalo percheron, que é imenso, adapta-se ao padrão de medidas geral.
Interessante olhar a padronização como uma solução que transforma, solidifica e pereniza o setor das bicicletas. Com o surgimento da bicicleta de segurança, o desenho básico de quadro, garfo e peças que temos desde aproximadamente 1890 até hoje, este veículo se populariza e se transforma num agente de mudanças de comportamento social em larga escala. A padronização da bitola dos trens aumentou a fluidez na malha ferroviária para o público gerando a comodidade de viagens mais longas, sem baldeações, assim como a padronização das rodas reduziu drasticamente o preço das bicicletas tornando-as populares. Passo consequente, o processo industrial uniformizado das bicicletas levaram a popularização dos automóveis. O processo de fabricação do Ford T foi copiado da fábrica de bicicletas Coventry, a maior da Inglaterra e provavelmente no mundo na época.
Se a bitola uniformizada trouxe o prazer de comer peixe para o interior da Inglaterra, por exemplo, a bicicleta levou gente assalariada para agradáveis picnics nos parques e arredores das cidades, e o automóvel deu liberdade para ir e vir para onde quisesse, até muito além da cidade. Uma coisa puxa a outra, e todas mudaram a forma de pensar. Utensílio, comodidade, padronização, em alguns casos vício consequente.
O automóvel oferece a papa fina do vício, todos eles, os que parecem bons e frutíferos e os muito prejudiciais. Dentro do automóvel há pelo menos duas realidades, a vida dentro e a vida fora do automóvel. Com ele fugir é fácil, em todos os sentidos, basta fechar a porta, ligar o motor, sair do estacionamento e pegar a estrada. Está provado que é muito difícil, mais, improdutivo viver sem desligar-se ou fugir da realidade do dia a dia, e neste sentido o automóvel encaixa-se como luva de pelica.
Espaço público já foi dimensionado para pedestres, burros, cavalos, carroças, tropas militares, até que entrou no páreo e venceu disparado e sem freios o automóvel. Passou a ser prioridade com apoio unânime de capitalistas, democratas, comunistas, religiosos fanáticos e todo zoológico. "Caminhar é coisa de pobre", posicionamento social dito e repetido a torta e direita nestas exatas palavras por gerações; uma questão de status, "caminhar é coisa de pobre", não precisa dizer mais nada. O espaço público passaria a ser o espaço do automóvel, e a cidade do automóvel está consolidada. Simples, basta ver o desenho urbano de cidades anteriores e posteriores ao automóvel. A Paris de Haussmann é ótimo exemplo.
Com o avassalador sucesso do automóvel o desenho urbano passou a ser padronizado levando em consideração a livre circulação destes mesmos automóveis. O resto, casas, seus moradores, trabalho, comércio foram adaptados ou criados para a melhor circulação possível dos automóveis, sem questionamentos, com aplausos e urros de "Bravo! Bis, bis, bis!" . Não foi o automóvel que passou dos limites, mas a irracionalidade de seu uso.
Mudou. hoje cidadãos preferem conviver em espaços que foram criados para pedestres. Pesquisas apontam sem erro que vias saturadas de trânsito de automóveis são desagradáveis para o convívio e acabam se transformando em áreas degradadas.
Na Finlândia dizem "me mostra como diriges e te direi (dir-te-ei) quem és". É correto dizer "mostre teus espaços públicos e saberei quem são os teus cidadãos". A condução do veículo (individual) é um processo ligado ao comportamento social que se reflete nos espaços públicos. Uma cidade desconectada com a vida carece de cidadania. A liberdade do automóvel não está em casa ou na cidade, mas na direção, acelerador e de vez em quando no chato do freio. "Quanto melhor o motorista menos freio usa" me ensinou meu avô, uma técnica de competição onde vence quem chegar na frente. Civilidade só existe com freios, limites, padrões de inter-relacionamento.
A velocidade desenfreada, que diga se de passagem é uma sensação empolgante, mata. Em nome da segurança dos passageiros do automóvel (foda-se o terceiro) que se proteja o proprietário do automóvel e seus ocupantes, ou o automóvel não vende. Isto fez com que as carrocerias ficarem cada vez maiores para criar conforto sonoro e deformar progressivamente em caso de acidente, ou seja, automóveis silenciosos, seguros, isolados da chatice e dos problemas do mundo externo. O resultado para a padronização do espaço público foi que numa garagem onde cabiam carros pequenos de 20 anos atrás não cabe os atuais, ou cabe e você não abre a porta. Traduzindo: necessidade de mais espaço para estacionar, manobrar, circular, andar em alta velocidade. Como fica isto dentro do espaço público, do direito coletivo, do meio ambiente?
Os congestionamentos sem fim acabaram influenciando no projeto dos carros, tanto no interior quanto exterior. Não faz muito tempo a decisão de compra de um carro passou a ser mais feminina, o que mudou o projeto do interior. O aumento da velocidade dos carros mudou o posicionamento dos comandos que ficaram mais a mão e automatizados. Unhas não podem ser quebradas ou perde-se compradores. Como isto influencia nos cuidados com a casa, no viver o espaço público, nos cuidados com o próximo, no sentar na mesa para trabalhar?
Agora os automóveis estão sendo transformados para chegar ao Big Brother total. Motorista não precisa prestar atenção no trânsito, o carro corrige os erros e evita acidentes. Não precisar tocar em nada, basta falar e as interfaces do automóvel respondem. Todos viajam leves livres e soltos como reis que não tem que mover uma palha para gozar suas vontades. Liberdade completa ou o retorno a escravidão? Comodidade ou novo vício destruidor?
Auto escravidão sem dor, que vício maravilhoso!?
Há uma grande diferença esquelética na ossatura de quem viveu antes e depois das facilidades do automóvel. Ok, não só do automóvel. Nosso corpo é outro, nossas habilidades também. Parece que nosso cérebro está lentamente se adaptando ao dirigir olhando o celular, uma loucura a meu ver que parece a cada dia mais normal e natural. Será?
Incrível capacidade de adaptação ao ambiente é inato ao ser humano. Foi diferente com este fenômeno chamado automóvel? Automóvel é só um "veículo": (FIGURADO (SENTIDO)•FIGURADAMENTE qualquer coisa capaz de transmitir, propagar, difundir algo;)
Usos, costumes, conforto e o preço da comodidade da vida na cidade não são questões fáceis de ponderar, mas avalia-los se faz crucial para nosso futuro.
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