domingo, 27 de março de 2022

Motim no cruzeiro: não vamos parar nem Tenerife (ou Euroguai, o Paraguai daqui)

O excelente cantor sul africano entrava em sua quarta música, um reggae, quando pela saída direita do teatro lotado que aplaudia efusivamente cada fim de canção entrou uma turba braços ao ar festiva gritando palavras de ordem, cruzou à frente de todos e uns dez líderes subiram ao palco meio que dançando. O cantor a princípio deve ter pensado que queriam dançar com ele e ensaiou um bem-vindos, mas logo se deu conta que era um protesto e se retirou. De onde eu estava o vi sentado na coxia enxugando a testa suada e olhando a baderna instalada. Delicadamente veio um assistente de palco e o convidou a ir para o camarote. Fim deste show, ótimo por sinal.

A baderna estava completamente instalada, não completamente, eu dei uma boa pitada para tocar fogo na turba.

Um grupo pequeno no palco, um senhor no penúltimo degrau da escada voltado para a plateia tentando aos gritos, e no meio dos gritos da plateia “fora!”, esforçava-se furiosamente para se comunicar o que aquela plebe estava reivindicando, coisa que todos que assistiam o cantor já estavam fartos de saber. Desandei a gritar por respeito ao artista e fui acompanhado por boa parte do público. No meio do grupo aglomerado em frente ao palco e próximo a saída por onde haviam entrado uma mulher apontou para mim e enfurecida gritou a pleno pulmão “É sobre o meu dinheiro!”, upa!, o estopim para que eu rebatesse certeiro e indefensável com um também cruel urro “POBRE! POBRE! POBRE!” E foi assim que o circo pegou fogo de vez.

Imediatamente um casal vestiu a carapuça até a unha encravada do dedinho do pé esquerdo, ele subiu as escadas até onde eu estava sentado e começou a gritar que “Eu sou mais rico que você! Eu sou mais rico que você! Eu sou mais rico que você!”, no que respondi em voz normal que riqueza é cultura e que parar um show é uma pobreza. Depois de um certo tempo, situação mais calma, mas ânimos ainda bem inflamados volta o velhinho “Eu sou mai rico que você!, Já fiz mais de 40 cruzeiros”, é puxado de lado por rapaz jovem que repetindo o “40” diz que é culto porque já visitou “40 países”. Entre dois 40, que dá 80, entra uma cara que repete olho no meu olho "Você é burro? Você é burro? Você é burro?". Penso eu felizmente e com toda sabedoria "obrigado pelo elogio".

Gentilmente sou retirado do meio da confusão por um dos coordenadores da tripulação do cruzeiro que vai tentar acalmar ânimos. Volto para minha cadeira, sento e a bagunça se estende por bom tempo. Sobe ao palco o apresentador oficial dos shows e com muita dificuldade comunica que o capitão do navio está vindo. Urros de vitória.

O comandante chega, fala em italiano e é traduzido pelo apresentador. É interrompido seguidamente. As razões do porque não parar em Tenerife não são aceitas. Urros, gritos e dedos em riste dos que pararam o show. O comandante com muito esforço vai tentando justificar. Mais incompreensão dos amotinados. O comandante diz que é empregado, que trabalha para fazer os prazeres de todos a bordo, mas que recebeu instruções que Tenerife não dá garantias que haverá combustível e que as ordens da companhia MSC é reabastecer em Las Palmas e seguir direto para a primeira parada na Europa, Funchal, Portugal. Mais raiva, mais reações inflamadas, alguns sobem ao palco e colocam o dedo no nariz do comandante. Seguranças cercam a situação a distância. Impassivo o comandante ouve quieto. Depois de muito tempo a situação está temporariamente contornada e o teatro esvaziado.

O custo de parar em Tenerife com certeza é muito menor que o estrago que a turba da rede social pode fazer para a companhia MSC. E, para quem não sabe, dentro de um navio a autoridade máxima é o comandante, ponto final.

Quem contrata um serviço como deste Cruzeiro assina um contrato. Não li o contrato como tenho certeza que a maioria também não leu, mas duvido que uma situação como esta não esteja ali detalhada.

Parabéns pela habilidade e bom senso da MSC na lida com os revoltosos juvenis. A bem dizer, a qualidade de atendimento da tripulação tem sido impecável.

Existem formas e formas de protesto ou reivindicação. O que aconteceu aqui é juvenil, expressão que ouvi de alguém e adorei. É reflexo de um Brasil que vai de mal a pior. “A classe média vai ao paraíso”?. Neo l’age d’or? (Mui provavelmente) Apocalipse do capitalismo? Liberalismo midiático e intelectual? Kit “convite”? Terra plana? Estocar vento? O que quer que seja, brasileiros: estamos todos fodidos!


PS.:
  1. Rico que é rico vira letra e número. O resto é pobre rico pobre.
  2. Visitar 40 países é cultura? Parece que depende das compras e do shopping center.
  3. Cruzeiro é cultura? O mar que responda.

Quanto mais sei que nada sei, disto não tenho a mais remota sombra e dúvida.

A leitura atual é "Calibã e a Bruxa; mulheres, corpo e acumulação primitiva", de Silvia Federici. Ficou mais de um ano na cabeceira da cama porque a abertura do livro leva a pensar que é baboseira. Muitíssimo pelo contrário. Mesmo tendo um forte viés de esquerda, é leitura mandatária para quem acredita que a vida é nada mais que um aquilo deu nisso. Acabei a análise do que foram os movimentos sociais e econômicos na Idade Média, tudo baseado em pesquisadores de primeira linha, e parece uma crônica do que aconteceu ontem. O que está lá nunca soube, nem imaginava. Tem sido uma descoberta surpreendente a cada linha. Conclusão até aqui: fomos e continuamos sendo todos iguais, (temo fudido). Não mudamos nada nestes últimos 800 anos. Estamos fodidos! 

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