sábado, 2 de outubro de 2021

desdentado e sem comer

A idade chegou e perdi mais um dente, o terceiro. Ontem tive que extrair mais um pré molar. Causa: bruxismo. Com isto acordei e não pude tomar um café da manhã normal, normal para mim. Olhei minha papaia raspada, papinha no prato, ouvi o silêncio do entorno de minha casa e não gostei da brincadeira. Quero pão torradinho e quentinho, manteiga sem sal, geleia, mel, café expresso! 
"Quanta frescura!" pensei.

Na volta do dentista peguei um taxi. Chovia, dobrei a bicicleta, coloquei-a no porta-malas e seguimos viagem conversando. Foi um inferno de trânsito, tudo parado, muita conversa. Ele, motorista dito "pai-avô", aos 60, filha com 15 anos. 
- É difícil, mas precisa fazer esta criançada cair na real. 
- Minha mulher faz trabalho beneficente e ela vai junto. Já começou a entender as coisas. Já não diz mais que dá (para comprar), que é só pagar no cartão (de crédito).

Manhã nublada, silenciosa e eu parado encarando a papinha de papaia. A dobrável está encostada na sala. Vai chover, não vou poder sair de casa, muito bom, não vou passar vontade. Sem saber bem o que fazer com, melhor, sem dente, fico parado no meio da sala num desorientado mimado. "Que direito tenho eu?"
Durmo só, na minha cama, no meu quarto, na minha casa que está num lugar silencioso, sem violência. Tenho uma pequena geladeira. Tenho uma vida normal. Normal? Para quem?
"Como será lá?"

Ela se levanta com cuidado para não acordar os outros que ainda dormem no pequeno e mal ventilado quarto. Ela dormia junto com a filha mais nova num colchão velho e meio deformado; a mais velha com os dois irmãos no colchão jogado no chão, corpos invertidos, pé com cabeça, cabeça com pé, para caber todo mundo. Abre a porta que ficou encostada para ventilar um pouco, estica a perna sobre os corpos, e sai para a cozinha. Ainda meio atordoada da noite mal dormida, regra nesta vizinhança que gosta de uma festa ou de conversar noite adentro. Cheira o que resta de leite, não está estragado ainda, coloca mais água e põe para esquentar. O pão de forma que foi deixado aberto é colocado sobre a mesinha coberta por pano limpo, florido, comprado na liquidação. Os pratos amontoados ao lado do pão, pote econômico de margarina, e uma faca. Leite quente, água do café ralo fervendo, hora de acordar os meninos, um por vez, a casa só tem um banheiro, pequeno, pintura do teto mofada, com ladrilhos imitando mármore cinza nas paredes brilhando, um orgulho, chão de cimento queimado, vaso sanitário sem acento, mas com uma velha tampa de lixo para evitar mosquito. Tudo limpo. Um por vez. 
Pelo vitro apertado ela olha o amontoado sem fim de casinhas sem pintura ou telhado, tudo laje e caixa d'água, e lá longe vê as árvores da praça na avenida. Por uns instantes preocupada com o velho senhor maltrapilho que dorme debaixo da lona e que não terá sequer café da manhã para tomar. Fica na espera de um filho dela que desce com meio pacote de biscoito. Um dia o magérrimo velho estava ainda mais quieto que o normal naquele fim de tarde da volta do trabalho dela, nem agradeceu como de costume. Um dos filhos não entregara o pão velho pela manhã. Justificando acabrunhado "Estava com muita fome".


Fico com a colher cheia de papa de papaia no ar, congelado, lembrando da matéria na TV sobre as dificuldades que a população está tendo depois da pandemia. Minha paz, minha segurança, meu dia a dia me dá o direito, a capacidade de pensar. 
Coloco a papai gelada na boca e sinto o local onde foi feita a extração do dente. Não é uma dor, mas um leve desconforto.
"Como estará a boca deste pessoal?" 

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