Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três; fui! E assim saí no domingo 10 de outubro 7h00 de casa para pedalar até Aparecida do Norte. Romaria? Não exatamente, mais para ver ver que para crer. Treino? Com certeza. Dúvida? Aguento ou não fazer os 180 km em duas etapas: São Paulo - São José dos Campos 100 km, dormir e encarar mais 84 km até Aparecida.
Os primeiros 100 km, exatos, foram bem, mas o entusiasmo do meio para o final aumentou minha média e tiveram seu custo na derradeira última subida, curta e não muito inclinada, que foi um sofrimento memorável. Psicológico ou físico? Provavelmente os dois juntos, mas acima de tudo custo da burrice de não exagerar. Hoje falei com o Zé, amigo meu que mora em SJC, e expliquei por que mesmo passando a 100 metros da casa dele não o fui ver. Ele riu. "Eu sabia!"
Peguei uma leve garoa neste primeiro dia. A meteorologia afirmava que choveria e se choveu não foi em mim. Fiquei decepcionado com os poucos romeiros que ultrapassei, mesmo tendo ouvido que em razão da pandemia não seriam muitos. Ainda muito distante de Aparecida encontrei romeiras sentadas com os pés cheios de esparadrapos ao ar. A fé vai levá-los ao destino final, mas a que custo? Me pergunto se isto é fé ou o que será?
A exaustão diminui depois da massagem que me faço durante o banho. Saio para caminhar um pouco o que ajuda a diminuir as dores nas pernas. De resto estou bem. A cabeça está ótima, mas com dúvidas que no dia seguinte consigo chegar a Aparecida. Excitação e exaustão me fazem demorar para dormir.
Descendo para tomar o café da manhã entra um americano no elevador. Good morning, good morning, e pergunto se está trabalhando aqui no Brasil, ele diz que não, que está num congresso de religiosos. Saímos do elevador e ele me diz todo feliz que "Ontem rezamos para uma menina que não mexia mais as pernas e ela saiu andando". "That's good" respondo.
O restaurante e o lobby estão lotados de americanos religiosos tomando café da manhã. Pego uma mesa vazia próxima a um senhor negro muito parecido com o gorducho que dança, canta e encanta no clip 'Come on to me' do Paul MacCartney; só que sem a barba. Simpático, sorridente, falante, trocamos um bom dia. Me sirvo e sento numa posição diagonal a ele. Percebo que num momento ele arregala os olhos como um lobo tarado de desenho animado, giro a cabeça e vejo que está olhando as costas, qual seja bunda, da senhora negra, alta, bem delineada, arrumadinha e com marido. O casal se serve, volta a mesa, conversam com o gordinho simpático; sem dúvida conhecidos. O marido se levanta e vai se servir, a mulher segue atrás um pouco depois, e eu me controlo para não cair na gargalhada com o gordinho simpático olho arregalado para o teto numa expressão inequívoca "que puta gostosa". Queria ser milionário para leva-lo para Salvador. Bato aposta que viraria umbandista.
Subo para o quarto, escovo os dentes, pego minhas coisas, desço, e quando estou passando pelo lobby lotado de religiosos americanos não posso deixar de pensar que esta fé faz as pernas paralisadas de uma menina se moverem, mas não faz a terceira perna do simpático senhor gorducho ser tão fiel aos mandamentos.
Ainda em São Paulo procurei a melhor forma de entrar e sair de São José dos Campos, o que foi para lá de providencial. O trecho conurbado da cidade é longo, sem acostamento, com movimento pesadíssimo, terrível para pedestres e principalmente para ciclistas, que existem, estão lá no dia a dia. A solução na chegada a São José dos Campos foi cruzar a Dutra na altura da UNIPE e seguir por rua, calçada e gramado até depois da Johnson & Johnson, caminho completamente seguro. A saída para Aparecida, também planejada para longe da estrada, foi por dentro da cidade até pegar a avenida GM e de lá cruzar a Dutra para seguir em frente; uma tranquilidade.
não é romeiro, é trabalhador |
Passar de frente a fábrica da GM me dá agonia. Está desativada. O sindicato bateu o pé muito além do que deveria, com prefeitura e outros sindicatos avisando que estavam esticando a corda muito além do limite. Estupidez pura ou fanatismo quase religioso? O complexo industrial da GM é imenso e fechado. Dói.
Demoro quase uma hora e meia para ver a Dutra cheia de romeiros e a partir de então fico assustado com a quantidade deles. Nem na romaria de 300 anos estava tão cheia. Começa a garoar, não coloco a capa tendo fé que não vai piorar. A ciência da meteorologia rapidamente supera minha leda fé.
Muitos não se preocupam em caminhar lado a lado com outros romeiros ficando com o corpo quase dentro da faixa de rodagem. Os caminhões passam raspando e ninguém se assusta. Pedalando tenho que tomar cuidado nas ultrapassagens, em algumas delas olhar para trás e quando der invadir a pista para seguir em frente. Foda-se o ciclista. Fodam-se os ciclistas, que cada vez aumentam mais. A bem da verdade os ciclistas também estão fazendo e andando para tudo, pedestres, caminhões e até ciclistas mais lentos como eu. Mais lento, diga-se de passagem, pedalando numa média um pouco acima de 20 km/h. Um me ultrapassa sem avisar pela direita quase tocando em meu guidão. Fé na romaria, mas não nos princípios cristãos.
A garoa vira chuva, a chuva vira torrencial. Estou encharcado, com frio. Paro debaixo de uma ponte onde muitos se abrigam e aproveitam as duas bases de apoio cheias de frutas, café, bolinhos e um final de paçoca deliciosa. Paro um pouco, tiro fotos, ensopado e me sentindo culpado pela burrice visto a capa. Já é hora do almoço. Quando estou subindo na bicicleta vejo que o pessoal do apoio está servindo marmitas, grandes, com arroz, carne moída, feijão e batata. Os primeiros a se servir têm cara de ser os mais ricos do pedaço. Um senhor menos abonado em pé e parado ao meu lado olha com inveja os que comem absortos.
Volto a estrada que mesmo com a chuva torrencial está cheia. Não demora muito e cai um raio a uns 1.000 metros, se tanto. Um sinal que já deu o que tinha que dar? Ultrapassar os romeiros encharcados que a cada km enchem mais o acostamento fica cada vez mais perigoso. Não é uma questão de fé parar. Fé definitivamente não é obsessão.
Já fiz 50 e faltam um pouco menos de 40 km. Taubaté está passando a minha direita. Olho minha velocidade, com a chuva devo diminuir um pouco, vou demorar algo em torno de 3 horas a Aparecida. Sinto meu cansaço, minhas pernas, meus incômodos; se quiser chego. Vale a pena? Daqui para frente será cada vez mais perigoso ultrapassar os romeiros. Pensando bem sensatez faz mais sentido, sempre faz sentido. Vou para a rodoviária e o pneu traseiro está furado. "Yo no creo en brujas, pero que las hay las hay. Este pneu é mais um sinal. Chega." Compro a passagem, sento-me para esperar o ônibus e a chuva acalma. "Sigo em frente por Pindamonhangaba?" Chega de loucura, de volta para casa. Enquanto espero faço o remendo e encho o pneu.
Na rodoviária do Tiete desço do ônibus e dou de cara com dois ciclistas parados olhando desolados a chuva torrencial que despenca. Ainda vão para Santo André. Um tem 43 anos e o outro, que está com joelho doendo muito, 47. Contam que fizeram a romaria numa tacada só, 18 horas pedalando. Foi uma loucura e reconhecem que deveriam ter feito em pelo menos duas etapas, como eu pretendia.
Não é difícil encontrar os que achem bacana pagar promessa fazendo os 180 km numa tacada só. A fé está relacionada em fazer a coisa certa ou em sofrer? Bato aposta em fazer o certo. Não sei se Nossa Senhora de Aparecida está feliz com tanta devoção irracional e fanatizada.
Meu pneu de trás murchou. Entro no Metro e compro passagem. Na hora que vou cruzar a catraca sou parado por um segurança que diz que "bicicleta só até as 16h00. São 16h15". Sento num canto e troco a câmara. A cola está velha e não colou o remendo. "Saco!"
Entro em casa, solto a mochila, tomo água, faço pipi, volto para guardar a bicicleta e encontro o pneu da frente furado. "É, sem dúvida, foi sábio ter parado. Mais um sinal". Talvez volte a pedalar na Dutra que tem trechos lindos. Nunca mais em tempo de romaria. Tudo tem limite.
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