O caderno mobilidade do Estadão de 18 de setembro de 2021 veio com a página "Acidentes com ciclistas crescem 30% em 2021" e subtítulo "Cidade de São Paulo lidera o ranking nacional; o uso de bicicletas vem aumentando continuamente há dez anos". Mais em baixo vem as recomendações da ABRAMED: 1 - Construção ou ampliação das ciclovias e ciclofaixas; 2 - Manutenção frequente das ciclofaixas e ciclovias; 3 - Campanhas educativas; 4 - Mais placas de sinalização; 5 - Ampliar a interligação entre modais
Ontem almocei com minha neta e conversamos sobre gasto consciente de água. Ela colocou que a responsabilidade não é nossa, população, que só gasta 1% do total da água e que se tem que controlar a indústria... Depois do almoço sai para ver onde está um dos meus livros prediletos, "Como mentir com estatística", de Darrell Huff, publicado em 1956 e ainda hoje a bíblia para entender como funciona de fato a comunicação geral. Creio que vá ser um presente valioso para ela que é curiosa e gosta muito de ler. Disse para ela que os dados que tinha pesquisado estavam corretos, mas sempre tem algo a mais por trás.
Cada um conta sua versão. Olho para trás e sinto profunda vergonha das besteiras que disse e pensei. Dependendo da fase da vida a gente fala sem pensar literalmente. Efeito boiada. Híper feliz porque a guria pensa e corre atrás de informação.
Mesmo o que acredito ser verdade hoje tenho certo receio de dizer que o é. O que não resta dúvida é que se tem de trocar informação, mesmo que seja besteira. Então vamos lá:
- Óbvio que São Paulo lidera o número de acidentados. É o estado e tem a cidade mais populosa do país. Talvez o dado correto devesse ser publicado em cima do número de acidentados por 100 mil, o que talvez tirasse São Paulo da liderança, talvez. E deixo a pergunta que tipo de acidentados?
- "Uso de bicicleta vem aumentando continuamente há dez anos" está correto, mas creio ser informação incompleta. "Uso de bicicleta vem aumentando continuamente há dez anos" entre as classes mais altas das cidades grandes, enquanto está diminuindo em antigos redutos de baixa renda que usavam intensamente a bicicleta, mas não apareciam nas estatísticas, e que vem há muito trocando a bicicleta pela moto. Muda completamente o panorama. A acidentalidade migrou também? Pelo que se sabe sim.
Nas recomendações da ABRAMED publicada no artigo, penso que a ordem de prioridade deveria ser outra:
- Campanhas educativas; - este é o ponto de partida: cidadão educado; ciclista educado e disciplinado dificilmente se envolve em acidentes. Tinha concluído a frase com "outros veículos, sejam motorizados ou não", mas o correto é "acidentes", todos, sem exceção.
- Mais placas de sinalização; - a sinalização tem que atingir o objetivo desejado, o que não necessariamente quer dizer mais placas de sinalização e sim uma sinalização inteligente, eficaz, que de fato apresente resultados. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é... Placa é sinalização aérea, portanto a proposta da matéria é sinalização incompleta. Aliás, sinalização tem que ser de solo, aérea e semafórica, esta última crucial em algumas situações, ou seja sistema de sinalização.
- Construção ou ampliação das ciclovias e ciclofaixas; - Ciclista educado, civilizado, que sabe pedalar, vai necessitar muito menos ciclovia ou ciclofaixa porque saberá conviver com o trânsito, pedestres e a cidade. Nunca vi uma comparação entre os custos de educação e treinamento de ciclistas X construção de vias segregadas aqui no Brasil; e custos X benefícios de cada opção. Se alguém viu, por favor me envie. Outro ponto é que só temos as estatísticas de acidentes fatias. Acidentes não fatais em ciclovias e ciclofaixas são subnotificados, quando o são, o que distorce a realidade. Nem falo sobre incidentes.
- Manutenção frequente das ciclofaixas e ciclovias; - óbvio que tem que haver manutenção frequente não só das ciclovias e ciclofaixas, mas de tudo que envolve a circulação e transporte no entorno. Por quê? Exemplo simples: pedestre que sai caminhando pela ciclovia porque a calçada é ruim ou menos cuidada. "Ou todos tem segurança ou ninguém está completamente seguro" é princípio básico de segurança. Insegurança na via dos veículos motorizados certamente vai se refletir na segurança dos ciclistas, mesmo que estes estejam segregados.
- Ampliar a interligação entre modais; tem que ampliar o diálogo não só com outros modais, mas com a cidade, daí a interligação será um detalhe que se resolverá naturalmente.
Aumentar a segurança do ciclista é importantíssimo, mas de que forma? O que é líquido e certo é que as cidades entraram num processo de revisão imposto pela inteligência artificial. Neste contexto será que se deve colocar tantas fichas num projeto de cidade dos anos 80? E deixo a pergunta: qual o custo da segregação neste novo contexto que vivemos?
Acabei de ler e fiquei muito impressionado com "Viagem ao crepúsculo" de Samarone Lima, livro que conta sua experiência na viagem que fez como turista mochileiro de esquerda para Cuba. Recomendo como leitura obrigatória. Sempre quis ir para Cuba e conhecer Havana antes que seu patrimônio arquitetônico seja "mudernizado". Acho que não vai dar. Quem quiser saber por que que leia a Viagem ao crepúsculo.
Nunca li
Machiavelli. Deveria e um dia talvez o faça. De qualquer forma, digo eu, uma
verdade dita ou escrita incompleta pode ou não ser uma verdade. Não resta
dúvida que quanto mais informação menor a distorção.
Nenhum comentário:
Postar um comentário