O silêncio de minha casa é reconfortante. Nunca me fez tão bem.
Saí de frente da TV e inúmeros documentários exaurido.
Entrei no elevador ainda atordoado e desci olhar fixo nos números dos andares passando de baixo para cima e desaparecendo. "Desapareceram". Abri a porta, peguei a bicicleta encostada na parede do fundo da garagem, cruzei o portão elétrico que correu para o lado, olhei para um lado, para outro, para o céu em busca de uma nuvem, para o portão já fechado e decidi voltar direto para casa sem fazer um caminho mais longo que a noite agradável demandava.
Passado o trecho mais movimentado, uns três quarteirões, cruzei a avenida, veio o silêncio. Comecei a olhar as árvores iluminadas e a rica vegetação ao redor debaixo dos fachos espaçados na rua; iluminada, sombreada, iluminada, sombreada, iluminada..., os galhos das árvores... lindas, lindo. Pedalar suave e agradável, clima ameno, céu um pouco estrelado; mesmo assim ainda era fim do dia dos 20 anos do 11/9, 11 de setembro de 2001.
À tarde pela primeira vez fui procurar notícia sobre Ane Marie Sallerin Ferreira, uma das cinco vítimas brasileiras do ataque ao WTC. Até o fim de sua adolescência morou no 5º andar e nós no 3º. Filha de uma senhora forte, determinada, Ane era muito educada, tranquila, de poucas palavras, de bons e belos sorrisos. Quando encontrei uma foto dela fiquei impressionado com a linda mulher maquiada que se transformou. Demorei para reconhecê-la e o fiz pelo sorriso largo e feição determinada herdados da mãe.
A brutalidade do 11 de setembro me pegou em cheio porque por ironia da vida estava na frente de uma TV na hora que o segundo avião bateu na torre sul. Tirei minha mãe do dentista, voltamos para casa e acompanhamos tudo até o fim do dia. Confesso que demorei muito para saber que Ane Marie estava entre as vítimas e soube quando me contaram que a irmã, mais nova, estava trancada no quarto desde então.
Dobrei a esquina de minha rua, o bar estava aberto com o segurança me dando boa noite. Parei e abri tranquilo meu portãozinho, cruzei o longo breu do corredor, abri a porta da casinha, liguei a luz da sala, olhei tudo com um carinho especial. Coloquei a bicicleta pra dentro, tranquei a porta, peguei uma maçã, dei a primeira mordida sentindo intensamente seu gosto.
Desliguei a luz da sala e caminhei de novo no breu para dentro de meu quarto, por entre as camas, lembrando da multidão que desceu ou tentou descer as escadas dos edifícios em chamas. Escadas estreitas, uma estupidez. Liguei a luz do abajur olhando a parede, girei o corpo, voltei a olhar tudo em volta sentindo um conforto imenso. Paz, segurança, vida.
Olhei a TV, peguei o controle remoto, fiquei um tempo com ele na mão, não sei exatamente quanto. Não a liguei, mas olhando a tela preta revi cenas dos inúmeros documentários sobre os acontecidos daquele 11/09/2001. A história contada pelos bombeiros...
Em pé e descalço sobre o tapete estou agradecido pelos luxos e dádivas que não sei se mereço ou não. Estou exaurido pelo que vi, talvez até mais que naquele 2001 quando fiquei pasmado. Vinte anos depois começam a soltar os piores detalhes da história real. No documentário sobre os bombeiros soltaram o áudio dos corpos batendo no chão, inúmeros, um após o outro, bombeiros em silêncio, olhares perdidos, entre olhando-se em uma pergunta imediatamente respondida "o que é isto?". No dia da tragédia cortaram a imagem avisando "que não vamos mostrar isto..." quando pegaram o primeiro corpo despencando.
Num outro documentário pegam cidadãos que estavam dentro ou no entorno das torres gêmeas. Um deles só entendeu o que estava acontecendo quando saiu para a praça e um corpo caiu a menos de 10 metros. Descreve o barulho, cai no choro, se controla e diz não saber se era um homem ou mulher. Vários corpos batendo no chão se seguiram. Não consegue se livrar da imagem.
Estatelado no meio do meu quarto não ligo a TV. O silêncio da casa nunca foi tão rico. Tiro a roupa e vou tomar mais um banho, lavar o corpo do que vi, lavar os cabelos para tentar lavar a alma. A água quente bate na cabeça imóvel, fecho os olhos, vou acalmando. O toque da toalha seca e macia rodeia meu corpo e ali fica, ali fico eu parado em frente do espelho. Silêncio me reconforta.
Abro a cama, deito, me cubro, olho o teto e não paro de pensar, rever, lembrar, tentar entender. Vou acalmando com a agradável sensação dos lençóis e travesseiro macio. Durmo. Sou um abençoado. Não quero pensar na baderna generalizada que vivemos aqui e hoje ou aí sim vou ficar péssimo.
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