Em 1978 fiz minha primeira
viagem pedalando, fui até Bom Jesus do Pirapora na época das romarias e
procissões de Corpus Christi. Não tinha segredo: Castelo Branco até o trevo de
Santana do Parnaíba, pegar a estradinha que acompanha o rio Tiete até Bom Jesus
do Pirapora. Conhecia perfeitamente o trajeto em carro, o motel de preferência
ficava por ali, também, mas não só. Transar num silêncio total e depois relaxar
ouvindo de fundo as águas do córrego limpo e o coaxar dos sapos foi inesquecível.
Inesquecível até o dia que tomei um choque e quase virei presunto, mas isto é
outra história. Pedalar e ver as matas e várzeas do Tiete depois de Santana do
Parnaíba com calma, podendo parar onde queria, foi delicioso. Pena que na época
não ia para o motel pedalando com minha namorada, aí seria divino total, mas
naquela época mulher não fazia estas coisas, para quem não sabe o que elas não
faziam, trepar nem sequer pensar numa viagem no pedal. Mulher não podia ficar
mal falada e qualquer motivo era motivo. A coisa era tão atrasada, ou
retardada, que até eu tive que ficar quieto sobre esta minha pequena aventura
para não ficar mal falado, ou pior afamado do que já era. Já era, afinal, eu
usava bicicleta para lá e para cá, coisa que um jovem educado não era muito
apropriado para um jovem bem educado. Que seja, assim era.
São Paulo era muito menor, o mato
começava um pouco depois das marginais do Tiete e Pinheiros. A Castelo Branco
era uma estrada moderna, larga, com acostamento, muitíssimo menos movimentada, muito
diferente do que é hoje. A estradinha para Bom Jesus do Pirapora tinha bem pouco
movimento, poucas casas e indústrias, tão perto de São Paulo e tão interior.
Fui numa Caloi 10 com um
bagageiro feito de barrinha de aço de pequeno diâmetro e cromado em formato de
7, de desenho delicado, chique, mas frágil. Carregando uma mochila
relativamente leve e amarrada aos poucos foi embarrigando e tive que parar para
desentorta-lo umas duas vezes para continuar. Os pneus 27 X 1 3/4 daquela época
furavam e deformavam com frequência assustadora, mas para minha felicidade
foram e voltaram sem problemas. O selim era um horror, uma peça de plástico
duro só com uma espuminha de nada para enganar. Pouca redução, pedalada dura
contra o vento da Castelo e nas subidas, mas rodava divinamente bem no plano.
Água? Que água? Para que? Eu lá sabia que ciclista precisa beber água.
Juventude acha tudo ótimo e lá fui eu para os 48 km de ida, plano na Castelo e
sobe desce da estradinha. Não faço ideia que hora saí e quanto tempo demorei, mas
lembro que cheguei no meio da tarde. Lembro disto porque antes de Bom Jesus há
uma subida curta e muito íngreme, boa para ciclista de primeira viagem pendurar
a língua. Parei no topo, virei o corpo e olhei para trás com raro prazer para
várzea do Tiete.
Bom Jesus foi divertido porque
não tinha mais lugar nos hotéis, eu também não tinha muito dinheiro para estes
luxos, e acabei dormindo no chão de uma praça ao lado da igreja junto com um
mar de romeiros vindos a pé, cansados e também felizes. Demoraram para parar de
tagarelar, talvez tenham tagarelado toda a noite, mas eu capotei. Muitos
estavam ali pela farra, poucos se levantaram quando os sinos tocaram para
ir a primeira missa. Desta viagem só me arrependo de não ter ido em frente,
seguido até Cabreúva e depois Itu, o que só vim a fazer muitos anos depois e
recomendo. A Estrada dos Romeiros, que segue acompanhando o rio Tiete a partir de
Bom Jesus do Pirapora, é um dos lugares mais bonitos e agradáveis de se pedalar
aqui próximo a São Paulo. Infelizmente a sorveteria de Cabreúva que ficava ao
lado da igreja fechou. Tinha um sorvete de milho que era dos deuses.
Demorei para repetir a dose.
Passei anos descobrindo a cidade de São Paulo no pedal e só voltando para
estrada quase uma década depois quando fui de São Paulo para Cambuquira, exatos
300 km de porta a porta. Creio ter feito em 3 dias pela Fernão Dias: São Paulo
- Vargem, Vargem - Pouso Alegre, e finalmente Cambuquira, cada trecho com 100
km numa Cruiser Extra Light com um bagageiro legal e alforjes. Mesmo com muito
mais leitura que quando fui para Bom Jesus do Pirapora cometi erros básicos.
Sair na louca, no tudo vai dar certo, no vamo que vamo, pode ser empolgante,
mas não vale a pena, mesmo que tudo dê certo como 'inesperado'.
O primeiro trecho foi uma
loucura, pelos 100 km de cara, pegando a serra de Mairiporã e Atibaia, e depois
entre Atibaia e Bragança Paulista uma ventania de frente que me fez pedalar com
toda força nas descidas dando graças a Deus que as subidas faziam sombra para o
vento. Não me lembro das minhas paradas para comer ou beber, só de ter chegado
exausto em Vargem, onde fui até uma vendinha de secos e molhados bem pobrezinha
para comer um sanduíche e beber tubaína, já que nem Coca-Cola a vendinha tinha.
O sanduíche foi com sardinha em lata, Gomes da Costa. O pessoal tava lá para o
mé, que vendia mais que água, uns minduim, fatia de queijo (de minas) e jogar
conversa fiada fora. Encostado no batente de uma das portas de madeira fiquei
olhando o povo passar pela rua estreita de paralelepípedo e me deleitando com
um pôr de sol alaranjado, glorioso.
Lembro bem do quartinho
extremamente simples que consegui para dormir em Vargem, pequena cidade ainda
com ares de São Paulo do café do século XIX. E da névoa fechada na estrada
quando parti. A plantação de morangos em Extrema, uns km depois, que nunca
tinha visto pessoalmente e demorei para entender o que era. Da parada para o
almoço onde tomei seis Coca Colas seguidas para espanto do dono do restaurante.
Eu não fazia ideia do que era hidratação. Um pneu estourado perto de Pouso
Alegre que troquei no acostamento e joguei fora no mato mesmo, um absurdo que
nunca me perdoei. De ver a placa do trevo na Fernão Dias indicando Campanha,
Cambuquira, Lambari, “Enfim!”. De meu espanto com a lonjura dali até Campanha,
nunca sentida num carro. E a sensação incrível de prazer quando da estradinha
de Cambuquira vi a casa de minha prima Sara no topo do morro, onde fiquei descansando
uns bons dias. Cambuquira tem águas maravilhosas, e a comidinha mineira... Bons
dias.
Uma semana depois segui viagem
indo para Caxambu, Passa Quatro, Aparecida do Norte. As manhas eram muito
frias, mas a saída de Caxambu em particular foi um dos momentos que mais senti
frio na minha vida. Tive que parar uns quilômetros depois porque tinha as mãos
completamente congeladas. A estrada era linda, e espero que continue assim,
cercada por imensas árvores, num corredor mágico que lembrava uma entrada
interminável de grande fazenda de café. Dormi em Passa Quatro, sai com uma
manha mais quente, felizmente, e pedalei bem até o topo da serra, que estava
com a vista limpa de todo vale do Paraíba, sem uma nuvem, sem névoa, limpa,
linda, maravilhosa, distante. Parei e fiquei olhando aquela imensidão por um
bom tempo e não parei de admira-la nem quando comecei a descer com a bicicleta.
É uma descida veloz, na época era uma estrada de pista nos dois sentidos, e num
destes momentos que me perdi na paisagem, fui para a contramão, e só fui me dar
conta quando estava muito próximo do radiador de um caminhão. Fração de
segundo. Ainda lembro do rosto assustadíssimo dos dois que estavam na cabine do
caminhão, que passaram raspando pelo guidão. Não sei como não bati na caçamba
de madeira. Eles sequer tocaram a buzina, talvez porque também estivessem
perdidos na belíssima paisagem.
Para minha sorte o trecho
final, plano, no Vale do Paraíba, foi pedalado com um vento forte nas costas,
tão forte que praticamente não tinha que fazer força nos pedais na última
marcha da pesada Cruiser. Na Basílica de Aparecida agradeci, pela viagem e pelo
diabo não ter me aceitado lá na descida da serra. Ou teria sido intervenção
divina? Quem sabe? Agradeci. A Basílica não estava pronta, mas já era uma obra
monumental, belíssima, coisa que Aparecida do Norte, a cidade, definitivamente
não era (e continua não sendo). Peguei um ônibus e voltei feliz.
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