sexta-feira, 26 de abril de 2024

Brasil - Estados Unidos no Frota Leste: a viagem de minha vida


Embarquei na virada no ano novo de 1975. Nem sequer me lembro de ter ficado um dia em Salvador, onde o Frota Leste, um navio cargueiro de 75.000 toneladas estava aportado. Lembro do primeiro contato com minha cabine, simples, mas bem confortável para nós três, eu, o namorado de uma prima e um amigo dele, gente boa. Lembro de Salvador indo distante, o navio entrando em alto mar num fim de tarde, as luzes da cidade sendo acesas me fascinaram, até desaparecer. Navegamos numa distância que ainda podíamos ver as luzes das cidades, quase uma linha branca amarelada no horizonte. Acordei no dia seguinte e já só se via água ondulada, o mar aberto. O navio estava vazio, sem carga, e dançava com as ondas, um movimento lateral que não incomodava muito, a não ser para comer. No copo de suco o movimento do navio ficava claro.

Todos dias acordava e saía para o convés para namorar o mar antes de tomar café da manhã. Parece sempre o mesmo, mas definitivamente nunca é. 

Acordei um dia, saí para o convés como sempre e não entendi nada, o mar estava calmo, pequenas ondas e uma cor diferente. Subi até a cabine de comando para saber o que era. Estávamos navegando no rio Amazonas. Uma imensidão de águas, nada de terra, incompreensível. É um rio, a terra deveria estar a vista dos dois lados no navio. No Amazonas, esperava ver florestas. Nada, a não ser um mar de águas. 
Chegamos a Macapá para carregar minério. Tivemos a oportunidade de ir até a cidade para comunicarmos nossas famílias que havíamos chegado bem até ali. Uma Kombi nos esperava para uma viagem curta. O duro foi entrar na companhia telefônica para pedir e esperar a chamada, e mais ainda ficar dentro da cabine que não parava de mover-se. MInha mãe não conseguia entender porque eu não parava de rir enquanto falava. Eu estava com as costas encostadas numa parede e mão segurando na outra parede. Efeito da movimentação do navio sem carga. O labirinto continua a trabalhar em terra firma o movimento das ondas do mar sentido no navio. Muito estranho.  

No Caribe acordamos com as camas indo para lá e para cá, num balançar como se estivéssemos numa rede, ou num berço, resultado de um forte balançar do navio. Só consegui lavar o rosto aguarrado na pia. Abri a porta e dei com um marinheiro que foi logo avisando para tomar cuidado que o balanço seguiria forte. "Só desce a escada quando ela estiver subindo", disse ele. Como assim? O balanço do navio era tão acentuado que em certos momentos a escada ficava quase plana, para ir baixando lentamente até ficar tão inclinada quanto uma parede. "Espera ela subir e passa por ela correndo", terminou ele e seguiu seu caminho agarrado no corrimão das paredes. E lá fui eu. Mesmo antes do café da manhã subi para a ponte de comando e agarrado a uma mesa dei bom dia sorridente a todos. E la vi a proa do navio enterrar na imensa onda e sumir. Uau! Fiquei lá um bom tempo vendo o desce a onda, enterra a proa na onda, o navio se enche de espuma do mar, a proa vai emergindo, o mar escorre, e logo o navio começa a subir novamente a onda, chega à crista, a velocidade do motor é reduzida, o navio brinca de balanço de parquinho, a proa vai descendo até começar tudo de novo. Exceto o capitão e mais uns dois, todos passaram mal, incluindo eu, com o sobe e desce que nunca parava. Mesmo assim, adorei.

Muitos dias de mar, mares diferentes, ondas diferentes, de igual só as noites estreladas. Chegamos à foz do rio Mississipi, o navio foi ancorado, e fomos dormir. Acordei e como sempre sai para ver como estava o mar. Dei com um espelho, 'mar zero'. O banco no convés tinha uns 5 marinheiros sentados, olhares perdidos, apavorados, clara e literalmente apavorados. Dei bom dia e mal responderam quase em silêncio. Sentei-me ao lado deles e puxei conversa para saber porque o mar estava daquele jeito. "Prenúcio de furação" respondeu seco um deles sem tirar os olhos daquela lisura a perder de vista. Fui tomar o café da manhã, voltei e todos estavam exatamente sentados nos mesmos lugares, com exatamente o mesmo olhar apavorado. Encostei na amurada e vi um golfinho passando perto. A marolinha de sua barbatana era a única irregularidade visível em todo mar, mesmo quando ele já estava bem longe. No dia seguinte quando acordei já estávamos no rio Mississipi em meio a uma violenta tempestade. O capitão do barco ao me ver ordenou que eu saísse de lá e descesse imediatamente. No final do dia, só com chuva, vimos na TV que um navio um pouco menor que o nosso foi empurrado pelo 'tornado' para fora do rio Mississipi e navegou por terra firme uma meia milha. A imagem era impressionante. 

Em alto mar, em algumas noites eu subia ao topo do navio para ficar olhando as estrelas. São infinitas, parece óbvio, mas só vendo para crer a quantidade e beleza. Cheguei a ficar uma hora deitado no convés escuro, e meus olhos nunca pararam de se adaptar, novas estrelas, galáxias iam surgindo. 
Ali entendi que nós, humanos, não somos absolutamente nada, sequer uma poeira perante a natureza e, mais ainda, frente o universo. Somos nada, nada. 

A partir de sábado volto a fazer mais ou menos o mesmo trajeto, o de ida, Rio de Janeiro - NY, desta vez num cruzeiro. Sempre sonhei repetir a expeiriência em navio cargueiro, mas não consegui, ou não me esforcei para conseguir, o que pode ser mais verdadeiro. Com certeza não vai ter o mesmo impacto da navegação no Frota Leste com seus pouquíssimos tripulantes.  

Conversei com alguns amigos sobre este cruzeiro que faço agora. Todos disseram "Que chique!". Pois então, os quinze dias no navio saem muito barato se comparado a turismo interno no Brasil. Os cinco dias que tirei para ir a Penedo, com uma breve passagem por Sâo José dos Campos, são proporcionalmente mais caros que os dias no navio. A comparação que costumo fazer é quanto gasto por dia pedalando para fora de São Paulo, e mesmo aí o cruzeiro no navio sai elas por elas ou mais barato. Devo aqui lembrar que sou diabético e que vai uma grana em comida. Entrou no navio tudo é grátis, exceto drinks, óbvio. Como não bebo... 
Não confundir o preço de cruzeiro em viagens curtas, de uma semana ou menos. Estou embarcando num navio que precisa de passageiros para voltar ao hemisfério norte e fazer a temporada de verão lá. Dizem que as viagens mais agradáveis são as que vem da Europa e Estados Unidos para o Brasil. O povo é mais camo, o navio navega mais silencioso, na hora das refeições não há tumulto. Veremos

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