segunda-feira, 22 de abril de 2024

50 anos depois, o pedido de desculpas

Colocando em ordem uns papeis e procurando outros, dou de cara com um envelope pardo nomeado "monte de merda" escrito com minha letra de mão. No meio de papeis diversos, muitos memórias sem importância, mas que me trazem boas recordações, encontro quatro cartas de minha mãe e uma de Carminho, minha avó, escritas quando eu estava viajando 'a la loca por Américas'.

Já estava na faculdade quando decidi trancar a matrícula e viajar por terra para os Estados Unidos, mochila nas costas. Era a aventura clássica dos pós adolescentes da época e eu embarquei nela. Mochileiro ou hippie, como queira, mas com a família por trás em qualquer caso. Mais ou menos como os hippies da época, sem um puto no bolso, mas garantido por pais compreensíveis, por assim dizer. Hippie-chic, the must! Bem classe média brasil.

Um dos que estudavam comigo na faculdade, que de hippie não tinha nada, deu um sumisso de uns seis meses e voltou contando as maravilhas de sua viagem. Mochila nas costa, pouco dinheiro no bolso (e todos nós acreditamos), chegou até a Florida. Ele era completamente desembaraçado, boa gente, boa fala, boa agilidade social, sabia se virar, tudo para dar certo. Trazia consigo fotos (que eram raras e caras na época) para comprovar o que tinha feito. Ouvindo aquilo tudo contado com deliciosos detalhes, parecia uma aventura fácil, para qualquer um.
E lá fui eu. Vendi todos meus discos e mais alguma coisa e coloquei o pé na estrada. Foi divertido, não muito para minha família, principalmente para minha mãe e avó, como as cartas preocupas provam.

Comunicação em 1977 era por correio, cartão postal ou cartas. Telegramas eram caros, telefone quase impossível. Ainda tinha a possibilidade de rádio amador, mas tinha que encontrar um lá, onde você estava, e outro cá, só muita sorte alguém que morasse onde estava minha família. Em Lima cheguei a fazer uma tentativa por rádio amador que foi interrompida por um pequeno "tremor de terra" que fez tudo na casa sair passeando de uma lado para outro como se tivessem pernas.

Minhas cartas durante a viagem trazem uma letra a mão e um texto que são para apavorar qualquer um. Minha letra sempre foi, e não posso negar que meus escritos também, de um anafalbetismo sem tamanho, Mobral total. A infantilidade está patente até no desalinhamento das linhas, no descrever como eu estava até como ia a viagem. Um horror tamanho que vou dar um tempo para voltar a vê-las.
Dizer que fui 'a la loca' é absolutamente pertinente, para dizer o mínimo. Melhor seria 'el loco se fue'. Se deixei todos aqui meio assustados, por outro lado olhando aquelas cartas, quase ilegíveis, e puxando lembranças do que foi a viagem, agora digo que provavelmente pelo meu comportamento completamente naif, infantil, muitas portas tenham se aberto para mim. (-Ele baba? Não? Só é meio estranho? Então deixa ele entrar...)

Saí de São Paulo em trem, transbordo em Bauru, final em Corumbá, vagão com janelas, piso e bancos de madeira, paisagem maravilhosa que ainda passa frente a meus olhos. Corumbá, um calor e umidade insuportáveis, e a primeira noite fora de casa, e do trem, dormindo numa favela. Dia seguinte toca a entrar na Bolívia e tentar pegar o trem da morte para Santa Cruz de La Sierra. Trem da morte era um trem de carga que o pessoal viajava no teto. Uns pegavam no sono e caiam para o sono eterno. Nada de trem da morte e ou mesmo de aventura hippie, fui mesmo em "trembus", dois vagões de trem movidos a motor de ônibus, segunda classe.
Santa Cruz de La Sierra, era linda, arborizada, organizada, Andes nevados a distância e como sutil pano de fundo. Acabei sendo recebido na casa de uns bolivianos religiosos. Ótima estadia, e banho! Opa!, banho! Dia seguinte, subir a serra em ônibus para La Paz. "Vas sentir el soroche", me avisaram. La Paz, 4.100 m na parte alta, 3.650 metros no centro. Entra-se por cima, uma vista incrível da cidade acentada na boca de um vulcão. E desço do ônibus pensando "soroche?", dois passos a frente e um vomito que não para. Recebo oxigênio no pronto socorro e de lá vou para um (bom) hotel.... Hippie? Mochileiro? Almofadinha, diria. Que delícia!
Que me lembre, a primeira carta ou cartão postal saiu de La Paz.

"A única forma de chegar ao Perú é comprando passagens da Morales Moralitos", fui claramente avisado em La Paz. E lá fui eu, o besta, sabichão, para fronteira sem a passagem Morales Moralitos até Puno. E desço em Copacabana, Lago Titicacal, fronteira. Cruzei a fronteira a pé. "Enfim, Perú", pensei eu, mas e agora? Como sigo em frente para Puno? "Só comprando passagens da Morales Moralitos - e com preço desde La Paz" disseram tranquilamente sem sequer levantar a cabeça. FDPs! E lá estou eu, perdido, sem saber o que fazer. Passa uma boa alma andina em suas coloridas roupas típicas e pergunta "Quer uma carona. Sobe no caminhão com a carga". Viva meu espírito hippie-mochileiro, lá vamos nós. Carga de pimentas! Cheiro e ardor fortíssimos. Anoitece, um frio de quebrar o queixo; viagem aos pulos noite adentro até amanhecer. Chegamos, finalmente Puno. Desço do caminhão e me transformei num saco de pimenta, cheiro sentido por quem passa perto ou bem longe. Devem ter pensado, "que tal! es un gringo picante". Mais uma vez desaparace o esírito hippie, o mochileiro também, vou para um bom hotel. Longa água quente que curou o corpo conelado, mas um banho inócuo ao fortíssimo cheiro ardido impregnado. Deito e durmo.

Cusco, recomendo a todos, de preferência com monte de remédio para soroche nos bolsos, ou folhas de coca para mascar que funcionam bem, como queira. Machu Picchu é imperdível, com ou sem soroche. Ainda vi tudo aquilo praticamente sem turistas.
De avião para Lima, afinal, hippie também é gente, e não conseguia conviver bem com o soroche.

Em Lima fiquei na casa de uns amigos de minha irmã, que me mantiveram hospedados por um mês. "Estás mui flaco!", a alegação, não sem razão para me manterem hospedados. Hippie que é hippie não tem dinheiro para comer. Ou come ou dorme bem (num hotel). Eu já era muito magro e cheguei em Lima 10 kg mais magro ainda. Agradeço até hoje os dias maravilhosos que os Dedekin Moran me ofereceram em Lima. Um dia espero voltar a Lima e agradecê-los.
Creio que a segunda carta saiu de Lima, muito tempo depois da minha saída de São Paulo.

Hippie é folgado, mauricinho também, almofadinha que vai se encostando. Provavelmente fui um pouco dos três. Um dia conseguiram se livrar de mim. Encontraram duas opções; Quito em ônibus por US$ 180,00 ou Zurich por US$ 120,00. Sim, é isto mesmo, ir para Quito era mais caro. Zurich, lá vamos nós. Mochileiro, mas não tanto. Adorei Zurich.

Três dias depois de desembarcado em Zurich estava assistindo os treinos do GP F1 de Monaco. Pelas minhas roupas, em Monaco, tinha deixado de ser hippie para virar mendigo ou algo do gênero. Mas assisti o GP desde a praça em frente ao Ministère d'Etat, que fica sobre a Curva do Tacabo, de longe o melhor lugar para ver assistir o GP. Dormi aonde? Como hippie, ou mendigo, como queiram, debaixo do banco da praça.
Trem de volta para Suíça, uns dias em Sion, na casa do Bernard Zen Ruffinen, que havia conhecido na Bolívia, gente ótima. De lá mais uns dias na Itália, e o pouco dinheiro que tinha acabou de vez. Fui "repatriado" de Gênova por minha santa mãe no navio Cristóforo Colombo, terdeira classe, cabine praticamente ao lado das hélices. Inesquecível!
Talvez tenha enviado notícias da Suíça, talvez.

Neste meio tempo, entre as primeiras e poucas, confusas, cartas enviadas, e minha chegada de surpreza em São Paulo, poucas notícias para desespero de mãe e avó, talvez de mais alguém. "Pas de nouvelle, bonne nouvelle" devem ter pensado resignados. "Pelo menos voltou inteiro" disse minha santa mãe no abraço entre a alegria de me ter de volta e fúria da falta de notícias.


A viagem foi muito mais cheia de detalhes que obviamente não estão nas cartas muito menos nestas breves linhas. Foram, sei lá, uns quatro ou cindo meses de poucas notícias, e hoje vejo que as poucas que escrevi eram para deixar cabelo em pé até a mais tranquila das mães, avós e quem mais se interessasse.


Eu me sentir agora compelido a um pedido de desculpas é pouco. Peço desculpas por meu passado em silêncio, e com frequência, para muitos; não só para elas, mãe e avó, que então certamente eram as mais aflitas. Desculpem.

Não se pode voltar atrás na vida, mas quisera eu. "Aqui se faz, aqui se paga"; ouvi de montão. Estavam absolutamente certos, aqui se faz, aqui se paga. Vale para os que têm alguma consciência. Culpa? Medo do inferno? Não! medo do espelho, o que é muitíssimo mais complicado e apavorante de se encarar.


Poderia ficar aqui contando tantas outras histórias de minha vida que hoje, olhando para trás, as teria repetido, as vivencias, mas de outra forma, ou pelo menos com certos cuidados. Não é a busca por experiências de vida, que deve ser feita, mas o rastro que se pode deixar para trás que deve ser evitado.
Como é o ditado?: você é responsável por aqueles que te querem. É isto? Se não for é mais ou menos por aí e está corretímo.


Vejo meus netos repetirem erros que remetem aos mesmos erros que fiz não tomando cuidado com as emoções do ou dos outros. Não falo desta viagem, mas de pequenas besteiras caseras e urbanas que parecem inconsequentes, mas que nos dias de hoje, para quem amadureceu, são muito mais apavorantes que um louco solto pelo mundo em 1977. 
"Eles são só adolescentes..." ouço com frequência. São adolescentes, sem dúvida, mas a enorme diferença para quando vivi minha adolescência, década de 60 e início dos 70, é que hoje o espaço para corrigir possíveis erros que sempre acontecem é muito reduzido.

Aprendi muito com a montanha de besteirada que fiz pela vida, mas não teria outra forma de chegar na maturidade que tenho hoje? 

Como posso deixar um legado para meus netos?

Só posso pedir desculpas ao leo 50 anos depois. Que lá de cima me ouçam.


E dentro de uns dias lá vou eu no mesmo rumo da primeira grande viagem: navio, Frota Leste, cargueiro, de Salvador para os Estados Unidos, Mississipi e de lá volta para Santos, daquela vez três meses de mar. Foi a viagem de minha vida, o antes e o depois. O que fiz na volta não tem desculpa, é um dos "aqui se faz, aqui se paga" que mais me pesa ao olhar no espelho. Não agradeci a viagem. Gostaria de ter Tio Francisco por perto para abaixar a cabeça e tomar uns cascões merecidos, mas ele já se foi. De qualquer forma, obrigado.

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